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MUNDO

Alemanha e a crise dos refugiados

Victor Wolfgang Kegel Amal, de Florianópolis (SC)

A crise dos refugiados de 2015 é certamente um dos mais importantes acontecimentos políticos da década. Além de provocar uma das principais crises humanitárias do século, fez espalhar pela Europa uma onda de xenofobia aproveitada por partidos de extrema direita para desviar o descontentamento popular com as políticas de austeridade para a vinda dos refugiados.

Passados quase 3 anos de seu auge, pode-se dizer que a crise foi parcialmente controlada. Por um lado, não houve mais movimentos de centenas de milhares de imigrantes chegando por mês na Europa. Por outro, aqueles que já chegaram encontram-se em situação de risco: a maioria não conseguiu direito a asilo político ou encontram-se em situação de interminável espera, passíveis de deportação iminente; enquanto os que conseguiram não têm o direito de trazer suas famílias, que permanecem nos países de origem.

Pelo seu poder econômico e posição de liderança na União Europeia (UE), a Alemanha tomou à frente das negociações para solucionar a crise. Esse fato trouxe consequências políticas importantes tanto dentro do país quanto no continente. Este artigo pretende traçar uma pequena cronologia dos fatos ocorridos desde o ápice da crise em 2015 e as perspectivas para 2018.

Origens da crise
Desde o início da primavera árabe (2011), o fluxo de imigrantes advindos do norte da África   e Oriente Médio a caminho da Europa passa a aumentar progressivamente, chegando à 240 mil no ano de 2014. Posteriormente, a consolidação do EI (autointitulado Estado Islâmico) no Iraque e na Síria, junto do início dos bombardeios da Rússia na região, fez com que esse fluxo adquirisse proporções inéditas em 2015, levando aproximadamente 1 milhão e meio de pessoas a deixarem seus países para procurar abrigo na Europa.

Do total de refugiados que chegaram na Europa em 2015, cerca de 1/3 destes vinham da Síria, 1/3 do Afeganistão e Iraque juntos, e outro 1/3 de países diversos, tanto do Oriente Médio e África como também do Leste-Europeu (Kosovo, Ucrânia, etc.). Isso é importante notar pois, muitos daqueles contrários à vinda dos refugiados para a Europa argumentam que se tratam de refugiados econômicos, ou seja, que deixam seu país por falta de trabalho. Contudo, todos os principais países dos quais vêm os refugiados encontram-se em guerras sanguinárias, vis-à-vis Síria, Iraque e Afeganistão.
Se em um primeiro momento o principal destino dos refugiados eram Itália e Grécia, pela sua proximidade ao Mediterrâneo (principal rota utilizada para chegar na Europa), quando esses países se encontravam em estado de lotação, os imigrantes passaram a percorrer o continente em busca de abrigo nos países mais ricos (Alemanha, França, Suécia, Inglaterra, etc.). Assim, foi construída uma nova rota que começava na Turquia, passava pelos Bálcãs (Servia, Croácia, Eslovênia e Macedônia) e chegava até a Hungria.

“Nós conseguimos”?
“Nós conseguimos” foi a frase utilizada por Angela Merkel no dia 31 de agosto de 2015 sobre a sua decisão de suspender o Procedimento de Dublin, que obriga os refugiados a pedirem asilo político no primeiro país que chegam, e abrir as fronteiras da Alemanha para a vinda de centenas de milhares de pessoas estacionadas em Budapeste. Naquele ano, na Alemanha, foram registrados 890 mil pedidos de asilo, enquanto em 2016 este número desceu para 280 mil e em 2017, para 187 mil. Aproximadamente 1 milhão e 350 mil pessoas no total.

Alguns fatos do contexto em que Merkel abriu as fronteiras merecem ser destacados. Em primeiro lugar, a chamada “política de portas abertas” que permitia os refugiados adentrarem a Alemanha com pouquíssimo controle e burocracia durou pouquíssimo tempo. Já no dia 13 de setembro, apenas 14 dias após a declaração “Nós conseguimos”, os trens com refugiados que vinham da Hungria voltaram a ser proibidos de entrar no país.

Segundo, existiam cerca de 1 milhão de refugiados às portas da Hungria naquele momento. Não havia outra opção para a Alemanha que não a abertura das fronteiras ou a utilização de armas e promoção de um genocídio em massa (que era, de fato, a opção desejada pelo presidente húngaro de extrema direita, Viktor Orban). Diversos outros países como Itália, Grécia e Turquia também tomaram a decisão de abrir as fronteiras frente a uma situação desesperadora e absorver as centenas de milhares de pessoas.

Em terceiro lugar, havia amplo apoio da população em 2015 para o acolhimento dos refugiados. Naquele ano, não apenas mais de 50% dos alemães apoiavam a abertura das fronteiras, mas também mais de metade da população objetivamente agiu em solidariedade com os refugiados quando eles vieram (através de abrigo, doação de alimentos, vestimenta, entre outros). Portanto, ao aceitar o recebimento dos refugiados, Merkel estava tomando uma medida popular.

Quarto, os refugiados significam mão de obra barata e desorganizada sindicalmente, cuja entrada no mercado de trabalho implica redução do salário médio dos trabalhadores no país e mais lucros para os capitalistas. Portanto, existe interesse da própria classe dominante e do capital alemão na entrada desses refugiados. Além disso, é fato que a população alemã está diminuindo demograficamente, o que é um problema econômico grave, pois o crescimento do país depende também do crescimento da força de trabalho. Nesse sentido, a chegada dos refugiados será um fôlego, à médio prazo, para a economia alemã.

Por último, muitos argumentam que, mesmo assim, foi atípico que uma chanceler do partido conservador tenha decidido pela abertura das fronteiras. De fato, Merkel encontrou resistência partidária na sua decisão, em particular de elementos altamente desprezíveis como Wolfgang Schaueble (responsável pela negociação da dívida grega). Contudo, a estratégia vitoriosa de Merkel para se manter na chancelaria por 3 mandatos consecutivos foi justamente afastar a CDU de uma linha mais conservadora e torná-la mais liberal, a fim de “roubar” os votos que naturalmente iriam para o SPD. A rápida, mas ainda assim relevante, abertura de fronteiras em 2015 foi mais um episódio da estratégia de Merkel para enfraquecer os socialdemocratas e manter a hegemonia política nacional.

O acordo com a Turquia    
Em abril de 2016 foi efetivado um acordo negociado em março entre União Europeia e Turquia sobre a situação dos refugiados. Basicamente, o acordo estipulava que todo imigrante que chegasse à Grécia, principal ponto de chegada na Europa, seria deportado imediatamente para a Turquia. Em troca, a UE concederia asilo para os sírios que estão dentro das fronteiras turcas (cerca de 3 milhões); liberaria vistos de entrada na UE para cerca de 75 milhões de cidadãos turcos; retomar as negociações para a entrada do país na UE; e ajuda financeira de 6 bilhões de euros.

Em primeiro lugar, esse acordo viola premissas básicas da Convenção de Genebra (1951), segundo a qual, refugiados não podem ser deportados para países que não lhes garantam direitos plenos de vida. Atualmente, a Turquia é denunciada por observatórios de direitos humanos por mandar refugiados de volta para a Síria em plena guerra, além de impossibilitar seu acesso ao mercado de trabalho, fazendo-os viver no que parecem campos de concentração.

Além disso, o acordo UE-Turquia faz a distinção entre refugiados sírios e os de outras nacionalidades, como afegãos, iraquianos, paquistaneses, entre outros, gerando discriminação que também é proibida pelos signatários da Convenção de Genebra. É importante recordar que essa convenção foi organizada com o intuito de que não fossem repetidas as atrocidades cometidas contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, quando os judeus estavam sendo expulsos de diversos países da Europa ou sendo enviados para campos de concentração, não havia legislação e proteção internacional que os pudessem auxiliar.

Crescimento da extrema direita
Atualmente, na Alemanha, a situação política é caracterizada pelo que se chama de Rechtstruck (guinada à direita). O ponto de virada entre a disposição de acolhimento dos refugiados, muito forte no começo da crise, para o senso comum xenofóbico, ocorreu no réveillon de 2015 para 2016. Na ocasião, houve 433 denúncias de mulheres por assédio de homens com perfil árabe e alegadamente refugiados, cujo epicentro foi a cidade de Colônia.

Depois, durante o ano de 2016, uma série de atentados terroristas perpetrados por refugiados que tiveram seus pedidos de asilo negados alimentaram ainda mais a crescente onda xenofóbica alemã. Todos esses casos foram reportados pela mídia de forma sensacionalista e mentirosa, especialmente pelo jornal de maior circulação no país, o Bild. Esse jornal teve de se desculpar publicamente em 2017 por veicular informações falsas sobre supostos ataques sexuais de imigrantes no ano novo em Frankfurt.

Ainda, o jornal Suddeutsche Zeitung publicou estatística afirmando que, em 2017, os estupros cresceram em 48% no estado da Baviera, cuja maioria foram perpetrados por refugiados. Contudo, segundo o especialista em justiça criminal da Universidade de Munique, Ralf Kölbel, em entrevista ao jornal Deutsche Welle, a estatística apresenta um panorama falacioso.

Em primeiro lugar, pois a estatística era baseada em suspeitas de estupro, e não de crimes julgados, que, segundo Kölbel, torna a pesquisa pouco confiável de antemão. Segundo, depois dos eventos em Colônia, houve uma onda de denúncias de assédio como forma de visibilizar este tipo de violência (na Alemanha, cerca de apenas 8% dos casos de estupro são denunciados). Terceiro, de acordo com pesquisa organizada por Kölbel, a probabilidade de um estupro ser denunciado quando o crime é perpetrado por um alemão é de 18%, enquanto se é por um estrangeiro a probabilidade aumenta para 44%. Isso explica a maioria das denúncias serem encaminhadas aos refugiados.

Todo esse contexto de alastramento da xenofobia pela própria mídia fez com que as organizações de extrema direita tivessem um crescimento qualitativo durante a crise dos refugiados. O mais importante deles, a AfD (Alternativa para Alemanha), é um partido que surgiu em 2012 a partir da pauta comum de oposição à integração econômica e política da União Europeia. A pauta anti-imigração e anti-Islã apenas começou a ser incluída no programa do partido em meados de 2014, na época em que surgiu o Pegida (Patriotas Contra a Islamização do Ocidente).

Inicialmente, o Pegida reunia algumas centenas de pessoas toda segunda-feira na frente da igreja da cidade de Dresden para protestar contra a vinda de refugiados. Porém, com o avanço da crise em 2015, o movimento passou a organizar dezenas de milhares na cidade (chegou a 30 mil) e tornou-se o maior movimento de extrema direita alemão nas ruas desde o nazismo.

A AfD se aproveitou do crescimento do Pegida para se apresentar como alternativa eleitoral daqueles contrários ao recebimento dos refugiados, e de forma bem-sucedida: ano passado recebeu quase 13% dos votos nas eleições para o parlamento e agora figura como terceira força política nacional. Além de reivindicar a deportação dos refugiados, tanto o Pegida como a AfD defendem também o cerceamento à liberdade de culto do Islã, via censura do Alcorão e fechamento de mesquitas, ao passo que igualam a religião e suas vertentes fundamentalistas.

Perspectivas
Apesar de o número de refugiados que chegam à Alemanha vir caindo, o problema ainda está longe de ser resolvido. Desde dezembro do ano passado começou a ser planejado, junto aos estados, um plano de deportação em massa de sírios até junho de 2018. Isto dentro do contexto de acirramento da guerra na Síria, com a ofensiva da Turquia contra os curdos e de Israel contra o Irã. Ou seja, a negação total dos princípios da Convenção de Genebra.

Além disso, caso a negociação para a nova grande coalizão entre CDU e SPD seja confirmada, a situação dos refugiados que já estão no país fica seriamente comprometida. Uma de suas principais demandas, a reunificação familiar, ou seja, o direito de trazer a família que mora no país de origem para a Alemanha, será limitada para 1000 pessoas por mês, contingente muito abaixo da real demanda.

Por outro lado, a Áustria, que é governada desde o final de 2017 por uma coalizão da direita conservadora com a extrema direita, assume este ano a presidência da União Europeia com um programa de acirramento da política de repressão aos refugiados. A Áustria é o terceiro país da União Europeia a ser governado por um partido de extrema direita, junto com a Polônia e Hungria, e promete propor a padronização de uma nova política anti-refugiados para o bloco.

Neste cenário, infelizmente, a esquerda alemã permanece acuada frente ao avanço da direita. A direção do SPD, se é que é possível ser considerado de esquerda, capitulou mais uma vez a tudo isso que foi exposto e embarcou em nova coalizão com os conservadores. A Die Linke, partido de esquerda radical, pouco consegue fazer em relação à luta pelo direito dos refugiados. Inclusive, a atual líder do partido no parlamento alemão, Sahra Wagenknecht, vem dando declarações em defesa da restrição da entrada de imigrantes, mesmo à revelia da maioria do partido.

Apesar da disposição e solidariedade de milhares de ativistas para ajudar os refugiados, bloquear as manifestações de extrema direita e promover a campanha “Nenhum Ser Humano é Ilegal”, o ano de 2018 não apresenta perspectivas otimistas em relação a essa pauta.

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