Demian Melo, do Rio de Janeiro (RJ)
Tem muitas coisas legais no filme “O jovem Marx”, e uma delas eu lembrei hoje: a forma realista como o brilhante diretor haitiano Raoul Peck retrata as acirradas polêmicas no interior da Liga dos Justos, antes dela se tornar a Liga dos Comunistas. Os debates são duros, e, em alguns deles, uma questão que hoje aparece como novidade é o argumento de autoridade baseado no “lugar de fala”. A principal cena sobre isso retrata quando o líder operário Wilhelm Weitling apelou para sua experiência pessoal para se contrapor à uma posição de Marx. Marx não se intimidou em declarar “A ignorância nunca levou ninguém a lugar nenhum!” (1)
Pode parecer grosseiro, arrogante, mas luta de classes não é uma coisa bonitinha, nem análoga a organizar um churrasco ou uma festa. E nas disputas políticas muitas coisas estão em jogo, bem além do ego de qualquer um, ainda que isso não deva ser desprezado.
Agora há pouco numa polêmica com um companheiro, ele pretendeu criticar um discurso do Boulos no debate entre os pré-candidatos do PSOL ontem no Rio. Acusou Boulos de defender o Lulismo por ter falado que no seu auge houve o “ganha-ganha”. Ora bolas, indaguei, vamos trocar uma análise da realidade por agitação? (2)
O professor Ruy Braga produziu um importante trabalho de pesquisa sobre a hegemonia do Lulismo, publicando um primeiro resultado em 2012 no livro “A política do precariado”. (3) É necessário entender as bases sociais da hegemonia lulista na sociedade brasileira no momento de seu fastígio, caso contrário vamos acreditar agora na falácia de que “a corrupção gerou a crise”. Ruy Braga destaca nesse livro e em vários trabalhos posteriores que a política de valorização do salário mínimo produziu um aumento real da renda da classe trabalhadora, que no âmbito da dinâmica do ciclo do capitalismo do início do século XXI permitiu um crescimento espetacular dos lucros dos capitalistas puxando para cima o nível de empregos. A expansão do crédito às famílias de baixa renda fez o resto, muito mais do que o Bolsa Família. O “ganha-ganha” do lulismo foi de melhora real da renda dos trabalhadores, mas de crescimento espetacular da concentração de renda, pois estamos num país capitalista dependente. Só que o ciclo econômico internacional que contribuiu para aquele crescimento se esgotou entre 2007/2008. Embora a desaceleração econômica já estivesse iniciado antes de 2015, nada indica que ela tenha sido uma das causas das Jornadas de Junho de 2013, que é um ponto de inflexão na conjuntura política brasileira. As Jornadas de Junho, aliás, se iniciaram como qualquer coisa menos um movimento contra o governo federal, mas esse teve a incrível capacidade de tornar aquela sua crise (daí o sucesso das teorias conspiratórias sobre 2013 entre os petistas mais fanatizados). A situação econômica em 2013 não era dramática. Até o final de 2014 havia pleno emprego (segundo os termos da “ciência econômica” mainstream) e a experiência pedestre nos indica que as coisas degringolaram de vez a partir da adoção da agenda daquele Chicago Boy almofadinha que a Dilma colocou seu governo. (4)
Desse modo, demorou um pouco (num primeiro momento pareceu até que seria só uma “marolinha”), mas a crise atingiu em cheio o Brasil. Todavia, em cada formação social a crise se desenvolve de forma diferente, e muitas vezes o problema político se apresenta na forma como o governo de plantão busca resolve-la. Como sabemos, a resposta do governo petista foi a política econômica suicida da austeridade.
Vamos falar as coisas como são. Os governos do PT foram absolutamente covardes em qualquer tipo de enfrentamento, em qualquer plano. E qualquer pessoa que estivesse acompanhando o noticiário internacional sabia que a aplicação da austeridade produziria um desastre social. Não é preciso conhecer Keynes para entender isso. Mas nem os discípulos do Lord inglês conseguiram demover Dilma Roussef da capitulação completa, e da desaceleração da economia o país passou a recessão (“Oh, que surpresa!”). Pois bem, até quem tem memória de peixe sabe do resto da história, e até os mais blasé já perceberam que estamos no fundo do poço e a queda de Dilma não foi trocar seis por meia dúzia. A crise se agravou e há uma mudança de qualidade na situação. Negar o patamar de ataques aos direitos sociais que vem ocorrendo no país com Temer é uma postura no mínimo ridícula para quem se pensa como de esquerda.
E aqui entra o tema do golpe. Muitos agrupamentos pretensamente marxistas fazem na verdade uma análise politicista da crise brasileira quando pretendem polemizar com a tese de que em 2016 houve um golpe de Estado no Brasil. Em suma, o argumento mais comum contra a tese do golpe é o de que “Lula quer aliança com o PMDB na eleições de 2018. Onde está o golpe?” Mas como diria o camarada Mao “não é possível esquecer a luta de classes!” e os companheiros estão simplesmente negligenciando o comportamento das classes dominantes no processo da crise, e confundindo a dominação de classe com as legendas registradas no TSE.
Se no período anterior os governos do PT beneficiaram enormemente o grande capital por uma série de razões (incluindo a sorte), sendo possível aquele desenho do “ganha-ganha”, agora, no entanto, o baile é sem máscaras, como disse o Florestan Fernandes para se referir ao Brasil pós-1964. A burguesia tá passando o rodo, como se fala aqui no Rio de Janeiro. E se engana quem pensa que o Temer desistiu de aprovar a Reforma da Previdência: terminado o segundo turno em novembro, provavelmente teremos mais um capítulo do golpe contra a classe trabalhadora (é disso que se trata!).
É indiscutível também que no período Lulista houve muita violência contra as populações indígenas, a reforma agrária ficou paralisada, houve o apoio total à repressão às Jornadas de 2013 e adoção das estratégias de gestão da pobreza típicas do neoliberalismo foram intensificadas (militarização de favelas, aumento da população carcerária e um longo etecetera). Mas, como ensina Gramsci, hegemonia é uma relação equilibrada entre coerção e consenso, e qualquer Estado capitalista, que tem sua estrutura assentada no aparelho de repressão, não pode prescindir de iniciativas da produção do consenso. O ciclo lulista foi também o período de expansão no serviço público, de expansão das universidades públicas e de generalização das cotas raciais, da Lei Maria da Penha. Ao mesmo tempo, foi também de Belo Monte, do esquema de sustentação político apoiado no PMDB de Cabral e das UPPs, de Eduardo Paes e um ciclo violento de remoções, e mesmo da gestação de alguns ovos da serpente que já chocaram, como o empoderamento do fundamentalismo neopentecostal (lembrem-se: o senador Magno Malta e Marcos Feliciano apoiaram Dilma em 2010, sem falar na Igreja de Edir Macedo que só largou o esquema lulista na reta final). Em suma, como qualquer processo contraditório deve ser entendido em sua complexidade para poder ser superado.
Pois a ignorância nunca levou ninguém a lugar nenhum, como diria o velho Marx.
NOTAS
(1) Disponível em http://bit.ly/2FtocUU
(2) Não preciso nem dizer que ele não titubeou e logo me acusou de “Lulista”.
(3) Debate do professor Ruy Braga sobre o Lulismo. http://bit.ly/2ttB77L http://bit.ly/2oVptOn
(4) Para Marx as crises fazem parte do capitalismo, é o negativo do capital, como ensina o professor Jorge Grespan. Então que correntes pretensamente marxistas atribuam a presente crise à “corrupção do PT” apenas denota o quanto são apenas pretensamente marxistas.
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