No dia 28 de março de 1968, o paraense Edson Luis Lima Souto, 18, foi assassinado com um tiro no peito, durante um protesto no Centro do Rio, próximo ao restaurante Calabouço. Ele foi encontrado caído na altura do número 370 da Rua Marechal Câmara, próximo de onde hoje funciona o Ministério Público do Rio de Janeiro. Seus colegas o levaram ao hospital, onde chegou sem vida. Com medo de que a polícia sumisse com o corpo, carregaram Edson nos braços até a Assembleia Legislativa, onde o velaram por 21 horas, até percorrerem a cidade em um cortejo com 60 mil pessoas.
O secundarista calado, de 1,53m, tornou-se o primeiro cadáver público da ditadura, quatro anos após o seu início. A comoção com aquele menino que lembrava o anjo das pernas tortas e que “poderia ser seu filho” foi o estopim para novas lutas do movimento estudantil e para a ruptura de parte das classes médias com o regime militar, culminando na histórica Passeata dos Cem Mil, três meses depois.
A Assembleia Legislativa (onde hoje funciona a Câmara dos Vereadores) iniciou uma investigação sobre a ação policial. Os dois depoimentos mais esperados foram o do responsável pela operação, o jovem aspirante a oficial Aluísio Azevedo Raposo, de 22 anos, e o do general Oswaldo de Niemeyer Lisbôa, então com 65 anos. Raposo comandou a operação e os 33 policiais que participaram.
Niemeyer, general da reserva, era Superintendente da Secretaria de Segurança, ou seja, tinha sob seu comando toda a Polícia Militar, incluindo Raposo. O cargo equivaleria ao que ocupa hoje o general Walter Braga Netto, que comanda a intervenção militar no Estado do Rio.
No dia seguinte, o general resolveu ir até a Assembleia Legislativa, perdendo a chance de ficar calado.
Indagado pelo Jornal do Brasil por que a polícia atirara, respondeu:
“– A polícia estava inferiorizada em potência de fogo.
– Potência de fogo? É arma?
– É tudo aquilo que nos agride. Era pedra.”
Diante da repercussão negativa, tentou responsabilizar Raposo, responsável direto pela operação. Chegou a dizer que foi ao local “por gostar e costumar acompanhar de perto, sem interferir, tais manobras policiais”. Não convenceu.
Instrutor de esgrima, desde quando era 1º Tenente, Niemeyer não pôde presenciar a cena bárbara da cavalaria desferindo golpes de sabre contra estudantes e religiosos na saída da missa de sétimo dia de Edson Luís. Ele já havia dispensado pelo governador Negrão de Lima.
Calabouço, uma ameaça para a ditadura
Um restaurante no Centro do Rio de Janeiro, co-administrado por uma entidade estudantil, e por onde passavam entre seis e dez mil jovens por dia, secundaristas e universitários, gastando 20 centavos por refeição.
A concentração de estudantes transformou o local em dor de cabeça constante para as forças de segurança. Dali sairiam a maior parte das passeatas e o refeitório parecia uma assembleia permanente, com talheres batendo nas bandejas.
O objetivo era acabar com o Calabouço. Mas as tentativas – mudança de local, redução de verbas – tiveram efeito contrário. A comida ruim (até com baratas) e o atraso nas obras viraram uma pauta imediata e explosiva, que se somaria a bandeira do fim da ditadura.
Mas a juventude queria saber de muito mais do que comida. Os Estados Unidos estavam sendo derrotados no Vietnã, enquanto protestos exigiam o fim da guerra, do racismo e da violência policial. Naquele dia, os estudantes do Calabouço estavam saindo para um ato que passaria pelo Consulado dos Estados Unidos, a alguns quarteirões de distância, contra a Guerra do Vietnã.
Desde que assumiu a pasta, o general Niemeyer recebia relatórios dos órgãos de informação, que acompanhava os principais passos dos estudantes. Em abril de 1966, já recebia comunicados [1] com informes detalhados sobre o movimento secundarista, inclusive cópias de materiais. Foi desta forma que foi avisado da passeata até a embaixada.
“Atira, já mandei atirar”
Pelos depoimentos, a maioria dos policiais teria entrado nos veículos sabendo pouco sobre a operação. Não teriam levado bombas de gás lacrimogêneo, por exemplo. Ao chegarem, a passeata já estaria saindo em direção à Rua Santa Luzia. E teriam ficado com os carros no meio de algumas centenas de estudantes. Ao sair para bloquear o protesto, os estudantes teriam reagido com uma chuva de pedras, acertando alguns policiais e vidros dos carros, mas recuando depois em direção ao Calabouço.
Segundo depoimento do aspirante Aluísio Azevedo Raposo, ele teria dito que não teria condições de cumprir a missão e dado ordens para recuar. Ele afirma que o general Oswaldo Niemeyer disse que se recuasse, iria parecer que “estaria se acovardando” e “fugindo” e que reforços estariam vindo. Policiais ouvidos confirmaram a conversa entre Raposo e o general, de terno marrom, e a ordem para prosseguir.
Carlos Alberto da Silva, uma testemunha que estava em uma banca de jornal próxima, afirmou que viu policiais se dirigindo para o Calabouço e que ouviu a ordem: “Atira, já mandei atirar”, sem conseguir identificar quem teria dito.
Além de Edson Luis, outras cinco pessoas foram feridas, incluindo o estudante Benedito Frazão Dutra, que chegou a ser declarado morto, e Telmo Matos Henriques, atingido por um tiro no segundo andar de uma obra e internado em um hospital.
Mentiras contra os estudantes
Tanto Raposo quanto Niemeyer afirmam que foram recebidos à bala, na segunda tentativa de conter o protesto. Niemeyer chegou a dizer que haviam elementos “infiltrados” na passeata e que a polícia “reagiu”, repetindo a farsa dos autos de resistência.
Mas não foi essa a conclusão da CPI. No dia 12 de maio de 1968, o Correio da Manhã publicou reportagem na qual a CPI avaliava que nenhum tiro teria sido disparado pelos estudantes, baseado nos 57 depoimentos que haviam sido tomados.
Uma contradição é a do carro da polícia, com oito tiros. No entanto, em seu depoimento, o soldado motorista Reginaldo Batista afirma que seguiu ordens e não saiu da viatura durante o confronto. Não teria percebido o carro sendo atingido oito vezes?
De onde saiu o tiro?
Depoimentos de estudantes narram que eles teriam sido encurralados e ficaram protegidos por uma pilastra, sob uma “chuva de balas”. E que Edson Luis foi atingido e não pôde ser socorrido, por conta dos tiros. Teve de ser arrastado.
O responsável pela operação, Raposo, afirmou que nenhum dos 13 soldados que estavam armados teriam disparado. A “prova” disso é o seu testemunho – ele teria checado todas as armas ao chegar ao quartel, junto com um coronel da PM. Já os peritos afirmaram que todas as armas foram limpas logo que chegaram ao quartel, impedindo exames. E nenhuma cápsula foi encontrada nas proximidades do local onde Edson foi morto.
No dia 29 de abril, a CPI que investigava o caso na Assembleia Legislativa ouviu nove policiais. E tiveram a impressão de que foram instruídos, para dar depoimentos semelhantes. Em seu primeiro depoimento, bastante nervoso, o aspirante Raposo foi acompanhado de outros dois militares, que chegaram a ser advertidos, pois combinavam e orientavam as respostas.
A cada depoimento dos policiais, a quantidade de estudantes na passeata aumentaria. No início estimada em 300, o total de manifestantes chegaria a dois mil, pelas contas de quem estava sendo investigado.
PM: Polícia Mata
O presidente da CPI, o procurador Dardeau de Carvalho, chegaria a conclusão de que seria impossível determinar quem matou Edson Luis. Apesar de não conseguir identificar o autor do disparo, testemunhas afirmam que a PM atirou naquele dia contra os estudantes, como reafirmado pelos cartazes levados pelos estudantes.
Dois jornalistas viram a ação do sexto andar de um prédio e confirmaram que os PMs atiraram. Eles disseram ter visto um policial empunhar uma arma e se dirigir para o local onde Edson foi morto.
Dois funcionários do restaurante também prestaram depoimentos semelhantes, inclusive tendo visto policiais atirando em direção a galeria onde Edson estava e ouvido estudantes gritando que alguém tinha sido baleado.
Na internet, é possível encontrar quem atribua o crime ao tenente Alcides Costa, que estaria a frente do Batalhão Motorizado da PM no local e teria recebido uma pedrada. Segundo esta versão, ele teria atingido Edson Luis a queima-roupa.
A impunidade prevaleceu. Quatro meses depois, o aspirante Aluísio Azevedo Raposo foi promovido a oficial, e permaneceu participando e coordenando operações de rua.
O coronel Niemeyer não retornou ao comando da Segurança Pública mas seguiu na carreira militar. Quatro anos depois, em 1972, participou da turma da Escola Superior de Guerra (ESG).
A arma do crime não foi encontrada ou identificada.
Apesar da comoção e da Passeata dos Cem Mil, o Restaurante Calabouço foi fechado. No final do ano, a ditadura iniciaria a sua fase mais sanguinária, com o AI-5 e o aumento dos organismos de repressão e tortura. Os anos seguintes veriam a destruição do movimento estudantil e de todas as liberdades democráticas, e a perseguição às organizações que foram para a clandestinidade.
Guerra contra a juventude e o povo negro e favelado
Por outro lado, a ditadura – e os órgãos de repressão – travavam outra guerra, contra as favelas e o povo negro da cidade, acelerando a política de higienização social, que já vinha desde o governo Carlos Lacerda.
Em julho de 1967, quando o Rio de Janeiro sediou uma reunião nacional do FMI, as forças de segurança detiveram três mil pessoas, classificadas pelo Jornal do Brasil como “punguistas, assaltantes, arrombadores e homossexuais”. A operação foi chamada pelo jornal de “limpeza do Rio”.
Não por acaso, estudantes do Calabouço detidos em uma passeata dias antes foram mantidos presos até o término do evento do FMI. A ordem veio do general Niemeyer.
Entre 1964 e 1973, mais de 100 mil pessoas foram retiradas de morros [2], em especial na Zona Sul, em remoções para bairros e áreas distantes, como a Cidade de Deus. Casas eram invadidas e moradores espancados. As associações de moradores eram controladas e vigiadas, eliminando a capacidade de resistência. Remoções chegaram a ser feitas usando caminhões da Comlurb. O apelo vinha da imprensa:
No ponto em que chegamos, não há no Rio qualquer outro problema que apresente tanta urgência em ser resolvido quanto as favelas (…). A extinção das favelas justifica a paralisação de todos os programas de embelezamento urbanístico da cidade, pois não há melhor forma de ressaltar o esforço de melhoria da Guanabara do que a eliminação do contraste brutal e injusto das favelas com o perfil dos edifícios e a linha da paisagem favorecida.
(Jornal do Brasil, 1966) [3]
Ninguém tem a menor dúvida – antes, tem a sólida experiência – de que, antes de 31 de março de 1964, tentar efetivamente a extinção das favelas, com a indispensável remoção dos favelados, seria obra praticamente impossível.
(Diário de Notícias, 1971) [3]
A imprensa e o governo chegaram a divulgar a informação de que estariam sendo formadas “células comunistas” nas favelas, apostando no medo que fez parte do golpe de 1964. Apesar de parte da esquerda de fato atuar nestes territórios, o uso do componente ideológico soava mais como uma tentativa de justificar o enorme investimento feito pela ditadura civil-militar e a manutenção dos organismos de repressão e de tortura, voltando-os com toda a força para remover o “perigo” que vinha dos morros.
“Os velhos no poder, os jovens (negros!) no caixão”
A criminalização dos moradores de favela avançou, apoiada no racismo da elite, Herdeira de um passado escravocrata. Coincidência, seus antepassados foram os que construíram uma prisão para escravos no local onde viria a funcionar o restaurante, explicação para o nome Calabouço.
A ideia de que “todos na favela são bandidos” – a mesma lógica usada hoje na intervenção militar – foi usada para sustentar a exclusão de amplas camadas do povo carioca, aprofundando a desigualdade social e espacial, até a realidade que vivemos, de pobreza e genocídio da juventude negra.
Niemeyer, Raposo, Alicides… Seja qual for o nome de quem atirou, os que mataram Edson Luis foram os mesmos que, cinquenta anos depois, executariam Marielle e os cinco jovens de Maricá.
NOTAS
[1] HAUER, Licia Maciel. O Colégio Pedro II durante a ditadura Militar: O silêncio como estratégia de subordinação.
Disponível em: < https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/viewFile/1553/1402 >
[2] BRUM, Mario Sergio. Ditadura civil-militar e favelas: estigma e restrições ao debate sobre a cidade (1969-1973).
Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/download/14809/10798 >
[3] VALLADARES, Lícia. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. Apud PESTANA, Marcos. OAKIM, Juliana. A Ditadura nas Favelas Cariocas, Capítulo do Relatório Final da Comissão da Verdade do Rio Disponível em: < http://www.cev-rio.org.br/site/arq/CEV-Rio-Relatorio-Final.pdf >
JORNAIS CONSULTADOS
Edições Jornal do Brasil e Correio da Manhã (1967-1968).
Hemeroteca Digital Brasileira – Biblioteca Nacional
Comentários