M. e E., de Fortaleza, CE
O ano de 2018 já começou como um dos mais violentos da história do Ceará. Entre janeiro e o início de março foram registradas quatro chacinas no estado, além de inúmeros homicídios ocorridos diariamente. A primeira chacina ocorreu na cidade de Maranguape, em 07 de janeiro, com quatro mortos. Em seguida, houve a chacina do bairro das Cajazeiras, a maior da história do Ceará, onde 14 pessoas foram executadas. Apenas dois dias depois, outra chacina marcou o Interior do estado, onde 10 detentos da cadeia pública de Itapagé foram mortos dentro de suas celas, com participação direta de facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas e uma significativa omissão da Secretaria de Segurança Pública.
Na noite da sexta-feira, 09 de março, ocorreu mais uma chacina em Fortaleza. Esta deixou sete mortos no bairro do Benfica, todos assassinados em via pública: três na Praça da Gentilândia, um na Vila Demétrius e quatro da Rua Joaquim Magalhães. Pelo menos quatro vítimas eram ligadas à Torcida Uniformizada do Fortaleza (TUF), que tem sua sede localizada na Vila Demétrius.
Benfica é bairro universitário e boêmio
Para quem não conhece Fortaleza, o Benfica é um bairro universitário e boêmio, localizado ao lado do Centro de Humanidades, da Faculdade de Educação e da Reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde também fica situado o Instituto Federal do Ceará (IFCE). Trata-se de um bairro muito frequentado por estudantes, professores, LGBTs, grupos de jovens das periferias e militantes dos movimentos sociais. O Benfica está para a noite de Fortaleza, como a Vila Madalena, está para São Paulo ou a Lapa, para o Rio de Janeiro.
Até pouco tempo atrás, os índices de criminalidade no bairro eram baixíssimos, coisa que mudou radicalmente quando as facções criminosas que disputam o monopólio do tráfico de drogas no Ceará iniciaram uma guerra pelos chamados territórios da cidade de Fortaleza, o que inclui não apenas os bairros pobres da periferia, mas vias públicas de muito movimento, onde existem bares, restaurantes e praças como é o caso do Benfica.
Torcidas organizadas denunciam juntas a chacina
No dia seguinte, a Torcida Organizada Cearamor (TOC), principal torcida do time do Ceará, emitiu uma nota de solidariedade aos membros da TUF se eximindo de qualquer responsabilidade diante dos atentados. Afirma a nota da Cearamor: “Esperamos que a mídia não venha querer aproveitar-se do episódio e criar matéria para vender jornal e insinuar que o episódio está relacionado a briga entre torcidas organizadas”. E conclui: “Prestamos nossas condolências à todas as famílias enlutadas!”.
No mesmo sentido, reza a nota da TUF: “o fato ocorrido não possui vínculo algum com possível rivalidade entre as torcidas organizadas da Capital”. A nota afirma ainda que: “O que ocorreu foi, sim, uma chacina, onde foram vitimadas pessoas que não possuíam envolvimento com o crime organizado”.
Governo acusa torcidas organizadas sem provas
Contudo, a primeira linha de investigação anunciada pelo secretário estadual da Segurança Pública, André Costa, foi associar a motivação da chacina a um suposto conflito entre as torcidas organizadas dos times de futebol do Fortaleza e do Ceará.
As afirmações de André Costa não resistem aos fatos. Em primeiro lugar porque três dos quatro mortos não pertenciam a nenhuma torcida organizada e as próprias torcidas organizadas do Fortaleza e do Ceará, solidarizaram-se e confraternizaram-se diante da tragédia.
Em segundo lugar, enquanto o secretário de segurança se esforçava para convencer a todos de que essa bárbara chacina não passou de mais um episódio da guerra entre torcidas, na madrugada do domingo, 11, foi preso, em um condomínio de luxo no Bairro do Meireles, um primeiro suspeito do crime: Douglas Matias da Silva, que responde por homicídio, roubo e receptação.
No apartamento em que Douglas Matias da Silva foi preso foram encontrados dois revólveres calibre 38 e duas pistolas .40, mais munições e carregadores. Dentro do carro usado pelo suspeito foram encontrados ainda cartuchos de balas disparadas. Outros dois suspeitos foram identificados. A informação preliminar da própria secretaria de segurança é que os três supostamente façam parte da facção criminosa conhecida como Guardiões do Estado (GDE).
Com essas declarações infelizes, desmentidas em menos de 48h pela própria investigação da secretaria de segurança, o governador de Camilo Santana (PT) e seu secretário, André Costa, estão querendo esconder o obvio ululante: o Ceará está refém de uma guerra entre facções do crime organizado.
Se já era uma irresponsabilidade sem tamanho atribuir a chacina do Benfica às torcidas organizadas sem nenhuma prova do seu envolvimento, passou a ser ridículo que, depois da prisão de um suspeito e identificação de mais dois vinculados à facção GDE, a principal ação do governador Camilo Santana (PT) na segunda-feira, 12, tenha sido a realização de uma reunião conjunta da secretaria de segurança com membros do Poder Judiciário e do Ministério Público para debater e encaminhar a possível proibição das torcidas organizadas no Ceará. Camilo Santana e André Costa, com essa atitude irresponsável, estão transformando as vítimas em responsáveis por suas próprias mortes.
No que diz respeito às torcidas organizadas, queremos ser categóricos: Camilo e André Costa, tirem as mãos das torcidas organizadas! Fazemos nossas as palavras de ordem da Resistência Coral, torcida organizada do Ferroviário: Nem guerra entre torcidas, nem paz entre as classes! No episódio da chacina do Benfica, tanto a TUF quanto a Cearamor apontaram nesse caminho.
A verdadeira guerra é entre facções criminosas
A chacina do Benfica leva para as praças e vias públicas o mesmo modus operandi do massacre das Cajazeiras, onde 14 pessoas perderam a vida no Forró do Gago, a maioria absoluta sem nenhuma passagem pela polícia, das quais 08 eram mulheres. Tanto uma como outra chacina tem características de atentados, na medida em que seus executores chegaram atirando aleatoriamente em quem encontravam pela frente. Somente na Praça da Gentilândia foram disparados, pelo menos, 20 tiros. Qual a origem de tudo isso?
Até 2010, em Fortaleza, havia fundamentalmente pequenas gangues de bairro que disputavam territórios para a venda de drogas ilícitas. A partir de 2014 já se nota um recrudescimento da atuação dessas gangues, com o uso de armamentos pesados. Em 2016, o governador Camilo Santana (PT) e o então secretário de segurança, Delci Teixeira, negaram a presença de facções criminosas no estado e comemoraram a redução dos índices de criminalidade divulgados na ocasião. À época, por mais que o governo do estado negasse, ficou público e notório que a redução desses índices foi promovida por um pacto entre as facções locais que haviam se vinculado ao Comando Vermelho (CV) e ao Primeiro Comando da Capital (PCC).
As rebeliões nos presídios da região Norte do país, no início de 2017, quebraram o pacto de cooperação entre CV e PCC. A partir de então, teve início no Ceará uma disputa sangrenta entre Guardiões do Estado (GDE), vinculados ao PCC e a Família do Norte (FDN), associada ao CV. É essa guerra que vem catapultando os indicadores de violência no estado, cuja face mais bárbara é o aumento das chacinas de jovens pobres e negros das periferias da cidade.
Intervenção militar, não!
Os setores mais reacionários da burguesia cearense e políticos de direita, a começar pelo possível candidato ao governo do Estado, Capitão Wagner, utilizam-se dessas tragédias para clamar por uma intervenção militar no Ceará, aos moldes da que já vem ocorrendo no Rio de Janeiro.
Não será a intervenção das Forças Armadas no Ceará que resolverá a grave crise da segurança pública pela qual passa o estado. Ao invés de uma intervenção militar, que só serviria para tocar o terror nos bairros pobres das periferias de Fortaleza, a ação imediata da secretaria de segurança deveria passar por uma investigação capaz de descobrir, prender, processar, julgar e condenar os chefes do GDE e da FDN instalados no Estado.
Os chefes dessas facções criminosas, que movimentam milhões de reais, não vivem nas periferias de Fortaleza, mas em bairros nobres como Meireles, Aldeota, Papicu ou em condomínios de luxo como Alphaville. São verdadeiros empresários do crime, possuem negócios lícitos mesclados ao tráfico e circulam nas altas rodas das classes médias, frequentando o mesmo meio social dos que clamam por mais violência policial nas periferias e por uma intervenção militar no estado.
Se Camilo Santana e André Costa quisessem, poderiam investir pesado numa séria investigação, realizar batidas nesses bairros nobres em busca dos “empresários respeitáveis” que, de dentro de seus condomínios de luxo, controlam o crime organizado no Ceará. Se não o fazem é porque temem enfrentar os setores mais reacionários da burguesia e das classes médias cearenses, que jamais aceitariam ver seus condomínios de luxo e “negócios lícitos” investigados por uma ação policial. Parafraseando o grande Chico Science: também no banditismo e em como combatê-lo há embutida uma questão de classe.
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