MAS, de Portugal*
Existem, hoje em dia, mais refugiados no mundo do que no pós II Guerra Mundial. Os números variam conforme as entidades consultadas, mas estima-se que mais de 65,5 milhões de pessoas se encontram deslocadas dos seus lares, sendo que dois terços continuam dentro das fronteiras dos seus países e a grande maioria não são sequer contabilizadas como refugiados, caindo nas categorias de migrantes, imigrantes ilegais etc.
Desses milhões, mais de 50% são mulheres. Contudo, continuamos a assistir à invisibilidade e negação da situação das mulheres refugiadas. Existe, no direito internacional, uma gender blindness1, uma incapacidade de reconhecer que as mulheres enfrentam problemas específicos devido ao seu género e que são, sem dúvida, mais vulneráveis do que os homens. A Convenção de Refugiados não reconhece sequer que as questões de género devem ser contabilizadas na atribuição do estatuto de refugiado, nem admite que a violência de género possa ser um factor decisivo na procura de asilo, muito menos que as mulheres refugiadas sofrem uma maior discriminação e violência durante o seu percurso de busca de abrigo. O direito humano internacional não só não reconhece as particularidades das mulheres refugiados como é parte fundamental do problema, travando a identificação e o tratamento adequado dos problemas específicos dessas mulheres, demonstrando que a discriminação de género está tão arreigada nas estruturas sociais, políticas e económicas que nem perante uma crise humanitária global se consegue proteger minimamente os sectores oprimidos da sociedade.
As mulheres são, regra geral, as primeiras a responder perante as crises e durante as deslocações, nos campos de refugiados e até nos países de destino são a base da reconstrução das suas comunidades, as principais cuidadoras e responsáveis pelo sustento das suas famílias, enfrentando um conjunto de violências muito específicas. O machismo prolifera em situações quotidianas, nos locais de trabalho, nas ruas, nos espaços de convívio – agora imaginemos numa situação de extrema vulnerabilidade, como é o caso de mulheres deslocadas das suas casas, separadas das suas famílias, tentando sobreviver em condições duras, muitas vezes sem esperança de voltar ao seu lar. Estão muito mais expostas, mais vulneráveis e mais susceptíveis a situações de violência e discriminação, sendo vistas como propriedade, como moeda de troca, como mercadoria, sem direitos e sem voz.
O quotidiano destas mulheres refugiadas é pautado pela discriminação. A violência doméstica tem tendência a aumentar em situações de stress – os homens da família descarregam nas mulheres as suas frustrações, medos e incapacidades. O número de casamentos infantis e/ou forçados também cresce entre a população refugiada, visto como uma forma de garantir alguma protecção às jovens mulheres, perpetuando a ideia de mulher-propriedade.
Durante as viagens as mulheres são alvos fáceis – sofrem a violência, o assalto, a exploração e o abuso sexual, violadas pelos contrabandistas para obterem passagens mais baratas ou gratuitas, escravizadas e traficadas como prostitutas ou trabalhadoras domésticas.
Nos campos de refugiados a vulnerabilidade das mulheres é gritante – os dormitórios são mistos, as casas de banho também. Muitas mulheres preferem dormir ao relento por se sentirem mais seguras ou simplesmente não dormir, outras não comem nem bebem durante dias para evitar idas à casa de banho, nem tomam banho sequer para evitarem situações de exposição. Sofrem violência dos seus companheiros, dos demais homens alojados nos campos, mas também dos responsáveis pelos campos, dos seguranças, dos agentes de autoridade, das entidades locais e internacionais, que ao invés de assegurarem o seu bem-estar e protecção contribuem para a sua situação de opressão. Não são garantidas as condições mínimas de segurança, educação e cuidados de saúde (como por exemplo acesso a clínicas de planeamento familiar, contraceptivos ou até produtos básicos, como pensos higiénicos).
Por vezes até as organizações de ajuda humanitária, que supostamente atuam no terreno para minimizar o sofrimento e garantir condições mínimas, contribuem para a sua situação de opressão, nalguns casos participando diretamente na prostituição de mulheres refugiadas, como ficou visível com o escândalo da Oxfam2
Na chegada aos países de acolhimento a discriminação continua – as refugiadas são vistas como cidadãs de segunda, discriminadas no que toca a salários, condições de trabalho etc. Muitas tem que se sujeitar a empregos informais, altamente precários, onde nem as condições mínimas de trabalho são asseguradas, sendo muitas vezes empurradas para o trabalho doméstico ou para a prostituição para garantir a sua sobrevivência. Mulheres solteiras e/ou chefes de família também enfrentam muito mais dificuldades na autorização de acolhimento por serem consideradas um peso para a economia.
As mulheres estão expostas à violência estatal, policial, dos seus companheiros, dos homens da sua família, de estranhos. As entidades supostamente responsáveis pela sua protecção não cumprem o seu papel, contribuindo muitas vezes para a própria violência.
Temos milhares de mulheres refugiadas esquecidas, negadas e invisibilizadas pela comunidade internacional. É preciso reconhecer as especificidades destas mulheres. Elas precisam de espaços seguros e de apoios a nível legal, psicológico, de saúde e de educação. Para combater a violência, o perigo e os abusos é necessário criar rotas de passagem seguras e legais, assegurar condições dignas nos campos de refugiados, com espaços exclusivamente femininos, bem como garantir que, na chegada aos países de destino, as mulheres são acompanhadas e integradas na sociedade, na vida pública e nos setores produtivos para impedir que se tenham que submeter a situações de insegurança e violência para garantir a sua sobrevivência.
É necessário acabar com a hipocrisia da União Europeia, que aprova quotas para os países membros que são arrumados na gaveta e esquecidos, que assina acordos com a Turquia (um país onde a liberdade não faz parte do dia-a-dia e que libera o assassinato de refugiados nas suas fronteiras) e que não quer reconhecer a sua responsabilidade na crise dos refugiados. A Europa das democracias e da paz é, na verdade, uma Europa fortaleza, que nega o asila a milhares de refugiados e refugiadas todos os dias. O governo português poderia também fazer muito mais. Até 2017 chegaram a Portugal somente 1435 refugiados, um número baixíssimo tendo em conta a quantidade de refugiados que precisam de asilo – as políticas de integração também deixam muito a desejar, em Portugal assim como nos restantes países europeus.
Também é necessário que as políticas internacionais, que a própria convenção de refugiados de 1951, reconheça o que significa ser mulher e refugiada. Ser mulher significa enfrentar uma desigualdade “normalizada”, que nos oprime e nos amarra – ser mulher refugiada significa temer todos os dias pela vida, sem saber em quem confiar. Garantir alimentos, roupas e dormida é importante, mas garantir que as mulheres não são destruídas, psicológica e fisicamente, também o é.
Neste 8 de Março internacionalista, não nos podemos esquecer das reivindicações de todas as mulheres refugiadas do mundo – desde as palestinianas às sírias, as nossas companheiras estão a sofrer às mãos de um sistema violento, que as oprime e anula. Não as esqueçamos. Saímos às ruas por nós, mas também por elas, porque a solidariedade é a nossa arma.
1 Pittaway e Bartolomei, Refugees, Race and Gender
2 https://www.publico.pt/2018/02/14/mundo/noticia/director-da-oxfam-que-organizou-orgias-no-haiti-foi-denunciado-na-liberia-anos-antes-1803094
*Mantivemos a língua original, português de Portugal
Comentários