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Não Passarão

Rio de Janeiro – Presidente da República, Michel Temer,participa de Reunião de trabalho sobre segurança ( Alan Santos/PR )

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por: Valerio Arcary, colunista do Esquerda Online

Quanto mais te agachas, mais te põem o pé em cima.
Sabedoria popular portuguesa

Mandado coletivo de busca e apreensão é algo gravíssimo. Não fosse o bastante, alguns, nas alas extremistas neofascistas, como Bolsonaro, querem licença para matar. Querem que lhes seja garantido o “excludente de ilicitude”. Querem ser intocáveis. Querem um privilégio que garanta a inimputabilidade, em caso de morte provocadas “em combate”. Temer já garantiu que soldados e oficiais das Forças Armadas serão julgados somente por tribunais militares. Mas há pressões piores, porque querem mais blindagem jurídica.

Mas, calma, mantenhamos o sentido das proporções. Quem não sabe contra quem luta não pode vencer. Precisamos estudar os nossos inimigos. Temer e seu secretariado, Padilha, Jucá e Moreira Franco, ocupam o poder da presidência, mas são uma expressão mediada do que pensa o núcleo duro da burguesia brasileira. Mediada quer dizer que têm interesses próprios, medíocres, mesquinhos e tacanhos e, portanto, são representantes transitórios, descartáveis. Temer tem “prazo de validade”. A intervenção militar ordenada por Temer responde a um cálculo político-eleitoral. Redução de danos, e recuperação da iniciativa política, em função do inevitável passo atrás no calendário de votação da reforma da Previdência.

A intervenção federal no Rio de Janeiro não é uma prévia da instalação de um regime militar. A maioria da classe dominante ainda aposta que sua dominação pode ser exercida com maior legitimidade através de eleições. A condenação de Lula, e até a sua iminente prisão, reafirmaram este projeto. Acreditam que um candidato de sua confiança pode chegar ao segundo turno e vencer.

Mas a intervenção federal no Rio não é, tampouco, “mais do mesmo”. Não é algo semelhante ao que foi feito durante a Copa em 2014 e Olimpíadas em 2016, ainda durante os governos do PT. O raciocínio que concluí que todos os governos ao serviço do capital são iguais, desconsiderando as mudanças no regime político de dominação, é enganoso. É ligeiro, superficial, e até leviano. Num grau de abstração muito alto, é, por suposto correto. Mas a busca da verdade nos obriga a ser muito rigorosos. A análise deve ser concreta. Churchill e Hitler, Roosevelt e Mussolini, ou Medici e Ulysses , eram todos defensores do capitalismo, mas defenderam regimes de dominação muito diferentes. E a diferença entre os regimes não se resume à oposição entre ditaduras e democracias eleitorais.

Há muitos e diferentes tipos de regimes, mesmo de regimes de democracia eleitoral. As relações entre si da instituições do Estado podem assumir distintas formas. Graus diferentes de maior ou menor autoritarismo podem prevalecer. Em outras palavras, os elementos de bonapartismo podem ser maiores ou menores, a blindagem do poder, como elaborou Felipe Demier, pode ser maior ou menor.

A transferência de poder de governo às Forças Armadas, mesmo se parcial, mesmo se somente para a segurança pública e em um Estado, é um deslocamento reacionário nas relações entre as instituições. Que tenha sido, alegremente, referendado pelo Congresso Nacional é incrível, até bizarro. A judicialização da política como poder acima do parlamento é, também, reacionária. O fortalecimento da Justiça, que é um poder não eleito, portanto, onde não há representação contraditória de interesses sociais, indica uma dinâmica autoritária. O que nos remete à importância da luta pelos direitos democráticos e ao sentido da luta antifascista.

São intrigantes as razões que levam muitos a ter, até mesmo em alguns meios esquerdistas, uma compreensão muito parcial do significado do fascismo como regime político. Nos livros didáticos é comum, inclusive, que a Segunda Guerra Mundial seja apresentada como um fenômeno semelhante à Primeira. Só por isso, deveriam ser recolhidos, sem hesitação.

Como um exemplo dos novos problemas programáticos colocados pela evolução histórica, está a questão das formas da moderna contrarrevolução. São inesquecíveis, para os que as leram, sejam ou não socialistas, as páginas em que explica n’O 18 do Brumário de Luiz Bonaparte, com horror, as monstruosidades do regime da contrarrevolução bonapartista na França, depois da derrota de 1848.

Mas o bonapartismo do século XIX não pode ser comparado, nem remotamente, às monstruosidades da contrarrevolução no século XX. O mesmo, possivelmente, se possa dizer até para Lênin, que foi contemporâneo das aberrações da guerra civil, mas morreu jovem, e vinha de um país onde os pogroms eram freqüentes. Lenin não se surpreendeu com a decretação da Primeira Guerra Mundial pelos imperialismos modernos, e os seus dez milhões de mortos, mas, tampouco, conheceu os grotescos desfiles nazifascistas, e a bestialidade do genocídio como política de Estado.

A Segunda Guerra Mundial foi a mais dramática, trágica e perturbadora guerra da história. O seu desenlace definiu a segunda metade do século XX. De um ponto de vista marxista, não pode ser resumida a uma disputa inter-imperialista pela hegemonia no mundo, ou pelo controle do mercado mundial, embora tenha sido isso, também. Um enfoque essencialmente economicista para explicá-la ignora o mais importante. Não só em função da invasão alemã da URSS em 1941, e a ameaça de restauração capitalista e colonização que ela preparava, o que, já por si, a diferenciaria qualitativamente da Primeira Guerra Mundial. Mas porque não se deve desprezar a importância que teve o nazi-fascismo como expressão da contrarrevolução contemporânea.

Pela primeira vez na história, verificou-se um combate implacável entre potências imperialistas em torno a dois regimes políticos. De um lado, o regime mais avançado conquistado pela humanidade, ou pela civilização, à exceção do regime de Outubro nos seus inícios, a democracia republicana burguesa. E de outro lado, o mais degenerativo, o mais aberrante e regressivo, o nazifacismo. Porque seu projeto político ia muito além do esmagamento da revolução socialista na Alemanha: além da destruição das organizações dos trabalhadores, o novo Reich exigia a escravização de povos inteiros, como os eslavos, e o genocídio de outros, como os judeus e os ciganos, além da repugnante homofobia, transformada em política de repressão do Estado.

Para ser brutal: nada pode ser comparável ao nazifascismo. Mesmo considerando as necessárias proporções e distâncias históricas, o nazismo foi pior do que o regime da Contra-Reforma Católica na Península Ibérica, mesmo considerando as monstruosidades de Torquemada; foi pior, por assim dizer, do que a tirania de Nabucodonosor na Mesopotâmia, e outros déspotas asiáticos. A derrota do nazifascismo esteve entre as vitórias mais extraordinárias da luta dos trabalhadores e dos povos no século XX, e foi uma das razões da sobrevida da URSS.

O marxismo afirma que os conflitos de classe são a contradição mais importante de uma época histórica em que a atualidade da revolução proletária está colocada. O antagonismo entre o capital e o trabalho é a chave de interpretação do mundo em que nos cabe viver. Mas o marxismo não ignora que existem lutas progressivas, com reivindicações historicamente necessárias que, invariavelmente, se colocam, cruzando dialética e, transversalmente, as reivindicações dos trabalhadores com outras tarefas: as reivindicações das nações oprimidas contra os impérios que governam o mundo, as reivindicações democráticas contra os regimes ditatoriais, e hoje, com grande importância, as reivindicações de raça, gênero, de orientação sexual livre, de liberdade cultural, entre outras.

Seria, portanto, de um obreirismo cego ignorar a importância da luta dos trabalhadores pela defesa das conquistas democráticas, que são, em primeiríssimo lugar, conquistas suas.

Foto: EBC