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Marielle Franco, racismo e fake news: criminalizar a vítima para justificar sua morte

Por Henrique Oliveira, de Salvador, BA*

Na última quarta-feira à noite, o Brasil foi surpreendido e aterrorizado pelo assassinato brutal da vereadora Marielle Franco do PSOL. Além da Marielle Franco, o motorista Anderson Pedro Gomes, que fazia um bico de motorista no dia cobrindo um amigo, também foi vitimado. A assessora Fernanda Chaves que estava no carro foi a única sobrevivente. O assassinato ocorreu no Centro da cidade do Rio de Janeiro, quando Marielle voltava de uma roda de conversa intitulada Mulheres Negras Movendo as Estruturas.

O que se sabe até agora é que o carro em que estava Marielle foi seguido e menos de meia hora depois que saiu do local foi alvejado por 13 tiros, nove na lataria e quatro no vidro. Marielle foi atingida na cabeça por quatro vezes e o Anderson por três nas costas. O tipo de armamento utilizado foi uma pistola 9mm, armamento restrito às forças de segurança. Numa perícia realizada nas cápsulas encontradas, foi constatado que a munição pertencia a um lote vendido para a Polícia Federal em 2006. O lote é o UZZ – 18, o mesmo que foi utilizado na maior chacina ocorrida em São Paulo no ano de 2015, que terminou com 23 pessoas mortas, cujos autores foram Policiais Militares e Guardas Municipais, que foram levados recentemente a júri.

O Ministro da Segurança Pública, Raul Jugmann, disse na sexta-feira (16) que a munição utilizada foi roubada na sede dos Correios no estado na Paraíba. Enquanto isso, a superintendência dos Correios na Paraíba informou que não tem conhecimento sobre furto de munição na sua sede.

A morte de Marielle Franco levou a uma rápida reação popular por todo o Brasil. Ela tinha sido a 5ª vereadora mais votada, com mais de 46 mil votos. Os protestos se espalharam pelo país, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Aracaju, entre outras capitais e cidades, reaquecendo o movimento de rua, que além de se manifestarem exigindo uma investigação rápida, também se posicionaram contra a Intervenção Federal no estado do Rio de Janeiro, pelo fim da guerra às drogas que concentra a sua repressão nas favelas, contra o racismo e o nachismo institucionais.

A principal linha de investigação é que a vereadora tenha sido executada, já que nada foi roubado. E a principal motivação para o seu assassinato pode estar intimamente relacionada com a atuação política de Marielle Franco em toda a sua trajetória como defensora dos Direitos Humanos – com ênfase numa plataforma antiracista, em defesa dos direitos das mulheres e da comunidade LGBT – principalmente contra a violência Policial nas favelas do Rio de Janeiro. Recentemente, Marielle havia assumido a função como relatora da Comissão da Câmara de Vereadores, para acompanhar a intervenção federal.

Nos dias que antecederam a sua execução, Marielle Franco vinha denunciando por meio das redes sociais os abusos policiais cometidos por membros do 41ª BPM (Batalhão da Polícia Militar) Acari. Na postagem realizada em seu perfil, Marielle comentou: “Precisamos gritar para que todos saibam o está acontecendo em Acari nesse momento. O 41° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro está aterrorizando e violentando moradores de Acari. Nessa semana, dois jovens foram mortos e jogados em um valão. Hoje a polícia andou pelas ruas ameaçando os moradores. Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior. Compartilhem essa imagem nas suas linhas do tempo e na capa do perfil!”.

O batalhão de Polícia denunciado por Marielle é, nada menos do que o batalhão mais violento na cidade do Rio de Janeiro nos últimos cinco anos. Segundo os dados do ISP (Instituto de Segurança Pública), os policiais registraram 450 mortes durante esse período. É o mesmo batalhão que, por exemplo, foi responsável pela morte da estudante Maria Eduarda dentro de uma Escola municipal, na qual os PMs se tornaram réus depois que a Justiça aceitou a denúncia do Ministério Público em que os policiais assumiram o risco de causar a morte da adolescente após atirarem na direção da Escola.

As fake news para criminalizar a vítima
E não bastou apenas assassinarem a Marielle Franco fisicamente, como forma de tentar apagar a chama política que ela representava. Logo após o ocorrido, vários internautas passaram a debochar e a comemorar a morte da vereadora, por causa da sua militância em torno da pauta dos Direitos Humanos. Porque se convencionou no Brasil uma concepção autoritária e ideologicamente orientada de que os Direitos Humanos são um instrumento político para a ‘defesa dos bandidos’, usando-se até um jargão pejorativo de ‘direitos dos manos’. Inclusive, a Marielle Franco, quando foi assessora no mandato do Deputado Estadual Marcelo Freixo (PSOL), atendeu casos de policiais que foram vitimados. Em uma matéria do G1, a mãe de um Policial Civil, Eduardo Oliveira, falou sobre a importância da Comissão de Direitos Humanos e de como Marielle foi ‘imbatível e importante’, auxiliando com o processo, também no acolhimento e preocupação com a família.

O jornal Extra chegou ao ponto de ter que publicar uma matéria, com a intenção de esclarecer o público acerca dos Direitos Humanos. O texto se chamou ‘Marielle, os direitos e os humanos: esclarecimento do EXTRA aos leitores’.

Os ataques à história e à dignidade de Marielle Franco não ficaram reduzidas apenas às caixas de comentários dos jornais online. A desembargadora Marília Castro Neves, do Rio de Janeiro, fez um comentário no Facebook dizendo que Marielle foi assassinada por causa do seu ‘engajamento com bandidos’. Segundo a desembargadora, que nem conhecia a Marielle, as acusações tiveram como base um texto veiculado pelo Whatsapp, texto esse que afirmava um suposto vínculo político entre Marielle e a facção carioca Comando Vermelho. A execução seria, então, resultado da quebra de um acordo político com o grupo, já que a vereadora teria sido eleita com o apoio do Comando Vermelho, sendo apenas mais um ‘cadáver comum’.

Ao jornal Folha de São Paulo Marília disse que deu a sua opinião como cidadã, por não atuar na área criminal. Mas, mesmo assim, esse comentário exprime muito bem as convicções prévias de membros do Poder Judiciário em relação à população negra e pobre. A partir desse fato, nós podemos compreender mais a fundo o porquê de as cadeias brasileiras estarem abarrotadas de pessoas negras. Apesar da referida desembargadora não atuar na área criminal – o que é um alívio – ao lermos o seu comentário nós ficamos muito mais cientes sobre a sua visão de mundo, do que realmente sobre quem era Marielle Franco e as possíveis causas da sua morte.

E chama atenção também o fato dela se referir a Marielle como mais um ‘cadáver comum’, em um país como o Brasil, onde 60 mil pessoas são assassinadas por ano, sendo que a cada 100 pessoas vitimadas, 71 delas são negras, com foco especial para faixa etária da juventude. Se formos fazer um recorte para a questão de gênero, veremos que, entre 2003 e 2013, houve um aumento no assassinato de mulheres negras em 54%, enquanto o número de mulheres brancas, como a desembargadora Marília, caiu em 9,8%, segundo o Mapa da Violência de 2015.

As mulheres negras, além de serem as maiores vítimas de feminicídios, também são as maiores vítimas letais entre as mulheres, em contexto de ações policiais. A Agência Patrícia Galvão, utilizando os dados colhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, constatou que, entre os anos de 2005 e 2015, cruzando a categoria raça/cor das vítimas, as mulheres negras foram 52% das mulheres mortas em ‘Intervenções legais ou operações de guerra’. É a naturalização da mortalidade em massa de pessoas negras.

O PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) afirmou que vai entrar com uma representação oficial no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e uma ação criminal por calúnia e difamação contra a desembargadora Marilia Castro Neves. O jornalismo da UOL também apurou que a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no Rio de Janeiro também vai se manifestar oficialmente sobre o caso.

O deputado federal e presidente do DEM no Distrito Federal, Alberto Fraga, que é coronel da reserva, divulgou no seu twitter que Marielle “engravidou aos 16 anos, era usuário de Maconha, foi eleita pelo Comando Vermelho, era defensora de facção rival e ex-esposa de Marcinho VP”. Após ser questionado pela reportagem da Band News, o deputado disse que recebeu a notícia pela internet, não buscou a veracidade da mesma, mas que não se arrepende de ter divulgado.

O site E – Farsas que, desde 2002, atua na internet investigando rumores e notícias de caráter duvidoso, realizou uma busca e desmentiu todas as acusações realizadas contra Marielle. A Marielle não engravidou aos 16 anos, mas sim aos 19, Marielle não teve votação expressiva nas regiões em que o Comando Vermelho tem domínio, e não existe nenhum tipo de vestígio que ela estabeleceu relações com os dois traficantes denominados Marcinho VP.

O que vemos não é apenas Fake News, termo que se popularizou após a eleição presidencial nos EUA, onde as notícias falsas alimentaram a campanha do candidato vencedor Donald Trump. Mas sim uma estratégia muito utilizada em nosso país quando uma pessoa é vitimada pela violência, principalmente quando essa pessoa é negra e pobre, com o objetivo evidente de criminalizá-la. É uma prática corriqueira da Polícia e da imprensa utilizarem os antecedentes criminais das pessoas mortas pela polícia, ou em outras situações, como forma de explicar e até mesmo justificar o óbito.

E isso nos leva a uma reflexão sobre a importância urgente da legalização e regulamentação das drogas. As notícias falsas que estão sendo divulgadas sobre Marielle se baseiam numa realidade concreta, na sua origem no Complexo da Maré, local que é dominado pelo Comando Vermelho, grupo que realiza na localidade o varejo das drogas que estão proibidas. É preciso desmontar o dispositivo político da proibição das drogas, para que não se possa mais especular em cima da origem social e pelo fato das pessoas serem negras, que elas podem ter participação no tráfico de drogas.

O delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone, no seu livro ‘Indignos de vida – A forma jurídica da política extermínio do Rio de Janeiro’i estuda o arquivamento de autos de resistência na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 2003 e 2009, percebendo como a letalidade policial é legitimada e legalizada pelo poder jurídico, não pela forma como se deram os fatos, se realmente existiu o uso legítimo da força, mas sim pela condição do morto. Ao se identificar na pessoa morta a figura do traficante, que é considerado como criminoso/inimigo, a ação policial é concebida como legal.

A culpabilidade então se encontra invertida, não se trata de saber como e porque a pessoa foi morta, mas sim de construir em torno da sua vida, da sua trajetória, elementos que a vincule à atividade criminosa. E é essa batalha que estamos vendo e travando em torno da memória de Marielle, em que se busca de todas as formas relacioná-la ao tráfico de drogas para dizer que a sua morte não foi um crime, muito menos um crime político e, sim, uma retaliação de grupos criminosos. Pois dentro dessa lógica, se Marielle tinha envolvimento com o tráfico de drogas, a sua vida deixa de ter valor, a comoção seria, então, desnecessária, já que ela seria uma ‘indigna de vida’.

E dentro da mentalidade racista, classista e machista, uma mulher negra e vinda da favela só poderia ascender socialmente ao cargo de vereadora se estivesse, de alguma forma, vinculada ao poder político e econômico do tráfico de drogas. Quando a realidade mostra o contrário, Marielle mesmo engravidando cedo conseguiu se formar em nível superior, fez pós-graduação e se elegeu representante legítima da população pobre e negra. Se olharmos bem, sem muito esforço, veremos que quem emerge na política mantendo relações estreitas com o crime organizado são justamente os sujeitos que estão fora das favelas.

Marielle e Anderson, presentes, hoje e sempre!

Henrique Oliveira é mestrando em História Social na UFBA e colaborador da Revista Rever

i D’Elia filho, Orlando Zaccone, Indignos de vida:a forma jurídica da política de extermínio de inimigos da na cidade do Rio de Janeiro,1ªed, Rio de Janeiro:Revan, 2015