Por Valério Arcary
Está na hora de começarmos debates de programa mais sérios na esquerda. Tenho medo de ser injusto, mas me parece que demos pouca atenção, até agora, aos efeitos sociais desastrosos do recadastramento das famílias que recebem o Bolsa Família ordenado pelo governo Temer. Não foi coisa pequena. Mais de um milhão de famílias perderam o benefício.
O direito de receber é de toda família com renda mensal de até R$ 154 por pessoa. Surgem diferentes propostas sobre o que fazer. Entre elas, a que me parece mais disparatada é suspender o programa. Um programa focado emergencial de transferência de renda em um país em que milhões vivem na miséria como o Brasil é insubstituível.
A mais extravagante, todavia, é a defesa da universalização do Bolsa Família para todos, independentemente da renda, incluindo, portanto, os ricos. Ela pretende reduzir o mal-estar que uma política assistencialista focada como essa produz em setores das classes médias zangados com os impostos que pagam, e furiosos com a distribuição de “dinheiro para os vagabundos que não param de fazer filhos para não ter que trabalhar”.
Esse ódio de classe de tipo primitivo existe mesmo no Brasil e não deve ser subestimado. Há um raciocínio perigoso, porque superficial, por trás desta hipótese, que é o seguinte: o governo do PT não teria chegado ao impasse do impeachment se tivesse estendido o Bolsa Família, distribuindo renda mínima de sobrevivência para todos. Este argumento é infantil. O impeachment não foi feito para acabar com o Bolsa Família. Foi feito para reposicionar o capitalismo periférico brasileiro no mercado mundial; foi feito para levar o ajuste até ao fim, muito além do iniciado por Dilma/Levy; foi feito para reduzir os custos produtivos, para favorecer a atração de capitais estrangeiros, e para impulsionar privatizações, etc.
Não acredito que o eixo ordenador de um programa de esquerda diante da crise brasileira com seus treze milhões de desempregados, salários em queda, epidemias em alta, evasão escolar, chacinas e tudo o mais, deverá ser a proposta de universalização da renda mínima. Ao contrário, penso que nós vivemos em uma época em que o grande desafio para combater a pobreza e a miséria é um programa mais “tradicional” chamado “trabalho para todos” com “elevação emergencial do salário mínimo”. Redução da jornada de trabalho, sem redução salarial, para que haja trabalho para todos. Direito ao trabalho deveria ser o primeiro direito que organiza a vida adulta de todos.
Tem muita gente honesta fascinada com a ideia de uma renda mínima universal, mas desconhecem a origem desta proposta. Ela está inserida em uma elaboração que remete ao Banco Mundial e à necessidade de focalização das políticas sociais, em alternativa à extensão universal de direitos que prevaleceu nas três décadas de pleno emprego do pós-guerra[1]. Foi reformulada como alternativa tanto ao “Quantitative Easing” (QE), quanto ao “Helicopter Money” [2]. A proposta de distribuir dinheiro sem contrapartidas pode parecer instigante, mas não é, teoricamente, absurda, nem tampouco, politicamente, de esquerda. Foi defendida, seriamente, depois da crise de 2008, até por economistas liberais que argumentaram a favor do “helicopter money” como alternativa ao QE (Quantitative Easing) ou relaxamento monetário.
O dinheiro do helicóptero é uma referência a uma idéia popularizada pelo economista norteamericano ultraliberal Milton Friedman lá atrás em 1969. A ideia principal é que, se um Banco Central quiser contornar uma situação de deflação, e fomentar o aumento da produção de uma economia que esteja funcionando, qualitativamente, abaixo do seu PIB potencial, uma ferramenta eficiente seria, simplesmente, dar a todos os cidadãos, em caráter transitório, transferências diretas de dinheiro.
Os programas de relaxamento monetário (QE) realizados pelos Bancos Centrais desde a crise financeira envolvem compras em grande escala de ativos dos mercados financeiros. Estas compras foram direcionadas pelo FED (Banco Central dos EUA sob a direção de Bem Bernanke) a títulos da dívida pública do governo. A principal diferença entre a QE, como foi realizada e o “dinheiro de helicóptero”, como previsto por Friedman, é que a grande maioria das compras foi uma troca de ativos, onde uma dívida pública é trocada por reservas bancárias.
A renda mínima parece, portanto, ser capaz de mágicas como unificar setores da direita, centro e esquerda. Para frações do ultraliberalismo conservador brasileiro ela é mais eficaz porque elimina obstáculos burocráticos como cadastramentos e controles. Para parcelas da esquerda ela diminue a pobreza, mas ao distribuir para todos, mesmo para os setores médios e abastados, ela contorna o mal estar do ressentimento social.
A proposta tem como argumento a experiência de um Fundo Permanente no Alaska que distribui, desde 1982, uma parte dos dividendos gerados pela exploração do petróleo para todos os residentes, independentemente, de qual seja a sua renda. Você pode pensar: pagar para alguém querer morar no Alaska parece algo razoável como compensação pelo clima glacial.
Mas o governo da Finlândia autorizou, também, uma avaliação controlada deste projeto de política na forma de um teste, substituindo parte de seu sistema de benefícios de desemprego por uma renda básica universal [3]. Até na Holanda algumas prefeituras fazem, também, uma experiência. A socialdemcoracia europeia aderiu a esta proposta: foi um dos eixos da última campanha presidencial através de Benoit Hamon. Mark Zuckerberg do Facebook apoia. Uma renda mínima universal, portanto, incondicional, será, provavelmente, a proposta central da campanha ao Senado de Eduardo Suplicy, do PT.
Muitos entre os defensores da renda mínina consideram obsoleto tentar a luta pelo pleno emprego. Estas ideias despertam, infelizmente, alguma empolgação até na esquerda brasileira. Argumentam que é retrógado pensar a partir de conceitos antiquados ou “fora de moda” como classes sociais, diante da realidade devastadora que se desenha com a introdução de inteligência artificial, automação e desemprego estrutural. Uma nova revolução tecnológica impulsionada pelo capitalismo na era da “economia do conhecimento” seria um progresso incontornável.
A questão da viabilidade econômica da renda mínima, embora não seja, somente técnica, é vital para determinar seu caráter político. Isso porque os efeitos da renda mínima dependem de quanto seria distribuído. Todos os estudos disponíveis indicam que os efeitos da introdução de uma renda mínima universal, em substituição a políticas econômico-sociais como obras públicas, salário-desemprego, previdência e assistência social seriam regressivas. A vida iria ficar mais difícil, e não há raões para acreditar que teria impacto na redução da pobreza ou da desigualdade social [4].
O socialismo teria se demonstrado uma fantasia utópica. Fantasia? Utópica? Por quê? Socialismo significa desmercantilização de tudo que corresponde às necessidades mais intensmente sentidas como universais, a começar pelo próprio trabalho. Será menos utópico um projeto que exigirá a alocação de recursoso nunca inferiores do que 35% ou até 40% do PIB? Não parece mais razoável lutar contra o capitalismo, do que abraçar uma estratégia reformista, não menos impossível de conciliar com a burguesia, de limitar o espaço em que ele opera?
Não há razões sérias pára este tipo de fatalismo. Se o capitalismo contemporâneo não pode garantir direito ao trabalho para todos, tal como ele existe, não merece continuar existindo. Enquanto lutamos para amadurecer as condições subjetivas em que a luta pelo poder e pelo socialismo sejam mais favoráveis, a luta pela ampliação de direitos não pode diminuir.
Assistência social é legítima e deveria ser um pacote em que os beneficiados deveriam ganhar mais do que ganham. Mas essa assistência social deve ser oferecida para aqueles que não podem trabalhar. Sim, porque há uma parcela da população adulta que não pode trabalhar, por muitas e variadas razões. Por exemplo, os doentes. Não obstante, para aqueles que têm saúde física e psíquica para o trabalho, é preciso garantir um emprego digno para todos. Um emprego digno significa um trabalho estimulante, atraente, recompensador, portanto, redentor de nossa humanidade, e não uma brutalização. Nenhum direito a menos.
A premissa oculta por trás da proposta da universalização de programas de renda mínima é uma rendição ideológica irreversível. Significa aceitar que o capitalismo não garantirá mesmo trabalho para todos, mas não podemos defender propostas que desafiam os limites do capitalismo. Assim, em conclusão, é preciso que nos resignemos a viver em um tipo de sociedade na qual uma ou duas em cada cinco pessoas terá que viver de uma renda mínima garantida pelo Estado e, portanto, será uma “clientela crônica”, dependente de receber um Bolsa Família mensal.
Na época do imperialismo, em que o Estado de Bem Estar social está sendo destruído nos poucos países em que ele esteve, parcialmente, em vigor no pós-guerra, essa é uma política reacionária, não uma política de esquerda. Uma política de esquerda é lutar pelo pleno emprego, pelo trabalho para todos.
[1] Roberto Leher. REFORMA DO ESTADO: O PRIVADO CONTRA O PÚBLICO.
http://www.scielo.br/pdf/tes/v1n2/03.pdf
[2] Um artigo disponibizado pelo World Economic Forum, que anima a reunião mundial realizada, anualmente, em Davos, sobre este tema é insuspeito de qualquer enviezamento esquerdista.
https://www.weforum.org/agenda/2015/08/what-is-helicopter-money/
[3] Dois mil desempregados foram selecionados para um teste de renda básica universal. A Finlândia é o primeiro país europeu a fazer a experiência. Não se trata, a rigor, de um programa de Renda Mínima Universal, ou distribuição de “dinheiro de helicóptero” para todos, até bilionários, ou seja, um valor mensal incondicional. A Finlândia também não publicará quaisquer resultados antes do final de 2018, quando se esgota o período de dois anos do teste.
https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/oct/31/finland-universal-basic-income
[4] Daniel Zamora. The Case Against a Basic Income.
https://www.jacobinmag.com/2017/12/universal-basic-income-inequality-work
Comentários