Henrique Oliveira*, de Salvador (BA)
O ministro do Superior Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, defendeu em evento realizado na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, na sexta-feira (23), que a guerra às drogas fracassou. Na sua fala, o ministro enfatizou: “a luta armada contra o tráfico não tem sido vitoriosa. Como o poder do tráfico vem dessa ilegalidade, é preciso colocar como opção a descriminalização”.
Em artigo publicado no jornal britânico The Guardian, no ano passado, Barroso também defende essa mesma tese, do fracasso da guerra às drogas. Ele inicia o texto afirmando que a guerra na favela da Rocinha, uma das maiores da cidade do Rio de Janeiro, já estaria perdida, pois a guerra contra as drogas falhou. E afirma que “com barulho de tiro vindo de todos os lados, escolas e lojas são obrigadas a fechar as portas”.
Uma pesquisa realizada pelo aplicativo Fogo Cruzado, em parceria com a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), demonstrou que, no primeiro semestre de 2017, confrontos envolvendo a repressão do Estado contra o tráfico de drogas e entre as facções pelo controle dos postos de venda interromperam as aulas em 99 dos 107 dias letivos na rede municipal de ensino no Rio de Janeiro.
Sobre as ‘balas perdidas’ na favela da Rocinha, o ministro evocou o caso da morte da turista espanhola Maria Esperanza, atingida quando o carro de passeio em que estava passou por um bloqueio policial. Ao evidenciar esse fato, Luis Barroso deixou de fora centenas de casos similares envolvendo moradores da Rocinha e demais favelas, vítimas cotidianas de balas perdidas, ou para usarmos um termo policial, ‘vítimas colaterais’ dos confrontos. Essa escolha pode ter sido motivada porque esse acontecimento ganhou repercussão internacional, inclusive no próprio jornal The Guardian. Enquanto outras vidas ceifadas da mesma forma não ganham repercussão no Brasil, quiçá fora dele.
Na visão do ministro, a atual política de drogas é baseada em ações policiais, armamento e prisões, onde qualquer pessoa pode perceber que essa estratégia de repressão falhou, pois o consumo das drogas e o tráfico só aumentaram. Luís Barroso afirma, ainda, que a questão das drogas tem um impacto profundo no sistema de justiça criminal, sendo, por isso, necessário que o Superior Tribunal Federal participe do debate. Continua seu argumento dizendo que a política de guerra às drogas teve início mundialmente na década de 70 sob a influência dos EUA, se espalhando para outros continentes, onde após 40 anos de investimentos bilionários, de utilização da polícia e do exército, a situação só piorou, resultando em milhares de pessoas presas e mortas, principalmente no Brasil.
Segundo Barroso, enquanto nos países da Europa e no EUA a descriminalização e legalização das drogas teriam como foco principal o atendimento aos dependentes químicos, no Brasil o objetivo seria dar fim ao domínio dos traficantes sobre as comunidades pobres. No entanto, o ministro não citou a presença de uma imensa população carcerária nos EUA, sobretudo de pessoas negras, situação que leva ao fato de existir hoje mais pessoas negras presas do que o contingente de escravos no ano de 1850.
Segundo uma pesquisa comparativa divulgada no The Intercept Brasil, o uso de maconha entre negros e brancos é praticamente o mesmo nível nos EUA, só que os negros têm 375% mais chances de serem presos por porte de drogas e se o número de negros presos fosse igual ao de brancos, a população carcerária dos EUA despencaria em 40%. Nos anos de 1970 o número de presos nos EUA era de 397 mil, um número que já não é baixo, porém o ano de 2014 registrou um número assustador de 2,3 milhões de pessoas encarceradas. Enquanto os homens negros representam cerca de 6,6% da população norte-americana, eles ocupam 40% das vagas nos presídios, a maioria indiciada por porte ou tráfico de drogas como demonstra de maneira brilhante o documentário A 13ª Emenda, disponível no canal Netflix.
Além de afetar o poder do tráfico de drogas, o ministro do STF defende que a legalização das drogas reduzirá o encarceramento de jovens que muitas vezes são presos por porte de maconha e se tornam perigosos ao adentrarem no sistema prisional. Na conclusão do artigo, Luís Barroso reafirma que a política de drogas é insana, destrói vidas, gera resultados ruins para a sociedade, com o custo alto e sem nenhum efeito para o tráfico de drogas. E que apenas a superstição, o preconceito e a ignorância são capazes de fazer alguém acreditar na repressão enquanto efetiva. Por essas razões, Barroso defende que é preciso começar a tratar a maconha que nem o cigarro, legalizado, regulamentado, com vendas em determinados lugares, com cobrança de impostos, restrição por idade e sem propaganda que estimule o consumo.
Essa não foi a primeira vez que o ministro Luis Barroso se posicionou publicamente a favor da legalização das drogas. Em fevereiro de 2017, Barroso defendeu a legalização da Maconha como uma forma de aliviar a crise no sistema carcerário, caso a experiência fosse positiva, avançaria com a política para a cocaína. Segundo o ministro, “é preciso quebrar o poder do Narcotráfico que está centrado na ilegalidade dessas drogas”. Em agosto do mesmo ano no programa da Rede Globo ‘Conversa com Bial’, Luís Barroso voltou a defender a legalização da Maconha tendo inclusive votado favoravelmente em 2015 quando o STF julgou a descriminalização do porte de drogas, que acabou apenas descriminalizando a maconha para uso pessoal.
A guerra às drogas fracassou para quem?
O problema da abordagem crítica que aponta para o insucesso da guerra às drogas nos seus objetivos de impedir a produção, comércio e o consumo de determinadas substâncias, é que ela deixa de fora a possibilidade de percebermos que esse pretenso fracasso, se configura na verdade como um sucesso político e econômico para aqueles que estão envolvidos na cadeia produtiva mundial das drogas ilícitas.
Segundo a UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime) órgão ligado a ONU, o narcotráfico lidera o ranking das atividades econômicas criminais mais lucrativas, movimentando em média 320 bilhões de dólares por ano. Evidentemente, toda esta cifra não fica abrigada nas comunidades periféricas do Brasil, local em que a repressão ao tráfico de drogas está centralizada.
Uma investigação do Senado norte-americano realizada em 2012 concluiu que subsidiárias, agências bancárias controladas pelo HSBC lavaram durante anos bilhões de dólares dos cartéis de drogas mexicano. O relatório liberado pelo comitê especial do Senado disse que o HSBC ignorou sinais que as suas operações estavam sendo usadas por atividades ilegais. As agências ligadas ao banco transportaram 7 bilhões de dólares em dinheiro por meio de veículos blindados ou aviões do México para os EUA. Para encerrar as investigações sobre lavagem de dinheiro, o HSBC pagou uma multa de 1,9 bilhão de dólares, formulou um pedido público de desculpa reconhecendo o erro e se comprometeu a aumentar o controle sobre a movimentação financeira no seu sistema.
O mesmo HSBC (Hong Kong and Shangai Banking Corporation) que segundo o juiz Luís Carlos Valois no seu livro ‘O Direito penal da guerra às drogas’, surgiu após o fim da segunda ‘Guerra do Ópio’ entre Inglaterra e China, como instituição responsável pela expansão da atividade financeira inglesa no comércio do Oriente. O que foi a Guerra do Ópio senão o primeiro conflito político-econômico entre duas nações em torno da venda de uma droga? A proibição do ópio pelo governo chinês se baseou no argumento econômico do desequilíbrio da balança comercial do país. As guerras do ópio aconteceram entre 1839 – 1840 e 1856 – 1860, uma guerra que a Inglaterra fez para impor a venda do ópio à China, pois se tratava apenas de uma relação comercial, diziam os ingleses, em que um queria vender e o outro queria comprar.
O jornal O Globo publicou em 2016 uma matéria baseada no livro ‘Gomorra’ do jornalista italiano Roberto Saviano, tido como um grande especialista em crime organizado, noticiando que Londres se tornou o novo centro da lavagem de dinheiro do tráfico de drogas. Os bancos e os serviços financeiros estavam ignorando as regras chamadas ‘conheça o seu cliente, e um comunicado da NCA (Agência Nacional de Combate ao Crime) já tinha alertado as instituições financeiras inglesas que bilhões de dólares americanos oriundos do crime estavam sendo lavados nos bancos locais e subsidiários. Para Saviano, o México é o coração e a Inglaterra a cabeça do tráfico internacional de drogas.
Em 2015, o jornal Estado de S. Paulo trouxe uma matéria sobre investigações realizadas na Europa e EUA, apontando que grupos internacionais do tráfico de drogas estavam lavando dinheiro nos clubes de futebol. A justiça colombiana demonstrou como 1,5 bilhões do tráfico de drogas foram lavados por vários clubes do país, entre eles o Santa Fé, de Bogotá. A Colômbia já tem uma história de relação entre futebol e os cartéis do tráfico de drogas, especialmente quando Pablo Escobar investiu milhões no Atlético Nacional de Medellín nos anos 80. Contudo, não só os times da América Latina estão envolvidos com o tráfico de drogas, mas também times do leste europeu em países como Albânia, Bulgária e Ucrânia.
O tráfico de drogas caminha de mãos dadas com o comércio ilegal das armas, em meio à última crise econômica iniciada em 2008, enquanto as economias de vários países e setores da indústria entraram em recessão, o setor de armamento continuou sua expansão. Em 2015 a venda de armas bateu recorde com uma cifra de 65 bilhões de dólares. Os principais países exportadores foram EUA, Rússia, Alemanha, França e Reino Unido.
No mês de junho de 2017 a Polícia Civil do Rio de Janeiro interceptou no aeroporto internacional 60 fuzis dos modelos G3, AK e AR15 enviados diretamente de Miami (EUA), escondidos dentro de uma carga de aquecedores para piscina. O estado do Rio de Janeiro inclusive superou a marca de apreensão de fuzis no ano de 2017, entre janeiro e setembro foram apreendidos 393 fuzis, numa média de um fuzil apreendido por dia.
Em uma entrevista concedida à revista Carta Capital, o jurista Wálter Maierovitch, especialista em crime organizado internacional, afirma que o tráfico ilegal de armas movimenta 290 bilhões de dólares por ano, onde 35% desse mercado é movimentado pela criminalidade organizada.
Um dos argumentos utilizados como uma possível solução para enfraquecer o tráfico de drogas e diminuir a violência no país, é ampliar a fiscalização nas fronteiras, só que nem todo armamento do tráfico de drogas vem de fora do Brasil. A CPI das Armas que aconteceu na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2011, demonstrou que 90% do armamento ilegal é na verdade de origem interna, e que dentro desse grupo, 63% dessas armas foram vendidas de forma legal antes de entrarem no mercado ilegal.
A proibição das drogas e a consequente criação do tráfico é um grande instrumento de aquecimento do mercado para a venda e compra de armas, sua existência abre uma dupla demanda para o armamento, tanto para os grupos ligados ao tráfico de drogas, que disputam o controle pelo mercado, como para o Estado que investe vultosos recursos em material bélico para a repressão, comprados diretamente das empresas privadas que ganham muito dinheiro com a insegurança e o conflito.
O proibicionismo também se mostra rentável na área da construção e administração de presídios, comumente superlotados com uma grande quantidade de pessoas sem julgamentos, como é o Complexo Penitenciário Anísio Jobim em Manaus, palco do massacre de presos em uma rebelião no começo do ano passado, envolvendo facções rivais. O presídio que se encontrava superlotado é administrado pela empresa Umanizzare, há fortes indícios de superfaturamento no custo dos presos, pois o preço médio de uma pessoa no sistema prisional é de R$ 2.400 mas o governo do Amazonas pagava R$ 4.709 a empresa privada.
Enquanto os ricos lucram com as drogas e as armas, a população pobre, membros da classe trabalhadora e em sua maioria negros, são as principais vítimas da violência causada pela guerra às drogas. Para a ativista negra norte americana contra o encarceramento e a proibição das drogas, Deborah Small, a guerra às drogas é uma ferramenta política da sociedade contemporânea para manter a hierarquia sócio racial, através da exclusão e marginalização das pessoas negras. Na cidade do Rio de Janeiro, a cada dez mortos em confronto com a PM, nove são negros, e é impossível não dizer que esses alegados confrontos não sejam resultados da guerra às drogas.
Sabemos que tanto as armas como as drogas não chegam nas favelas por meio da ação de jovens negros, que são os principais alvos da vigilância policial e dos homicídios no país. O tráfico de drogas também tem seu braço nas instituições políticas do Brasil, como no caso do helicóptero de propriedade do senador Zezé Perrella (PMDB) apreendido em 2013 com nada menos do que 455 kg de Cocaína pasta base, que sequer foi investigado pela Polícia Federal. As eleições são momentos importantes para a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas e para a eleição de políticos vinculados ao mesmo, em recente entrevista o traficante Marcinho VP afirmou que o tráfico de drogas financia campanhas políticas, por isso a legalização das drogas não seria interessante para os membros dos poderes Legislativo e Executivo.
Se o ministro do STF estiver considerando que a guerra contra o tráfico falhou na perspectiva de acabar com a produção, venda e o consumo de algumas drogas, como Maconha, Cocaína e Ópio, parece que falhou sim. Mas a guerra contra as drogas não falhou totalmente, ela é um sucesso de resultado também. Os ricos ganham muito dinheiro produzindo, vendendo armas e drogas, enquanto só morrem os pobres, sejam policiais, traficantes ou moradores de favela. O Estado criminalizou uma relação comercial e tenta acabar com esse mercado que ele criou. É o cachorro correndo atrás do rabo.
* Henrique Oliveira é graduado em História, mestrando em História Social pela UFBA e colaborador da Revista Rever/Salvador
Comentários