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TEORIA

Luta dos trabalhadores migrantes por direitos na China

Por Anita Chan
 

Dando prosseguimento à série de artigos sobre a nova classe trabalhadora migrante na China, publicamos um texto de Anita Chan, originalmente publicado na revista Current History,  V. 116, Nº. 782 (Setembro, 2016), p. 209-213. Anita Chan  é professora visitante na Australian National University – “Universidade Nacional Australiana” e coeditora do The China Journal. Publicou vários livros, entre eles “China’s Workers Under Assault: Exploitation and Abuse in a Globalizing Economy  – Trabalhadores chineses sob ataque: Exploração e abuso em uma economia globalizada, (Routledge, 2001) e editou também o Chinese Workers in Comparative Perspective –   “Trabalhadores Chineses em Perspectiva Comparada” (Cornell University Press, 2015).

Tradução: Wilma Olmo Corrêa

Crédito da foto de abertura: STR/AFP/Getty Images

 

A mídia popular no Ocidente tem chamado a China de “fábrica do mundo” já por algum tempo, e por boas razões. Pegue uma peça de vestuário ou um item doméstico e observe que, na maioria das vezes, tais itens contêm o rótulo “Made in China”. A grande maioria dessas mercadorias exportadas são fabricadas por trabalhadores migrantes da zona rural da China. Os jovens trabalhadores migrantes trabalham até 11 horas por dia para fabricar essas mercadorias, ganhando salários muito baixos que, em média, chegam a aproximadamente US$ 600 por mês.

Cerca de 250 milhões deles (equivalente a toda a população adulta dos Estados Unidos) fazem a maior parte do trabalho na construção da China, limpam as ruas, trabalham nas lojas e, acima de tudo, trabalham em fábricas e montadoras. À medida que o número de trabalhadores migrantes na China aumentou ao longo das décadas, suas circunstâncias mudaram tanto para melhor quanto para pior. Uma das mudanças mais notáveis é que eles já estão fazendo exigências a fim de melhorar o destino de suas vidas.

Ao contrário dos trabalhadores migrantes mexicanos, que atravessam a fronteira dos EUA para trabalhar na colheita nas fazendas da Califórnia, seus homólogos da China são migrantes internos (domésticos) – pessoas da zona rural que se deslocam de áreas agrícolas pobres para as cidades. No entanto, eles estão sujeitos a muitas das mesmas restrições que enfrentariam se estivessem trabalhando em um país estrangeiro. Eles não gozam dos mesmos benefícios sociais que os residentes urbanos, e eles não têm direito legal de viver ou trabalhar permanentemente nas cidades. Até cerca de uma década atrás, estavam sujeitos a controles muito rígidos sobre seus movimentos que funcionavam de forma muito parecida com o sistema de aprovação de passaportes internos (domésticos) durante o apartheid na África do Sul. Se eles fossem apanhados sem os documentos adequados mostrando que eles tinham um emprego registrado, eles poderiam ser enviados para centros de detenção superlotados e enviados de volta para suas aldeias de origem. Eles tinham que suportar tudo o que seu empregador exigia, já que sua única outra opção era viver na pobreza, caso voltassem para suas aldeias superpovoadas. Os migrantes de sexo masculino eram mais vulneráveis do que as mulheres. Eles enfrentavam mais dificuldades em conseguir empregos em fábricas, já que os gerentes consideravam que as mulheres eram mais dóceis e obedientes.

Uma maneira através da qual os empregadores podiam explorar o sistema de registro de residência era reter um depósito de segurança de um ou dois meses de pagamento e manter com eles próprios os documentos de identidade e as permissões de trabalho dos seus trabalhadores, sem os quais os trabalhadores poderiam ser facilmente presos nas ruas. Com a ameaça de perder dois meses de pagamento ou acabar em um centro de detenção, esses trabalhadores efetivamente se tornavam trabalhadores em regime de servidão. Após aprisionarem os trabalhadores dentro dos complexos de fábricas, os empregadores poderiam pagar o mínimo possível a eles.

Este sistema proporcionou à China uma vantagem decisiva na atração de empresas estrangeiras para estabelecerem fábricas em seu país. Mas o baixo custo do trabalho não foi a única vantagem da China na competição global por investimentos estrangeiros. O governo chinês conseguiu englobar de forma rápida e eficiente uma impressionante infraestrutura a fim de apoiar a industrialização, após um longo período de graves deficiências de infraestrutura sob o governo de Mao Zedong. Dentro de uma década de abertura da China ao mundo exterior no início dos anos 1980, um excelente sistema rodoviário e ferroviário começou a atravessar a nação. Enquanto Bangladesh e alguns outros países que competem com a China por trabalho com baixos salários poderiam oferecer uma força de trabalho ainda mais barata, a China poderia superar essa vantagem com suas redes de transporte e energia bem superiores. A força de trabalho migrante de milhões de trabalhadores disponíveis na China também era comparativamente melhor educada do que a de outros países de desenvolvimento tardio, embora a maioria dos trabalhadores tivesse pouco mais do que a educação primária.

Na década de 1980, a China criou zonas econômicas especiais que ofereciam concessões fiscais e infraestrutura confiável para atrair investimentos estrangeiros. Os investidores que primeiro se apressaram, abriram fábricas ao norte da colônia britânica de Hong Kong. Eles eram principalmente de outros países da Ásia – da própria Hong Kong, ou de Taiwan, Coréia do Sul, Japão e Cingapura. Essas fábricas eram principalmente fornecedoras para marcas globais como Nike, Reebok, Hasbro, Apple e Lévi-Strauss. Na verdade, a maioria dessas empresas famosas logo deixaram de fabricar qualquer produto que tivesse suas marcas. Elas simplesmente controlaram o design do produto, terceirizaram-no para seus fornecedores asiáticos a uma taxa muito barata, importaram os produtos de volta para seus países de origem e os comercializaram a um preço competitivo e ainda obtendo enormes lucros.

Os trabalhadores que fabricam os produtos hoje estão bem na base desta cadeia de produção global e raramente têm qualquer poder de barganha. Normalmente, eles não possuem representação sindical e, se o fizerem, é quase sempre ineficaz. Na China, apenas um sindicato oficial é permitido, e é parte da burocracia do governo com o mandato de manter a estabilidade do trabalho, em vez de ajudar a proteger os direitos dos trabalhadores.

Vida no campo de treinamento: Similar a um campo de treinamento militar

 

Nos anos 1980 e 1990, os trabalhadores migrantes na China às vezes tinham dinheiro suficiente para apenas duas refeições escassas por dia. A maioria nunca tinha visto uma cidade. Quando chegavam em uma cidade, depois de uma árdua viagem de longa distância em ônibus sujos, transportando seus pertences empacotados em sacolas de lona – algumas peças de roupas, roupas de cama, e uma caneca para beber água e se lavar – eles eram facilmente identificados como recém-chegados e tratados com desdém pelos seus compatriotas urbanos.

Os milhões de jovens camponeses inundando as cidades precisavam de algum tipo de abrigo, e as autoridades eram avessas à ideia de ver grandes favelas urbanas surgirem perto das novas zonas industriais. Então, os governos locais e os empregadores começaram a construir dormitórios, frequentemente dentro das premissas das fábricas. Esses dormitórios foram lentamente construídos e superlotados, mas fornecer alojamento deu aos empregadores uma vantagem adicional. Com a eliminação do tempo de deslocamento entre a residência e a fábrica, a rotina diária dos trabalhadores poderia ser compactada e resumida em trabalhar, comer e dormir. Se necessário, eles poderiam ser instados a trabalhar 24 horas sem parar. A Gerência poderia controlar não só a vida dos trabalhadores dentro das fábricas, mas também a sua inteira existência após o trabalho.

Alguns gerentes das fábricas que visitei executavam suas operações como em campos de treinamento do exército. Anúncios para recrutar novos trabalhadores eram normalmente postados fora dos portões da fábrica e a maioria destes anúncios dizia: “Precisa-se de trabalhadoras mulheres: 18 a 23 anos de idade”. Os empregadores descobriram que, em meados dos seus anos vinte, as trabalhadoras não seriam mais capazes de manter o ritmo extenuante e, em torno dessa idade, as jovens voltariam para suas aldeias de origem para se casar e teriam um bebê logo em seguida. Então eles se recusavam a contratar mulheres com mais de 23 anos. Havia uma quantidade suficiente de mulheres jovens e não casadas na China para reabastecer as fábricas e substituir as descartáveis e não tão jovens mulheres.

Os homens jovens constituíam apenas cerca de 10% a 15% da força de trabalho em indústrias de exportação, tais como brinquedos, roupas, calçados e eletrônicos. Eles eram contratados principalmente para fazer os trabalhos que exigiam mais força física, para o trabalho pesado ou envolvidos com máquinas de grande porte. Os homens eram, portanto, mais suscetíveis a acidentes de trabalho: apesar do assimétrico desequilíbrio entre os sexos, os homens representavam de 80% a 90% dos trabalhadores lesionados. Os migrantes masculinos que não conseguiam empregos em fábricas, muitas vezes acabavam fazendo um trabalho igualmente perigoso em locais de construção.

Antecipando-se aos conflitos

 

Em 1994, o governo chinês aprovou uma impressionante lei trabalhista destinada a proteger os trabalhadores de exploração abusiva. Estabeleceu padrões, pelo menos em papel, incluindo um máximo de 40 horas de trabalho por semana, 36 horas extras por mês e salários mínimos legais. No entanto, não se mencionou se as greves eram legais ou não, deixando o direito de greve em uma zona cinzenta. O governo divulgou a nova lei nos jornais e até mesmo nos programas de entretenimento na televisão. Embora o objetivo ostensivo fosse encorajar os trabalhadores a usar os procedimentos legais para resolver as queixas, a intenção subjacente era se antecipar a conflitos trabalhistas.

A aplicação da lei foi problemática em nível local. Os governos locais estavam frequentemente mais interessados em atrair investimentos estrangeiros, e eles sabiam que isto ajudava a ignorar as violações dos direitos trabalhistas. Os trabalhadores mais corajosos, no entanto, começaram a usar a lei para os seus próprios objetivos, levando os empregadores aos tribunais por não pagar salários na data devida, ou processando-os por acidentes trabalhistas. Ao longo da primeira década deste século, muitos milhares de migrantes procuraram a justiça individualmente através do sistema legal. Embora muitas vezes fracassassem, geralmente a tendência era de vitória: os trabalhadores chineses estavam se tornando litigiosos. Às vezes, os trabalhadores ganhavam seus casos em tribunal e ganhavam milhares de yuans como compensação por lesões adquiridas em função de acidentes no trabalho.

Ainda assim, os abusos aconteciam em grande quantidade. Nas cidades, as agências policiais com poder não controlado, tornaram a detenção arbitrária de migrantes em um negócio lucrativo. A polícia detinha os migrantes e depois informava seus amigos e parentes de que eles poderiam pagar um suborno para liberá-los. A mídia era solidária com a situação dos trabalhadores. A cobertura da morte em uma prisão, de um migrante com formação universitária, em 2003, provocou ampla indignação nos fóruns da web, o que obrigou o governo a implementar novas políticas. Os departamentos de polícia da cidade foram despojados de seu poder para prender e deter migrantes. O sistema de registro de residência não foi abolido, mas foi relaxado. Os trabalhadores migrantes ainda não tinham direito a serviços como a escolaridade e o atendimento hospitalar que os moradores locais desfrutavam, mas já não tinham que viver diariamente com medo.

Em meados daquela década, como a China se tornou o local de fabricação mais favorecido na cadeia de suprimentos global, o fluxo de migrantes de 18 a 23 anos para as fábricas não conseguia acompanhar a demanda. Então as fábricas começaram a contratar mais homens – mas mesmo assim não satisfazia a demanda insaciável de trabalho. Os empregadores tiveram que continuar aumentando os salários nos doze anos desde 2004, com porcentagens de dois dígitos em alguns anos. Os trabalhadores migrantes agora podem comprar telefones celulares e estão bem conectados no ciberespaço. Mas, apesar dessas melhorias, a diferença de renda na China continua a se alargar, os trabalhadores migrantes ainda precisam fazer jornadas de trabalho extremamente longas e as violações de seus direitos trabalhistas não cessaram.

Novas demandas

 

Os protestos trabalhistas foram esporádicos e comparativamente pacíficos por duas décadas até cerca de 2005, mas, a partir de então, as greves espontâneas começaram a irromper. A grande maioria das demandas dos trabalhadores, então e agora, envolvia e envolve as violações das leis trabalhistas por parte dos empregadores, salários não pagos e defraudados, além de precárias condições de trabalho.

Os trabalhadores geralmente tentavam primeiro negociar com a administração. Quando a administração se recusava a responder, enviavam representantes às autoridades locais em busca de ajuda. Somente no caso em que, ainda assim, fossem ignorados, eles tomavam as ruas e bloqueavam as rodovias. A interrupção era a forma de atrair a atenção das autoridades. Essas táticas obrigaram as autoridades a mobilizar a polícia, que quase sempre intervinha a favor da gestão da fábrica. Tumultos frequentemente aconteciam após a intervenção da polícia. Os trabalhadores eram às vezes presos, mas frequentemente rapidamente liberados. Ninguém era acusado de participar de uma greve ilegal porque a lei não proibia greves.

Os protestos eram direcionados aos empregadores, mas não contra o governo. Pelo contrário, os trabalhadores viam o governo como uma instituição à qual podiam recorrer para obter ajuda. Os trabalhadores chineses, em comparação com os seus homólogos em outros países em desenvolvimento da Ásia, como o Camboja, a Indonésia e Bangladesh, são relativamente serenos e pacíficos em relação às políticas estatais. Eles não exigiram que o governo aumentasse o salário mínimo legal (que varia de cidade para cidade). Eles não pediram o fim do sistema de registro de residência da China, que os consagra ao status de cidadãos de segunda classe, e eles não exigiram sindicatos alternativos para substituir o inativo sindicato oficial.

Desde 2010, no entanto, a cena trabalhista chinesa sofreu uma transformação. As demandas dos trabalhadores mudaram. Alguns trabalhadores começaram a exigir aumentos de forma que seu salário ficasse acima do salário mínimo. Em um exemplo célebre, após uma greve de 19 dias, os trabalhadores conseguiram um aumento de 30%, o equivalente a cerca de US$ 270 por mês. Um número crescente de protestos agora aborda uma nova demanda: os trabalhadores querem eleições sindicais democráticas no local de trabalho para substituir seus representantes sindicais oficiais. No nível da fábrica, esses representantes oficiais são geralmente nomeados pela Administração.

Rebeldia em Guangdong

 

Em 2014, mais de 40.000 trabalhadores do sul da província de Guangdong entraram em greve na fábrica de calçados de Taiwan Yue Yuan, o maior fabricante de calçados do mundo, a respeito de outra demanda incomum. Eles queriam que a empresa recuperasse o atraso de anos de contribuições não pagas para o fundo de pensão, que os empregadores são legalmente obrigados a fazer, mas raramente fazem para os trabalhadores migrantes. Em 2015, 5.000 trabalhadores em outra fábrica de calçados em Guangdong – a província chinesa líder em exportações de manufaturados – exigiram que seu empregador pagasse as contribuições não pagas para um fundo de moradia para funcionários, equivalente a 5% dos salários.

Durante muitos anos, os trabalhadores não prestaram muita atenção a esses dois fundos, mas recentemente perceberam que seus direitos haviam sido negados. Eles também sabem que as tendências do mercado de trabalho estão mudando, e estão mudando a seu favor e, assim, podem encontrar novos empregos caso sejam demitidos. Então eles estão se manifestando. Em vez de ajudar os trabalhadores a recuperar esses pagamentos legalmente mandatórios, no entanto, os governos locais voltam a se juntar à administração e convocam a polícia para reprimir as greves.

Uma onda de tais greves está exacerbando os problemas econômicos existentes nas cidades industriais de Guangdong. O aumento crescente do custo de vida requer salários mais altos do que no resto da China. Os investidores estrangeiros, sempre vasculhando o mundo em desenvolvimento à procura de locais onde possam pagar baixos salários, começaram a se mudar para províncias mais baratas no interior da China e para países mais baratos no exterior. Muitas empresas, ao fechar suas instalações, fugiram apressada e secretamente, não pagando o salário atrasado dos trabalhadores ou se recusaram a pagar a indenização por despedimento, conforme exigido por lei, deixando os trabalhadores despedidos em dívida e com anos de direitos acumulados que eles nunca receberão. Trabalhadores que souberam através da Internet que outros trabalhadores na região tiveram o mesmo destino e que sua fábrica seria a próxima a ser fechada, entraram em greve ou recorreram a uma ação de rua. O número de greves reativas deste tipo aumentou enormemente nos últimos anos. (De acordo com uma estimativa baseada em relatórios da Internet, houve 1.500 greves desse tipo no primeiro semestre de 2016, mas isto certamente está subestimado.)

As novas demandas do trabalhador são produtos da mudança da composição demográfica da força de trabalho industrial migrante. Nas décadas anteriores, as vagas nas fábricas estavam preenchidas por mulheres do campo, inexperientes, com pouca instrução escolar, solteiras, dóceis e jovens, mas esse cenário não é mais o mesmo dos trabalhadores migrantes de hoje. Os homens agora constituem uma pequena maioria da força de trabalho migrante, mesmo na indústria do vestuário – uma inversão do passado. A imagem de uma mão-de-obra migratória chinesa feminizada e submissa está desatualizada, não apenas em termos numéricos: as trabalhadoras migrantes não mais são dóceis.

A força de trabalho também está envelhecendo. Faz mais de trinta anos que a primeira zona econômica especial da China foi estabelecida em Guangdong. No início, a maioria dos trabalhadores migrantes voltavam para suas aldeias de origem quando seu período de trabalho urbano acabava. Mas, cada vez mais, desde meados dos anos 2000, muitos conseguiram ficar e continuar trabalhando. Alguns já estão na faixa dos quarenta anos de idade e, ocasionalmente, até cinquenta. Experientes e esclarecidos quanto ao modo urbano, querem sua parcela justa de pagamentos em seus fundos de pensão e moradia antes da aposentadoria. Eles, não os jovens, trabalhadores mais bem-educados, são a força motriz por trás das recentes ondas de greves. Tendo gasto sua juventude e a sua saúde em anos difíceis de trabalho árduo, eles estão determinados a exigir o exato retorno que merecem.

Advogados de pés descalços

 

Guangdong experimentou mais protestos trabalhistas do que em outros lugares da China, em parte devido à sua proximidade com Hong Kong. Há cerca de vinte anos, pequenos grupos de base de cidadãos idealistas de Hong Kong lançaram organizações não-governamentais (ONGs) para assumir a causa e desafiar a exploração do trabalho, ao longo da fronteira. Na década de 1990, essas ONGs de Hong Kong começaram silenciosamente a distribuir cópias das leis trabalhistas da China para os trabalhadores em Guangdong, ensinaram os trabalhadores a ler seus contracheques (holerites) para verificar se eles não estavam sendo enganados e os ajudaram a procurar a correção das injustiças através do sistema legal. Elas tentaram ficar fora do radar das autoridades chinesas, embora sua missão declarada fosse estender a “proteção dos direitos trabalhistas” de acordo com as próprias leis da China.

Com um impulso inicial desses pequenos grupos de Hong Kong, ONGs trabalhistas dirigidas por chineses e escritórios de direito trabalhista pro bono (para o bem público) surgiram em grande número em Guangdong e se espalharam por toda a China. Em duas décadas, o movimento assumiu uma vida própria.

Hoje, a maioria das ONGs trabalhistas são administradas por chineses locais com recursos dos trabalhadores. Eles alegam que seu movimento é respeitador da lei, mas eles se tornaram mais ousados, persistentes e decididos. Em meus encontros com eles, não escondem seu desafio, ou o medo da pressão do governo. Aqueles que não conseguiram suportar a tensão abandonaram seu trabalho nas ONGs. Outros discutem planos de contingência em caso de repressão e prisões.

A maioria dos funcionários das ONGs são homens. Muitos estão em seus trinta e quarenta anos de idade. Alguns deles trabalhavam anteriormente em trabalhos perigosos e ficaram feridos em acidentes de trabalho. Depois de perder os dedos, as mãos ou os braços, eles ganharam experiência lutando por compensação. O processo legal prolongado os transformou em especialistas em direito do trabalho, os fortaleceu para lutar em sua própria defesa e preparou a sua determinação, mentalmente e psiquicamente, para ajudar outros trabalhadores a obter compensação através do sistema judicial por salários não pagos ou acidentes de trabalho. Existem muitas centenas desses autodidatas “advogados de pés descalços”.

As autoridades dos governos locais e a secretaria de segurança do estado consideram esta nova cultura de ONGs como instigadores da instabilidade no trabalho. Eles constantemente perseguem os líderes das organizações convidando-os a “tomar o chá da tarde” em reuniões onde uma forma implícita de intimidação é realizada. Às vezes, os agentes do governo entram em seus escritórios em horas inapropriadas para interrogá-los sobre suas atividades e contatos. A vigilância por telefone e computador é tão penetrante que alguns sentem que cada conversa e/ou movimento está sendo monitorado.

Nos últimos dois anos, o assédio se intensificou. Os proprietários que alugam espaços de escritório para ONGs receberam ordens para expulsá-las. Algumas ONGs foram forçadas a se mudar várias vezes, tornando difícil para elas manter contato com os trabalhadores aos quais estão tentando ajudar.

Como o número de protestos e greves dos trabalhadores aumentaram, e como as ONGs trabalhistas resistem à pressão para se dissolverem, as autoridades se tornaram mais repressoras. No primeiro trimestre de 2015, por exemplo, 11 protestos trabalhistas em Guangdong, que foram interrompidos pela polícia, se transformaram em violência física entre oficiais e trabalhadores. As autoridades locais em Guangdong têm utilizado cada vez mais as gangues criminosas como auxiliares contratados. Bandidos mascarados em veículos com placas cobertas foram mobilizados para espancar tanto os trabalhadores quanto os funcionários das ONGs.

Controle mais apertado

 

Desde que o presidente Xi Jinping chegou ao poder em 2012, um aperto político geral na China tem apoiado os recentes esforços para reprimir qualquer potencial conflito trabalhista. Sob os predecessores de Xi, o governo sempre temia a instabilidade social, mas ainda assim a tendência geral era por um abrandamento da repressão. Sob Xi, os temores expressos publicamente pela liderança se intensificaram; sua política tem sido reprimir a dissensão das bases.

Os últimos dois anos testemunharam uma série de repressões de todos os tipos. Em maio de 2015, cinco mulheres ativistas em diferentes cidades foram presas ao mesmo tempo e detidas por cinco semanas, apenas por tentar colocar cartazes em estações de transporte público advertindo sobre o assédio sexual. Em julho de 2015, mais de cem proeminentes advogados de direitos humanos foram presos. Em dezembro, foi a vez das ONGs trabalhistas. Funcionários de vários grupos sindicais foram presos e dois ainda estavam presos no momento em que se escrevia este texto, acusados de terem instigado uma greve recente e recebido dinheiro de ONGs estrangeiras. Em janeiro, um cidadão sueco que trabalha para uma ONG sueca em Pequim, e que treina advogados civis e de direitos humanos, foi preso. Ele foi libertado após ter recitado uma confissão de irregularidade na televisão nacional.

Xi advertiu que ONGs estrangeiras de sociedades democráticas estão espalhando uma ideologia que fomenta a instabilidade social e que qualquer contato com elas é considerado subversivo. Seu governo suspeita que tais organizações tenham instigado as “revoluções coloridas” que derrubaram a velha guarda ao redor do mundo nos últimos anos. Xi tem a intenção de manter toda e qualquer influência estrangeira fora da China.

Em abril de 2016, o governo chinês aprovou uma medida controversa, conhecida como Lei de Gestão de ONGs Estrangeiras. Tal lei limita severamente os contatos entre ONGs estrangeiras e chinesas e, em grande parte, proíbe que ONGs chinesas recebam apoio financeiro do exterior. Neste ponto, não está claro como a nova lei afetará o movimento de ONGs trabalhistas na China. Desde as prisões em dezembro, o comportamento das autoridades locais tem sido ambíguo. Algumas ONGs trabalhistas chinesas continuaram com suas atividades, embora outras possam ser obrigadas a fechar.

Os trabalhadores migrantes chineses precisam de ONGs trabalhistas para promover seus interesses? Em uma palavra, não. Os próprios trabalhadores começaram a exigir melhores condições de trabalho e a reivindicar seus direitos legais. Não mais tão dóceis como eram no passado, eles estão emergindo como uma força ativa cada vez mais disposta a confrontar os empregadores.

Por enquanto, as greves ainda estão isoladas em fábricas individuais em vez de coordenadas em uma escala maior. Com fácil acesso à Internet e uma explosão na quantidade de fóruns on-line, no entanto, não demorará para que surjam protestos trabalhistas mais bem organizados, com coordenação entre múltiplos locais de trabalho. A menos que as autoridades locais mudem de atitude e comecem a resolver as queixas dos trabalhadores, a próxima rodada de protestos provavelmente será violenta.