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Relato de uma abordagem militar no Rio de Janeiro

Rio de Janeiro – Soldados do Exército mantêm o controle do acesso à comunidade Vila do João, onde três militares da Força Nacional foram feridos (Vladimir Platonow/Agência Brasil)

Por: Marcella Mendonça, do Rio de Janeiro, RJ

Na última segunda-feira (19), precisei comparecer ao colégio estadual em que dava aula para assinar um documento. Ainda distante, observei que havia uma barreira de militares fazendo revistas entre uma escola municipal e outra estadual, obviamente, em uma parte periférica. Ali, pude refletir o fato de que já não bastava a situação caótica em que aquelas pessoas viviam. Digo caótica pois é um local de lixão a céu aberto dentre outras coisas piores que privam qualquer cidadão de alguma dignidade. Não, não bastava. Aquelas pessoas, sobretudo crianças, apesar de tudo, ainda precisavam passar pela humilhação de uma revista nada humana.

Nas favelas do Rio e Grande Rio, a intervenção já é uma realidade faz tempo e os moradores sentem na pele os impactos que ela traz. Uma vida militarizada. O que mudou? Uma manobra arquitetada por um governo golpista e chantagista apenas a institucionalizou, oficializou, respaldou, enfim, deu passe livre para que as maiores atrocidades pudessem ser viabilizadas.

Conforme me aproximava da área da revista, decidi, por alguns minutos, contemplar os rostos daqueles pequenos. Uns agiam naturalmente, por costume. Outros, traziam no olhar uma aflição e clara intimidação diante daqueles fuzis mirando suas mochilas de super-heróis.

Chegou a minha vez, uma hora ia chegar. Cumprimentei o militar, disse que era professora e precisava entrar no colégio mais adiante. A resposta foi imediata: “Não te perguntei o que você é. Vai passar pela revista”. Confesso que não consegui engolir essa. Retruquei no mesmo imediatismo “A bolsa? Tudo bem, mas não quero que você coloque suas mãos aqui dentro”. Segurei o aparelho celular, virei todo conteúdo no chão para que ele pudesse olhar com mais calma. Eu levava na bolsa artefatos dos mais perigosos, assim como as crianças: livros, cadernos e canetas. Bastante irritado, como as coisas caíram muito próximas, ele foi chutando para separá-las. Abaixou para pegar o estojo, único objeto fechado, abriu, olhou, fechou e jogou no chão novamente. “Pronto, pode catar tudo e passar.” Eu o fiz.

Se passei por ali, logo, precisei voltar por ali também. Talvez pelo ocorrido, um outro militar fez a mesma abordagem e eu, a mesma reação. Dessa vez, para me intimidar um pouco mais, ele usou o fuzil para mexer nos objetos jogados no chão. Acabou, vida que seguiu. Para mim.

Embora eu tenha uma rotina de trabalho excessiva para me manter e sofra as mesmas mazelas cotidianas de muitos, como condições péssimas de trabalho, transporte público precarizado, entre outras questões, reconheço os privilégios que ser branca, moradora do “asfalto”, dentre outras coisas me trazem e que isso foi apenas uma situação isolada dentro do meu cotidiano. Mas não é para a maioria da população. Para a população negra, favelada, isso o que ocorreu comigo não faz nem cócegas perto das humilhações verbais, tapas na cara, casas invadidas, corpos violados.

Pensar na intervenção como solução e apostar numa lógica de guerra é mais que um erro político, é um equívoco ético também. A “licença para matar” ignora qualquer debate de qualidade sobre a descriminalização e propaga o discurso de medo. É maquiagem feita à base de sangue que continua propiciando que o tráfico se alimente da pobreza, dos desempregados, de jovens sem perspectiva, apresentada na forma de sensação de segurança para a população, mantendo, no entanto, os problemas estruturais da violência. É guerra declarada, é o exército sendo usado e manipulado por um governo sem legitimidade e desesperado, lançando mão de qualquer coisa para implementar cada vez mais suas ações neoliberalistas. É a negação da liberdade, do direito de ir e vir de cidadãos. É um conjunto atroz de dominação e repressão.