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TEORIA

Interpretando o trabalho chinês: Informalização ou Empoderamento?

Com este debate, concluímos a série sobre as tremendas mudanças sociais e econômicas na China desde a restauração do capitalismo nos anos 1990, particularmente sobre a formação de uma nova classe trabalhadora com centenas de milhões de pessoas. O assunto do fórum foi artigo de Ching Kwan Lee (por nós publicado em duas partes, aqui e aqui) sobre os alcances e limites do ativismo na segunda geração de trabalhadores migrantes naquele país (Editoria Internacional do Esquerda Online).

Tradução: Wilma Olmo Corrêa

Foto: Trabalhadores migrantes de uma fábrica de roupas em greve pelo pagamento dos benefícios da seguridade social. Crédito: Billy H.C.Kwok/Wall Street Journal

Fórum publicado originalmente em Made in China, edição 4, 2016.

Participantes:

Anita Chan é Professora Visitante no Departamento de Mudanças Políticas e Sociais da Universidade Nacional Australiana. Antes disso, foi Professora de Pesquisa na Universidade de Tecnologia de Sydney. Sua pesquisa atual se concentra em questões trabalhistas chinesas. Ela tem publicado extensamente sobre as condições de trabalho dos trabalhadores chineses, sobre os sindicatos chineses, e sobre questões de direitos trabalhistas.

Kaxton Siu é Professor Assistente no Departamento de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Politécnica de Hong Kong. Sua pesquisa concentra-se na globalização, no trabalho, na juventude, nos movimentos sociais e na economia política do desenvolvimento no Leste e no Sudeste Asiático, em particular na China, Vietnã e Hong Kong.

Sarah Swider é Professora Associada de Sociologia na Universidade Estadual de Wayne. Sua pesquisa se concentra em trabalhadores informais e precários. Ela examina as relações de trabalho que definem o trabalho informal e precário, como os trabalhadores se organizam e protestam e examina também como esses trabalhadores estão remodelando os locais de trabalho e os espaços urbanos. Suas publicações incluem uma monografia premiada intitulada Building China: Informal Work and the New Precariat (Construindo a China: Trabalho Informal e o Novo Precariado) – Cornell University Press, 2015.

 

A luta e o ativismo dos trabalhadores chineses têm sido temas de fundamental interesse desde o início da era da reforma(1). Ainda assim, as expectativas nunca foram tão grandes como nos últimos anos, com um fluxo interminável de artigos na mídia e trabalhos acadêmicos identificando um avanço no nível de consciência dos trabalhadores chineses acerca dos seus direitos – especialmente a chamada segunda geração de trabalhadores migrantes – como um desenvolvimento crítico com o potencial de perturbar os próprios fundamentos do sistema industrial e político chinês. Esta narrativa descreve um boom de greves, vê as mídias sociais como uma ferramenta de mobilização revolucionária e retrata os trabalhadores mais jovens como ansiosos por lutar por seus direitos. Em meio à euforia, esse otimismo é justificado?

Na verdade, uma literatura significativa em chinês e em inglês tem afirmado que a descontinuidade entre a antiga e a nova geração de trabalhadores migrantes tem sido exagerada. No entanto, essas vozes têm sido agrupadas sob uma narrativa mais atraente. Em um artigo recente, Ching Kwan Lee criticou o trabalho de colegas por adotar uma visão excessivamente otimista sobre o ativismo trabalhista na China. Em particular, Lee identificou e desafiou quatro alegações promovidas pelos defensores do que ela chama de “tese de empoderamento”: a ideia de que os trabalhadores chineses estão cada vez mais ativos e motivados a se mobilizarem; a afirmação de que a nova geração de trabalhadores migrantes tem mais consciência de classe e de seus direitos do que a primeira; a suposta maturação e radicalização do ativismo trabalhista, com as demandas dos trabalhadores mudando de defensiva para ofensiva; e a afirmação de que os aumentos consistentes dos salários na China devem ser considerados como evidências da eficácia e empoderamento dos trabalhadores.

Argumentando que tais alegações têm bases factuais escassas e que negligenciam as estruturas de desigualdade e desequilíbrios de poder que levam à precariedade, ela lançou um apelo a seus pares: “Nestes tempos de precarização global, tornou-se cada vez mais importante que os estudiosos do trabalho, da China ou de quaisquer outros lugares, resistam à tentação do subjetivismo e do voluntarismo e recordem o famoso lema de Gramsci: o pessimismo do intelecto e otimismo da vontade”. Atendendo esse conselho – e para obter uma melhor compreensão da precarização e seus efeitos sobre a força de trabalho chinesa – convidamos três estudiosos do trabalho que pesquisaram a respeito do trabalho precário em suas diversas manifestações no mercado de trabalho chinês, para oferecer algumas ideias com base em sua experiência no campo.

Qual forma tomou a precarização e a mão-de-obra informal nas indústrias pesquisadas por vocês e quais os efeitos que ela produziu na força de trabalho?

Kaxton Siu: Ao longo da última década, tenho pesquisado trabalhadores chineses nas indústrias de brinquedos, roupas, eletroeletrônicos e indústrias sanitárias. Alguns deles trabalham dentro das fábricas, enquanto outros, como limpadores de rua, trabalham ao ar livre. As formas de precarização e informalidade, bem como seu impacto, diferem de uma indústria para outra. Para os trabalhadores das fábricas, as principais formas de precariedade ainda estão no domínio das condições de trabalho, como jornadas de trabalho excessivamente longas, horas extras não remuneradas, salários baixos, atrasos salariais e riscos ocupacionais. Quanto aos trabalhadores no setor de serviços, como os limpadores de rua, a maioria não tem empregos estáveis. Muitos deles apenas se envolvem em trabalho informal irregular, se tornam temporários, não têm horários de trabalho regulares e recebem salários muito baixos etc.

Sarah Swider: Minha pesquisa concentrou-se principalmente na indústria da construção, caracterizada por uma força de trabalho dividida. A maioria dos cargos profissionais, gerenciais e administrativos é de tempo integral, estável, incluem benefícios e são ocupados por trabalhadores urbanos. Em contraste, os postos de trabalho no campo, que estão nos canteiros de obras, são em sua maioria empregos informais preenchidos por trabalhadores camponeses das áreas rurais que enfrentam a precariedade em seus trabalhos e vivem nas cidades. Eles trabalham sob vários tipos diferentes de configurações de emprego, que moldam sua precarização e vulnerabilidades. Eu documentei três configurações de emprego proeminentes nesta indústria: mediadas, incorporadas e individualizadas. Muitos trabalhadores camponeses labutam sob a configuração de emprego mediado, chamados desta forma porque sua relação de trabalho é mediada por intermediários, geralmente grandes empreiteiros que os trazem para a cidade, providenciam moradia, alimentação e os pagam apenas no final dos contratos (informais) de um ano. Outros procuram apoiar-se em redes comunitárias para constituir grupos de trabalho por tarefa, identificando seu trabalho com tais redes que, por sua vez, regulam as relações de trabalho em seu interior. Finalmente, alguns trabalhadores trabalham em empregos individualizados. Esses empregos são encontrados através dos mercados de rua e as relações de trabalho são altamente despóticas, pois os empregadores, sem limites e inflexíveis, usam a violência ou a ameaça de violência para lidar com os trabalhadores. Estes diversos arranjos de trabalho precário e informal captam a crescente fragmentação que dificulta a construção de solidariedade. No entanto, como trabalhadores informais, eles tendem a se envolver em lutas pelo reconhecimento como trabalhadores e/ou como cidadãos ao invés de lutas por aumento de salários, benefícios e demandas tradicionais de trabalhadores/sindicatos. Em geral, os trabalhadores precários formais se envolvem em lutas pelo aumento de salários; trabalhadores precários informais se envolvem em lutas para serem pagos pelo trabalho já realizado. Os trabalhadores precários formais lutam por melhores benefícios e representação; os trabalhadores informais têm que lutar para serem reconhecidos como trabalhadores e, portanto, serem merecedores de benefícios.

Anita Chan: Muitos estudiosos concentraram sua atenção nas relações industriais do setor de mão-de-obra intensiva, o de exportação – no sul da China, mas há poucos estudos de indústrias de capital intensivo, como a indústria automotiva. Em 2011, realizei uma pesquisa com várias centenas de trabalhadores de cinco empresas automobilísticas – não fábricas fornecedoras para a indústria automobilística, – todas joint ventures com parceiros alemães, americanos e japoneses. Para minha surpresa, descobri que a disparidade entre trabalhadores regulares e trabalhadores terceirizados/temporários não é grande; na verdade, é extremamente pequena. Por exemplo, não só a diferença de duração dos contratos entre os dois grupos tende a ser pequena, mas também a diferença em seu salário líquido foi relativamente pequena, com os trabalhadores terceirizados/temporários recebendo em média 80,8% do salário de seus colegas com empregos regulares. A diferença foi ainda mais atenuada através de bônus anuais. Também não houve diferença significativa na duração da jornada de trabalho – ambas as categorias trabalhavam em torno de nove horas e meia por dia – e, ainda mais importante, todos mantiveram quase as mesmas atitudes positivas e neutras em relação à administração. A única diferença significativa dizia respeito à filiação sindical: enquanto 68% dos trabalhadores regulares eram membros do sindicato da empresa, apenas 28,4% dos trabalhadores terceirizados/temporários se declaravam membros do sindicato. A razão por trás disso é que, de uma perspectiva gerencial, satisfazer as necessidades materiais dos trabalhadores e manter uma força de trabalho estável e motivada são de suma importância neste setor. Por essa razão, os trabalhadores terceirizados/temporários devem ser convencidos a sentir que estão tendo um acordo justo, se não igual, comparado aos trabalhadores regulares. E, sejamos honestos, as empresas podem facilmente pagar isso!

Juntamente com relatos de condições de trabalho precárias, na década passada ocorreu uma mudança notável na narrativa do trabalho chinês. Enquanto no passado os trabalhadores chineses eram frequentemente descritos como trabalhadores que estavam sendo “atacados” por seus empregadores e as forças da globalização, agora há muita ênfase no que eles chamam de “estar conscientes de seus direitos”, especialmente entre a geração mais nova de migrantes. Olhando para os setores que você pesquisa, de uma perspectiva de longo prazo, você acha que a consciência dos trabalhadores mudou significativamente? E a consciência e a ação dos trabalhadores desempenham um papel mensurável na formação de suas condições de trabalho hoje?

Kaxton Siu: Nos últimos anos, foram feitas muitas pesquisas sobre as ações coletivas dos trabalhadores chineses e o impacto de tais mobilizações sobre as condições do trabalho no local de trabalho, bem como sobre as respostas do estado chinês (por exemplo, experiências de tipos de consulta coletiva). No entanto, a partir de uma perspectiva de longo prazo, parece que os discursos sobre a geração mais nova de trabalhadores migrantes e o “despertar da consciência dos trabalhadores chineses com relação a seus direitos ” foram exagerados. Por um lado, verificou-se que a súbita rebelião dos trabalhadores chineses, testemunhada, por exemplo, durante a famosa greve da Honda no verão de 2010, não pode ser sustentada e transformada em uma força política significativa que influenciasse a política trabalhista do governo chinês. Por outro lado, várias iniciativas do estado chinês, como várias experiências de “consulta coletiva” em diferentes localidades, divergiram em seus resultados. Em particular, em alguns ramos da indústria – como o do saneamento básico – onde os trabalhadores são mais informais e precários quanto ao seu poder de negociação em relação às suas condições de trabalho e local de trabalho diante de seus empregadores, essas iniciativas oficiais ainda não podem melhorar os meios de subsistência dos trabalhadores vulneráveis. Quanto à consciência dos trabalhadores, apesar do que mencionei acima, de uma perspectiva de longo prazo, testemunhamos de fato algum desenvolvimento de consciência de classe trabalhadora entre os trabalhadores chineses nos últimos vinte anos. Como muitos estudos e etnografias de fábricas têm documentado, no início da década de 1990, não só os trabalhadores migrantes chineses não tinham senso de consciência de classe; eles também tinham uma visão muito fatalista. A identidade de seus trabalhadores migrantes, especialmente no caso das jovens trabalhadoras migrantes (dagongmei), foi construída principalmente como resultado de estruturas socioeconômicas e institucionais especiais, a saber: o sistema chinês de registro de residência, a estrutura patriarcal chinesa e a dominação corporativa por parte do capital estrangeiro dentro dos locais de trabalho das fábricas. No entanto, desde meados da década de 2000, vimos alguns casos de greves que demonstram um desenvolvimento significativo na consciência dos trabalhadores. Os trabalhadores começaram não apenas a exigir salários acima do mínimo legal, mas também começaram a se organizar com espírito de luta e solidariedade diante da imensa repressão policial e da violência. Dito isso, a maioria dos trabalhadores migrantes chineses atuais ainda estão realizando protestos e greves isolados e sem coordenação. Apenas alguns foram além das demandas baseadas em direitos a um nível baseado em interesse ao demandar mais do que o estipulado na atual legislação trabalhista chinesa. Pouquíssimos trabalhadores migrantes chineses estão conscientes o suficiente para pedir a criação ou reeleição de sindicatos no local de trabalho, ou para organizar greves além das próprias fábricas em que trabalham, ou seja, organizar greves em nível regional e nacional.

Sarah Swider: Esta narrativa do trabalho chinês tem sido amplamente baseada na experiência dos trabalhadores industriais. O número de trabalhadores das fábricas que ainda estão trabalhando sob as condições seguras do sistema de “tigela de arroz de ferro”(2) estabelecidas sob o socialismo estatal está diminuindo. Ao mesmo tempo, há um número cada vez maior de camponeses que deixaram os campos, mas mantiveram suas terras e entraram na fábrica para se tornarem “trabalhadores camponeses”. Esses dois grupos têm posições sociais muito diferentes dentro da sociedade, diferentes relações com a terra e o capital, e ambos estão mudando. Como tal, para cada grupo emerge uma consciência distinta como trabalhadores sob um processo de mercantilização. Isso se combina com uma mudança geracional caracterizada por trabalhadores mais jovens que só têm experiência com o capitalismo liderado pelo Estado. No entanto, os trabalhadores da construção são bastante diferentes. A indústria da construção sempre dependeu fortemente dos trabalhadores camponeses. Esses camponeses foram prejudicados sob o sistema socialista estatal do passado, excluídos da participação na “tigela de arroz de ferro”. Hoje, sob a mercantilização, eles desempenham um papel importante na urbanização, mas ainda estão em desvantagem, excluídos dos benefícios da urbanidade e da modernidade. Em outras palavras, não houve mudança na sua posição social ou em suas relações com a terra e o capital. No entanto, as condições em que vivem e trabalham, em constante mudança, teve realmente um efeito sobre eles, e isso está levando a uma mudança na subjetividade do trabalhador. Apesar de sua contínua conexão com a terra, muitos desses migrantes estão passando a maior parte de suas vidas nas cidades, o que muitas vezes os expõe a outros trabalhadores e protestos. Assim, os caminhos que eles imaginam são possíveis, o número de potenciais vias de protesto e as metas e objetivos dos protestos cresceram e mudaram ao longo do tempo. Os protestos entre os trabalhadores da construção, especialmente os protestos que se concentram nos salários em atraso, provavelmente são suscetíveis de serem “protestos teatrais públicos” em que os trabalhadores usam o drama para obter a atenção do público, dos funcionários locais e estatais e de outros empregadores na cadeia de contratação com o objetivo de exercer pressão para que eles tenham seus salários pagos. Esses protestos geralmente são ações coletivas, são dramáticos e criativos para chamar a atenção, e embora eles possam culpar publicamente os empreiteiros, frequentemente têm como alvo as empresas estatais (SOEs) ou as empresas que estão mais acima na cadeia contratante, dependendo do fluxo de dinheiro. Esses protestos geralmente são bem-sucedidos porque: a) são esporádicos e, por essa razão, o governo não consegue prever ou prevenir essas ações; b) ganham atenção do público e da mídia, o que aumenta os custos para esmagar os protestos; e c) acumulam poder simbólico em vez de poder pelo protesto, o que torna mais provável a obtenção de apoio de diferentes grupos.

Anita Chan: Alguns estudiosos acreditam que os trabalhadores terceirizados/temporários e os estagiários da indústria automotiva na China são cidadãos industriais de segunda classe que abrigam ressentimentos profundos devido a essa discriminação. Na opinião deles isso engendra o ativismo trabalhista. Pessoalmente, acho que isso é um exagero. Através da minha pesquisa, descobri que o tratamento que esses trabalhadores terceirizados/temporários recebem e suas atitudes e aspirações não são decididamente diferentes dos trabalhadores regulares, e certamente não provocam um sentimento de injustiça e raiva. Afinal, durante toda uma década desde meados dos anos 2000, não houve grandes protestos nas fábricas montadoras de automóveis da China. A minha pesquisa aponta para uma impressionante falta de interesse em buscar uma representação coletiva, menos ainda para assumir uma ação militante. Por exemplo, quando perguntei aos trabalhadores como resolveriam um tratamento injusto, 44,9% dos trabalhadores terceirizados/temporários e 49,2% dos trabalhadores regulares disseram que iriam ao seu supervisor; 24,7% dos trabalhadores terceirizados/temporários e 21,3% dos trabalhadores regulares disseram que não questionariam ninguém; e 13,6% dos trabalhadores terceirizados/temporários e 13,3% dos trabalhadores regulares disseram que simplesmente procurariam outro emprego. Apenas 4,4% expressaram uma escolha que implicava divulgar suas queixas além do local de trabalho e solicitar ajuda externa, com apenas 0,4% dos entrevistados dispostos a entrar em greve. Pelo contrário, descobri que ambos os grupos de trabalhadores eram bastante receptivos ao paternalismo da empresa, 70% dos trabalhadores terceirizados/temporários e uma porcentagem ligeiramente maior de trabalhadores regulares se sentiriam frustrados se não recebessem presentes em datas festivas ou dinheiro através do sindicato ou da administração da empresa. Também temos que levar em conta o fato de que os salários na indústria automotiva são relativamente altos – nas empresas que pesquisei, o salário básico médio era aproximadamente o dobro do salário mínimo legal local e o salário líquido para ambos os tipos de trabalhadores variou de duas a quatro vezes maior que o salário mínimo local.

Desde o início da década de 1990, as autoridades chinesas adotaram um conjunto cada vez mais complexo de leis e regulamentações trabalhistas, muitas delas bastante favoráveis aos trabalhadores. Esse giro para [relações regulamentadas por] lei é um sinal de um genuíno empenho das autoridades em proteger os direitos dos trabalhadores contra a precariedade? As leis trabalhistas chinesas limitaram ou fomentaram a precarização?

Kaxton Siu: A Lei Trabalhista de 1994 foi a primeira legislação trabalhista abrangente aprovada na China desde a fundação da República Popular. A aprovação da lei suscitou um debate entre as burocracias governamentais. Naquela época, a Federação dos Sindicatos da China (ACFTU) lutou para garantir que o espírito da lei fosse vantajoso para os trabalhadores. No entanto, a lei induziu, de fato, a uma mudança na conscientização dos trabalhadores, e os trabalhadores migrantes na região de Guangdong gradualmente começaram a usar a lei como um instrumento para “proteger os direitos” (weiquan). Note-se que esses direitos se referem a direitos legais e não a direitos humanos inalienáveis. O discurso social sobre a “proteção dos direitos” implica a aceitação das leis vigentes como padrão através do qual as condições de trabalho e os salários devem ser estabelecidos. Com a aprovação da Lei Trabalhista de 1994, muitas ONG trabalhistas de Hong Kong, geralmente formadas por poucas pessoas, começaram a criar escritórios por todo o país, principalmente em Shenzhen. Essas organizações desempenharam um papel importante na popularização da “proteção dos direitos” entre os trabalhadores migrantes chineses na área. O programa de tais ONGs estava focado na conscientização dos trabalhadores migrantes sobre os detalhes da Lei Trabalhista e outras regulamentações relacionadas à saúde e à segurança no local de trabalho. Elas ensinaram os trabalhadores migrantes a ler seus comprovantes de pagamento e apontaram onde o pagamento e as horas de trabalho estavam aquém das exigências legais. Também ajudaram os trabalhadores que sofriam acidentes de trabalho a buscar a indenização e os pagamentos pertinentes, o que sempre exige uma compreensão especializada sobre como avaliar os graus de lesões e os procedimentos judiciais. A persistência dessas ONGs foi muito valiosa no espaço de uma década. A maioria dos trabalhadores migrantes hoje, nesta parte da China, conhece a quantidade máxima de horas extras permitidas por lei, conhece o salário mínimo oficial da região e os pagamentos devidos aos trabalhadores vítimas de acidentes trabalhistas industriais. Levar os patrões para o tribunal por pagamento insuficiente, ir às autoridades para apresentar reivindicações legais de pagamentos atrasados, e processar exigindo indenização por acidentes de trabalho tornou-se lugar comum. O litígio é uma forma legítima de protesto. Do ponto de vista histórico, a aprovação de várias regulamentações trabalhistas pelo governo chinês teve impactos positivos na proteção dos trabalhadores contra novas precarizações. No entanto, devemos notar que a Lei Trabalhista de 1994 foi aprovada, não como resultado de uma reivindicação coletiva por parte dos trabalhadores, mas porque havia um consenso dentro da elite política de que a estabilidade social devia ser mantida por uma lei que regulasse as relações industriais.

Sarah Swider:  A lei é contraditória em sua natureza. No processo de definição de “trabalhadores”, muitos deles ficam fora dessa categoria; no processo de criação de proteções ela cria atividades e espaços desprotegidos; ao definir algumas ações e atividades como legais, torna outras ilegais. Além disso, a lei é muitas vezes intencionalmente ambígua, deixando a interpretação a cargo dos líderes locais e nacionais. Finalmente, leis e interpretações serão tão boas quanto a sua aplicação concreta, o que exige um conjunto de instituições e recursos diferentes daqueles necessários para elaborar as leis. Assim, as leis não são um instrumento adequado para limitar a precarização ou limitar a vulnerabilidade dos trabalhadores, e isso é válido em diferentes contextos nacionais. No entanto, o grande número de complexas leis trabalhistas que foram instituídas na China ainda é importante para os trabalhadores. Em alguns casos, as leis tornaram-se outra ferramenta no arsenal dos trabalhadores para lidar com os conflitos trabalhistas e, em outros casos, as leis possuem poder simbólico, enviando uma mensagem para o governo local e o capital internacional para frear a exploração. Em suma, as leis fazem a diferença, mas às vezes de formas inesperadas e/ou complexas.

Anita Chan: Existe de fato um problema de implementação, já que a lei não conseguiu controlar o crescente número de trabalhadores terceirizados/temporários bem como práticas de trabalho abusivas. Embora nem todas as montadoras usem trabalhadores terceirizados/temporários – por exemplo, a BYD e a Hyundai em Pequim não usam – as cinco joint ventures na minha amostra usam, mesmo que seja para apenas metade de sua força de trabalho. Mas a duração dos contratos dos dois tipos de trabalhadores é curta. A duração média dos contratos para os trabalhadores regulares era de cerca de três anos, enquanto que para os trabalhadores terceirizados/temporários era de cerca de dois anos. Existe uma chance de os trabalhadores terceirizados/temporários se tornarem trabalhadores regulares e os trabalhadores regulares que assinarem dois contratos curtos podem obter um contrato permanente, mas isso é bastante raro. Nesse sentido, as condições de trabalho, mesmo para os trabalhadores regulares são bastante precárias. Eles estão conscientes de que em tempos de recessão, podem ser demitidos também. Pode parecer paradoxal se considerarmos que essas empresas são todas joint ventures em que um dos parceiros é uma SOE (empresa estatal) em nível provincial ou em nível de cidade. Mas, na realidade, as empresas estatais são as que empregam o maior número de trabalhadores terceirizados/temporários. Existe um legado histórico para isso. No final da década de 1990, quando milhões de trabalhadores do setor público foram demitidos, as empresas estatais foram obrigadas a criar agências de emprego para encontrar trabalho para os trabalhadores demitidos. Quando se percebeu que os trabalhadores terceirizados/temporários podem servir como amortecedores para as flutuações do mercado, eles foram usados em grande estilo, e ainda o são.

Qual é a sua avaliação do campo dos estudos sobre o trabalho chinês, tanto na China como no exterior? Na sua opinião, existe alguma lacuna empírica e/ou analítica que ainda precisa ser preenchida, e o que deve ser feito para resolver isso?

Kaxton Siu: Devido à ascensão da China como uma potência global ao longo dos últimos vinte anos, há uma grande riqueza de pesquisa sobre o trabalho chinês hoje. No entanto, há uma tendência em considerar o desenvolvimento da China e a constituição e reconstituição da classe trabalhadora chinesa nas últimas décadas como únicas e excepcionais. Mas a experiência chinesa é realmente tão excepcional? Para responder a essa pergunta, devemos comparar a China com outros países socialistas semelhantes, como o Vietnã. Infelizmente, não foram feitas muitas pesquisas para comparar condições de trabalho, ações trabalhistas, reformas sindicais, bem como os modos, sequenciamento e trajetórias da reforma econômica na China e nesses países. Outra lacuna empírica está relacionada à recente reforma do registro de residência e à mudança paralela no processo de urbanização que acontece na China. Desde meados dos anos 2000, um número crescente de trabalhadores migrantes se mudou com seus cônjuges e filhos do campo para as cidades industriais. Em 2014, essa mudança fenomenal nos padrões de migração levou o governo chinês a reformar seus sistemas de registro de residência. Agora, graças à reforma, diz-se que é mais fácil para os trabalhadores migrantes permanecerem nas áreas urbanas onde trabalham. Lá, eles estão encontrando novos modos de arranjos habitacionais, novas formas de relações comunitárias, integração em novas redes sociais nas cidades e novas estratégias de organização das famílias. São temas de grande valor para pesquisas futuras a forma como esse processo de integração acontece e como a mobilidade das famílias dos trabalhadores migrantes afeta as perspectivas dos trabalhadores em seus trabalhos e em suas vidas. Mesmo assim, essas grandes mudanças mal têm sido estudadas, nem sequer houve pesquisa sobre a forma como a nova onda de casais migrantes casados e com filhos afeta as relações de trabalho dentro das fábricas.

Sarah Swider: Na China, algumas das questões trabalhistas mais interessantes são sobre a relação entre a política laboral e a estabilidade do regime, especialmente devido ao aumento significativo dos protestos trabalhistas nas últimas décadas. Acredita-se que os regimes autoritários sejam, em geral, incapazes de tolerar a mobilização política e o protesto, mas a variante do autoritarismo da China tem encorajado e, às vezes, estimulado e dirigido tais ações. Alguns estudos sugerem que a longevidade do regime da China tem sido por causa, não apesar, dos protestos sociais, uma vez que contribui para a legitimidade, cria uma saída cuidadosamente controlada para a raiva e forma e explora as divisões entre os grupos. Isso nos obriga a perguntar: em que condições isso é menos provável de acontecer? Quais segmentos de trabalho são mais difíceis de controlar ou mais propensos a prosseguir para além dos limites pré-definidos?  De um modo geral, o aumento do trabalho precário e a persistência do trabalho informal em todo o mundo significam que a maioria dos trabalhadores do mundo está fora da economia formal e sem o bem-estar social e proteção do Estado. Precisamos de um novo paradigma para entender essa realidade o que exigirá que repensemos as relações entre o estado e a economia, entre produção e redistribuição e entre as esferas produtiva e reprodutiva; tudo isso pode revelar-se um terreno fértil para repensar o trabalho, a política laboral e o futuro dos trabalhadores.

Anita Chan: Nas últimas duas décadas, os estudos feitos fora da China sobre as condições de trabalho chinesas se expandiram rapidamente, de apenas um pequeno grupo de estudiosos que trabalhavam na questão, para algumas dúzias de estudiosos. No entanto, há um excesso de concentração no estudo do trabalho migrante, com um foco extremamente alto na província de Guangdong. Este desequilíbrio levou a uma ênfase excessiva na resistência dos trabalhadores porque uma proporção desproporcionalmente grande de protestos trabalhistas tem ocorrido no Sul. Em minha opinião, é hora de começarmos a explorar novas áreas, novos setores e novos locais onde os protestos trabalhistas não são tão predominantes. Nos casos em que acharmos que os trabalhadores em diferentes lugares são mais passivos, é nossa tarefa explicar o porquê.

  • Trata-se da restauração capitalista (NE)
  • Nome popular para designar o regime de garantias sociais vitalícias durante o período maoísta (NT)

 

 

Créditos da foto: Trabalhadores da Seagate Factory em Wuxi, China, Wikimedia Commons.