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TEORIA

China – Após 1949: um estatuto invejado, mas….

Publicamos a segunda parte do artigo de  Pierre Rousset sobre o processo de restauração capitalista na China e sus repercussões nas classes sociais, em particular na nova e gigantesca clase operária que se formou no país. Nas semanas seguintes publicaremos textos de sociólogas e pesquisadoras chinesas especializadas no tema dos trabalhadores migrantes que já somam mais de 250 milhões e constituíram uma segunda geração vinda do campo.(Editoria Internacional) 

 Tradução: Boris Vargaftig

Uma nova classe operária se formou na República Popular da China (RPC). De 3 a 8 milhões antes de 1949, após 30 anos atingiu 100 milhões. Os empregados estatutários das estatais constituiam os amplos batalhões industriais e os demais trabalhando em empresas coletivas na cidade e no campo.

Recrutados no quadro de uma política global de salários (“salários baixos, numerosos empregos”), os trabalhadores urbanos do novo setor estatal se beneficiavam do status desejável de “trabalhador e empregado”, com vantagens sociais: domicílio, bônus para cereais, financiamento dos estudos dos filhos, serviço de saúde, lojas dedicadas, garantia de emprego permanente, aposentadoria etc. Cada trabalhador era nomeado numa empresa e numa unidade de trabalho, assim como na França os funcionários são destacados para um posto. Ao chegar à idade de aposentadoria um operário podia frequentemente transmitir seu status a um membro da família.

Os ritmos de trabalho não eram intensos; nesta matéria, os compromissos entre a administração e os operários constituíam a regra.  Entretanto, a vigilância política exercida pelo Partido não deixava de ser detalhista, inclusive controlando a vida pessoal, pois o perigo era o de expressar opiniões consideradas “contrarrevolucionárias”. Os trabalhadores urbanos estavam protegidos contra a pressão eventualmente exercida pelo êxodo rural sobre seus empregos, pois os camponeses eram proibidos de se fixarem nas cidades. Para alguns pesquisadores, a condição do pessoal empregado nas empresas estatais pode ser descrita como “semi-classe média”. De qualquer forma, a situação desta classe operária, na época maoísta, estava muito distante da superexploração característica de um período de acumulação primitiva do capital!

Beneficiando-se de amplos privilégios, se comparados ao resto da população (excluindo-se os quadros do Partido-Estado), a classe operária durante muito tempo forneceu uma base social sólida para o regime maoísta, sendo por vezes mobilizada contra intelectuais e estudantes contestadores. A classe tinha uma elevada consciência social de si, porém desprovida de autonomia política; permanecia subordinada ao PCC na ausência de sindicatos independentes ou de pluralismo político.

A classe operária do setor estatal foi a última a ser afetada pela crise do regime maoísta, mas não escapou do tumulto da “revolução cultural” (1966-1968) na qual os trabalhadores precários (continua havendo) intervieram muito cedo. Durante essa grave crise, reivindicações sociais e democráticas profundas foram expressas, mas poucos movimentos radicais souberam assumir sua independência frente às lutas pelo poder no seio do Partido-Estado. Por falta de perspectivas, o levante social caiu em uma hiper-violência fracional. Com o apoio do Exército, o caos foi substituído por uma ditadura burocrática

particularmente intolerante.

O renascimento do capitalismo chinês condenava ao desaparecimento a classe operária formada durante o regime maoísta. Ideologicamente, o enriquecimento de alguns era exaltado e não mais o trabalho. Numerosas empresas estatais deviam ser preparadas para a privatização, os ritmos de trabalho acelerados, as proteções sociais desmanteladas.

A classe operária do setor estatal opôs uma resistência surda e global, marcada por violentas explosões ao programa de reformas. Muitos diretores de empresas preferiram negociar um compromisso a enfrentar seus assalariados. O proletariado chinês foi incapaz de propor uma alternativa política ao regime, mas o regime foi incapaz de impor sua política aos assalariados. Foi então decidido remover da produção, em bloco, esta classe operária resistente, com aposentadorias antecipadas, paralisações permanentes da produção ou mesmo demissões.

Para esconder a explosão do desemprego, o poder inventou uma nova terminologia para exprimir uma “característica chinesa”: “fora do posto de trabalho”, “aguardando posto de trabalho”…. Uns 40 milhões de trabalhadores foram assim retirados formalmente da produção.

Em 1995, os assalariados das empresas estatais eram 112 milhões – acrescidos de 35,5 milhões do setor cooperativo. Em 2003, estes números caíram respectivamente a 69 e 9,5 milhões. Sendo as primeiras a serem demitidas, as mulheres representaram 70% das pessoas despedidas.

Os trabalhadores indocumentados da China

Em um país como a França, os funcionários públicos são também substituídos por assalariados com estatuto “privado”, porém mais progressivamente e o mencionado setor privado já existe. Na China, uma camada de trabalhadores qualificados, de técnicos e engenheiros provindos do setor estatal, foi mantida em atividade; para a massa dos assalariados foi, entretanto, preciso criar uma nova classe operária, cujos batalhões foram novamente fornecidos pelo campesinato. Esta mão de obra estava disponível graças ao desencadeamento do êxodo rural; uns 250 milhões de camponeses (metade composta por mulheres) percorriam então ilegalmente o país à procura de emprego.

Os camponeses não podiam se deslocar livremente em seu próprio país, pois necessitavam de uma permissão para se estabelecerem fora de seu

vilarejo de nascimento. Esta medida administrativa (10) revelou-se muito eficaz no contexto da transição capitalista. Ilegais, os migrantes rurais se viram na situação de “trabalhadores indocumentados do país”. O regime pode assim abusar de uma mão de obra totalmente exposta.

Provinda do período maoísta, a mão de obra camponesa era bem mais formada que em muitos países do terceiro-mundo e havia se beneficiado

do melhor acesso à saúde. Estes migrantes rurais desenraizados não possuíam mais tradição de luta, ignoravam tudo dos direitos sociais e pretendiam retornar um dia ao vilarejo de origem. Isto tudo era vantagem para um capitalismo selvagem e para povoar as zonas francas e a indústria de exportação que empregam atualmente mais de 20 milhões de trabalhadores, dentre os quais 70% de mulheres. Uma classe operária correspondente a um período de acumulação primitiva de capital chinês, de acordo com as exigências das multinacionais.

Nas empresas do Estado associadas a capitais europeus e americanos, ou nas fábricas de algumas empresas ocidentais, a situação dos trabalhadores é geralmente melhor, mas não representam senão um segmento muito reduzido do mercado de trabalho chinês. Os ocidentais recorrem, aliás frequentemente, a intermediários asiáticos, sem dar muita atenção para as condições de exploração impostas pelos seus correspondentes e fornecedores.

No conjunto – e em particular nas fábricas taiwanesas e sul-coreanas – as condições de trabalho pioraram fortemente: horários muito longos,

ritmos de trabalho infernais, desrespeito dos tempos e dias de repouso, vigilância intensa (controle do uso dos sanitários), salários muito baixos, enquadramento repressivo, inexistência de normas de segurança (incêndios), acidentes frequentes, descuidos na saúde (produtos tóxicos) etc. É uma situação típica dos períodos de acumulação intensa e primitiva do capital – e tudo isto com a cumplicidade ativa das autoridades locais.

A segunda geração de migrantes chega atualmente ao mercado do trabalho. Contrariamente aos seus pais, não pretende retornar ao vilarejo e conhece o meio social em que nasceu. Tem mais condições de defender seus direitos, mas não possui organização para ajudá-la, sendo que o suicídio continua, com excessiva frequência, a constituir uma resposta a condições intoleráveis de trabalho.

A reviravolta da ordem social

A ideologia dominante não exprime necessariamente a realidade de um regime. Assim a invocação da democracia tem, frequentemente, o objetivo de esconder sua ausência. Apesar disto, grandes alterações ideológicas ou jurídicas refletem grandes alterações sociais.

Na época maoísta, a classe operária foi constitucionalmente elevada à categoria de “classe dirigente” e o campesinato como classe “semi-dirigente”.  Ambas estão hoje simbolicamente marginalizadas e é a propriedade privada (no sentido capitalista, incluindo os meios de produção) que a Constituição deve proteger. A riqueza privada, até mesmo as grandes fortunas, e a empresa privada, são atualmente consideradas eminentemente legitimas e honradas. Trata-se de uma reviravolta ideológica e jurídica radical em relação ao regime maoísta.

As condições de entrada na OMC (Organização Mundial do Comércio) em 2001 atribuem ao capital (notadamente estrangeiro) direitos consideráveis. Quando a modificação das leis se atrasa em relação aos apetites capitalistas da burocracia, os regulamentos são ignorados. Assim, por exemplo, os departamentos administrativos não possuem o direito de criar suas próprias empresas – o que, entretanto, não deixam de fazer.

Nas cidades, na época do maoísmo, os trabalhadores eram retribuídos segundo uma tabela salarial fixada pelos ministérios. Os camponeses recebiam com frequência pontos-trabalho atribuídos pelas comunas populares. Hoje, o trabalho salarial é novamente uma mercadoria.

Devido à privatização das terras urbanas e suburbanas, à especulação imobiliária, ao reagrupamento dos novos ricos em bairros separados e protegidos onde ostentam um modo de vida de “novos ricos”, o espaço urbano é remodelado segundo normas profundamente não igualitárias.

O campesinato inicialmente acolheu favoravelmente as reformas impulsionadas por Deng Xiaoping, que privatizavam parcialmente a agricultura. As famílias receberam o direito de utilizar uma parcela de terra, em troca de um imposto e da venda ao Estado de parte da colheita a um preço inferior ao do mercado. Com o tempo, este imposto tornou-se cada vez mais elevado para financiar a burocracia. Zonas são arbitrariamente declaradas urbanizáveis para facilitar as operações especulativas. Grandes obras e a poluição têm consequências cada vez mais graves. Gangues impõem a lei de potentados locais.

Novas diferenciações aparecem no campesinato. Uma minoria aproveita a proximidade de mercados urbanos. Porém a pauperização e a precarização ameaçam uma parte importante da população rural. O desemprego se torna estrutural e uma vasta “população flutuante” vive agora à margem da sociedade.

O poder deseja uma mudança jurídica do estatuto das terras agrícolas que autorize sua privatização – uma modificação da lei que facilitaria a apropriação capitalista das terras.

O acesso à educação tornou-se altamente desigual. No período entre o fim dos anos 1970 e os anos 1990 ocorreu a reintrodução de exames para o ingresso na Universidade, seguida da possibilidade muito seletiva de estudar no estrangeiro e da criação de um “comércio de diplomas” no ensino superior, sem falar do aumento dos custos das inscrições.

Na época maoísta, os intelectuais possuíam uma posição muito inferior (a nona) na hierarquia social. Eles apoiaram as reformas de Deng Xiaoping e a promoção da ciência contra a primazia da política; entretanto, em seu conjunto e a longo prazo, não se beneficiaram disto. Uma pequena minoria se integrou à nova elite burguesa, fornecendo-lhe seus ideólogos. Os peritos (engenheiros, juristas, economistas, jornalistas, pesquisadores dos “think tanks” pró-capitalistas) galgam importantes postos de responsabilidade.

Para Mao, a sociedade somente evoluiria sob a pressão de suas contradições internas e através da luta de classes. Agora que as contradições sociais explodem, o país, a crer no que diz a atual direção do PCC, vive em “harmonia”: a reviravolta ideológica é mais uma vez radical.

Durante um longo período, o regime tentou esconder a importância das rupturas, utilizando fórmulas que refletiam o aprofundamento das reformas: isso começou com a “economia dirigida pela planificação com o apoio do mercado”, em seguida a “economia mercantil planificada” e, mais tarde, o “sistema econômico socialista do mercado”. Percebe-se o declínio do setor público! No início dos anos 1960, no seio da direção do PCC, os debates a respeito da orientação econômica opuseram os “radicais” aos “moderados”. Entretanto, entre este passado e o presente, o objeto mudou muito. Não se trata mais de tornar o sistema “flexível”, liberalizando um pouco a economia ou procurando obter um melhor equilíbrio entre a cidade e o campo, a indústria e a agricultura. A sociedade de fato mudou de bases.

O Estado evidentemente não é neutro nas grandes transformações da ordem social. Após a tomada do poder em 1949, ele serviu de forma decisiva para romper o domínio das antigas classes dominantes e formar uma nova classe operária no setor estatal. A partir dos anos 1980 e 1990, serviu também de forma decisiva a assegurar a reconstituição de novas elites burguesas, a retirar da produção a classe operária herdada do maoísmo e formar uma outra, explorando massivamente o reservatório dos migrantes rurais sem papéis. Diga-me a quem você serve e eu te direi quem és: o Estado chinês atual é indubitavelmente burguês!

Uma contrarrevolução sem data?

Toda revolução social é um processo: existe um antes e um após a “tomada” do poder. As transformações sócio-econômicas nunca são instantâneas. Podemos, entretanto, datar a vitória temporária das grandes revoluções do século XX: outubro 1917 na Rússia e outubro 1949 na China, 1945 na Iugoslávia, 1959 em Cuba, 1954 e 1975 no Vietnam. Estas datas não são só simbólicas – a proclamação dos novos regimes – mas marcam uma ruptura substancial: um aparelho de Estado se desintegra em escala nacional, um outro emerge; um exército substitui o outro; os partidos que encarnam a ordem antiga são dissolvidos em benefício de um partido provindo da luta revolucionária; um poder político alternativo ganha formato.

No detalhe, tudo pode se complicar. Em função das formas assumidas anteriormente pelo combate revolucionário (existência ou não de importantes zonas liberadas), as transformações sociais podem ser iniciadas ou simplesmente anunciadas. A ordem antiga pode ainda controlar uma parte mais ou menos significativa das relações sociais e gangrenar uma administração herdada do passado. A nova ordem deve ainda ser consolidada. Apesar de tudo isso, o “momento” da “tomada do poder” não deixa de representar um ponto decisivo.

Isso é bem menos evidente no que diz respeito à contrarrevolução, que desfaz o que socialmente havia efetuado a revolução, como o mostra o caso chinês. Pode-se certamente identificar pontos de inflexão do processo de restauração capitalista: ele se torna concebível ao final dos anos 1970, começa no decorrer dos anos 1980, se afirma claramente nos anos 1990, originando uma nova potência dita “emergente”. Porém, o conjunto parece ser o produto de uma evolução gradual no quadro do mesmo Estado, sob a direção do mesmo partido, enquadrado pelo mesmo exército. Há pontos de inflexão críticos, como no caso da nova política de reformas adotada em 1992, mas não o equivalente ao Outubro de 1949 da contrarrevolução burguesa, uma tomada do poder,

pois em 1992 o poder já havia sido conquistado.

Para alguns, o fato de não ser possível “datar” a vitória da contrarrevolução burguesa mostra simplesmente que não havia ocorrido revolução social e que o Outubro de 1949 não era senão um mito. Inversamente, para outros, isto prova que a dita contrarrevolução ainda não venceu. Para os primeiros, o PCC já era burguês no momento da conquista do poder; para os segundos, ele continua como fiador de uma via não capitalista, de um socialismo de mercado “à moda chinesa”. Problema: houve de fato duas transformações radicais da estrutura de classes na China, na sequência de 1949, primeiro, e após as “reformas” de Deng Xaoping, em seguida.

A dificuldade para “datar” a conquista do poder pela burguesia chinesa não deixa de ser significativa. Indica que o processo da contrarrevolução não é a imagem invertida, como num espelho, do processo revolucionário. Toma caminhos diferentes, particularmente numa sociedade de transição, e deve ser entendido em sua especificidade – trata-se de uma das questões fundamentais que nos coloca a história da China contemporânea.

 

Sociedade de transição

Primeiro elemento de resposta: as peculiaridades de uma sociedade de transição onde nenhum modo de produção impõe sua regra. O capitalismo não o pode mais, porém o socialismo não o pode ainda, deve ainda ser construído e a vitória não está garantida!

Quando o capitalismo consegue as condições de sua reprodução, as “concordâncias” se impõem. A classe dominante, o Estado, as relações

sociais “hegemônicas”, a ideologia dominante, são burgueses (11). Em uma sociedade de transição prevalecem as “discordâncias”. A mudança do poder político ocorre bem antes que nasça uma economia socialista. O Estado pode servir para desenvolver novas relações de produção, mas estas relações não são ainda “hegemônicas” e um modo de produção não domina o Estado através de uma classe provida do poder social. É por isso que a caracterização de um Estado numa sociedade de transição coloca tantos problemas (12).

Mesmo se uma democracia socialista funcionasse, o que não era o caso na China maoísta, o proletariado não seria uma classe dominante consolidada da mesma forma que a burguesia o é no capitalismo. As relações entre os assalariados e o campesinato são instáveis, enquanto que sem os últimos a revolução não mais seria majoritária. A “construção do socialismo” nada tem de automático, particularmente quando o ambiente internacional é hostil. A “autonomia relativa” do Estado ganha uma dimensão qualitativamente mais importante que em uma sociedade em que o predomínio de um modo de produção está bem estabelecido.

Burocracia e Estado. Nessas condições, é fácil entender a relação incestuosa entre o Estado e a burocracia. Uma soma de burocratas não constitui uma burocracia no sentido em que entendemos aqui, como uma entidade social provinda de um processo durante o qual ela se cristaliza e toma conhecimento do seu próprio ser, dos seus interesses coletivos.

O Partido-Estado é o quadro no qual se consolida esta camada social e através do qual ela impõe seu domínio sobre a sociedade, com a qual

ela se identifica, que ela faz seu: “O Estado somos nós”. Perdendo durante este processo suas raízes populares (13), o Partido muda, sem, no entanto, tornar-se burguês.  Porém, já sendo o Estado da contrarrevolução burocrática, ele pode se tornar o instrumento da contrarrevolução burguesa.

Aburguesamento na cúpula. De fato, a transição capitalista não exige, no caso da figura aqui discutida, a derrubada de uma camada dominante e

sua substituição por outra. O proletariado e os meios populares são excluídos de um poder monopolizado pela burocracia. A nova burguesia nasce da transformação desta última em classe possuidora, proprietária, estimulada por um contexto mundial eminentemente favorável a tal mutação.

As frações da burguesia chinesa exteriores ao Estado não estavam numa posição para reivindicarem para si o poder e de enfrentar a burocracia

em vias de aburguesamento. O embate desenrolou-se essencialmente na alta direção. No que diz respeito à China, este processo não deixou de ser

marcado por crises, dentre as quais a mais importante, a de 1989: não foi um longo rio de águas tranquilas. Em princípio, entretanto, o desenvolvimento capitalista poderia se ter desenvolvido de forma ainda mais insidiosa: constata-se um belo dia que o capitalismo domina a sociedade sem poder “datar” o ponto de inflexão qualitativo.

 

Um retorno à teoria da revolução permanente.

Segundo alguns autores, a emergência da potência capitalista chinesa implicaria em que a teoria da “revolução permanente” (assim como os conceitos da “revolução ininterrupta”, que lhe são aparentados) não era justificada – ou ao menos revelam-se hoje invalidados.

O tema da “revolução em permanência” (14) provém do século XIX e é encontrado em diversos autores marxistas, a começar pelo próprio Marx. Diz respeito à dinâmica iniciada por um levante revolucionário em um país onde o capitalismo ainda não tenha consolidado sua lei: uma vez em luta, as camadas populares tendem a defender seus próprios objetivos de classe e a ultrapassar os limites determinados à revolução pelas direções burguesas iniciais. Assim, a dinâmica das lutas sociais poderia colocar na pauta uma perspectiva socialista antes que a “etapa capitalista” houvesse terminado ou até seriamente iniciado.

Leon Trotski, particularmente no início do século XX, desenvolveu esta abordagem, concluindo que na época imperialista as burguesias

nacionais dos países dominados eram incapazes de realizar plenamente as tarefas democráticas historicamente identificadas com as revoluções burguesas do século precedente – tarefa que, então, incumbiria ao proletariado aliado ao campesinato. Em particular, estas burguesias não poderiam mais libertar a sociedade do domínio das grandes potências capitalistas e resolverem positivamente a questão nacional.

Nos séculos XIX e XX a possibilidade da “transformação socialista” de uma “revolução democrática” com base popular permanecia condicional.

Para se consolidar, um poder revolucionário deveria se beneficiar de uma extensão internacional da revolução, particularmente nos países capitalistas desenvolvidos.

De forma geral, esta análise foi historicamente confirmada. Após o Japão do século XIX e antes do início do século XXI, nenhuma burguesia de um pais dominado soube se liberar do domínio imperialista. Nenhuma das grandes revoluções sociais do século XX, que romperam este vínculo de subordinação, foi dirigida pela burguesia e assegurou o desenvolvimento de um capitalismo independente.

É especialmente notável que nenhuma burguesia nacional (na América Latina, por exemplo) tenha aproveitado as guerras mundiais do século XX para se alçar ao nível internacional, no momento em que as potências beligerantes não mais podiam exercer seu controle com a mesma força. São os movimentos revolucionários que se lançaram na brecha: revolução russa em 1917, revoluções iugoslava, chinesa ou vietnamita em 1945.

Por outro lado, ocorreu a extensão internacional da revolução, mas não nos países imperialistas, o que afinal de contas contribuiu para o esgotamento da dinâmica popular nas novas sociedades de transição e à burocratização de seus Estados.

Uma teoria válida por mais de um século não estava errada! Estaria ela hoje ultrapassada? Sim, mas sobretudo não.

Não, porque continua indispensável para se compreender em que o mundo mudou no passado e muda atualmente. Se o Japão tivesse podido fazer sua revolução burguesa, é porque não tinha ainda passado sob domínio imperialista e a estrutura de classes do país estava apta a um

desenvolvimento capitalista. Se a China pode fazer o mesmo hoje é como vimos, por razões idênticas. A teoria da revolução permanente (e mais genericamente, do “desenvolvimento desigual e combinado”) ajuda a analisar porque o que era possível anteontem (Japão), não o foi ontem e se torna possível hoje. Uma teoria que permite assimilar o novo e ultrapassar suas conclusões anteriores não é inválida!

Sim, a teoria da revolução permanente, tal como formulada há um século, está ultrapassada, mas no sentido em que deve ser repensada dentro do atual contexto mundial, assim como o tema da “revolução em permanência” do século XIX teve que ser repensada em função do aumento do poder dos imperialismos tradicionais e da consolidação do mercado mundial, assim como das mudanças induzidas nas formações sociais dos países dominados.

Mas não, a teoria da revolução permanente não continuou a mesma durante um século inteiro. As formações sociais dos países dominados

sempre conheceram evoluções diferenciadas e há muitas décadas uma discussão prossegue a respeito – por exemplo, a respeito das noções de

“país semi-industrializado” ou de “subimperialismos”. As revoluções do século XX no terceiro mundo permitiram enriquecer consideravelmente a compreensão das convergências sociais capazes de conduzir um processo revolucionário “permanente” ou “ininterrupto” (vejam-se a questão camponesa ou indígena, ou ainda a segunda onda feminista). A experiência da burocratização destas revoluções atribuiu uma nova “densidade” a elementos essenciais de um programa socialista, que são a autoemancipação e uma democracia concebida do ponto de vista do povo.

A atualização prosseguiu, por exemplo, com sua atenção na disputa ecológica, mas é necessário certamente trabalhar mais sistematicamente a respeito de todas as consequências do novo modo de dominação imposto pela mundialização capitalista. Isto inclui: a esterilização da democracia burguesa, a transformação acelerada de todas esferas da vida social,  incluindo-se até mesmo a vida, em mercadoria, a reorganização do trabalho e as novas tecnologias, a precarização de partes inteiras da sociedade, até mesmo no “Norte”, a ativação de muitos conflitos identitários por dinâmicas não progressistas, a retomada da competição entre as potências, a crise ecológica global, a incidência dos fenômenos climáticos extremos e de aquecimento atmosférico. Quais são hoje as formas “adequadas” de internacionalismo?

Finalmente, as conclusões estratégicas da teoria da revolução permanente não caducaram. Não ocorreu uma volta atrás às horas “gloriosas” das grandes revoluções burguesas passadas. É parte do passado quando, face à ordem antiga, manifestavam um potencial democrático.

Na realidade, a democracia burguesa está vazia de todo conteúdo até mesmo nos países ocidentais que foram seu berço. No seio da União Europeia, por exemplo, os tratados removeram dos parlamentos eleitos o direito de decidir a respeito da orientação socioeconômica do país – sem escolha, não há democracia. Os avanços do capitalismo são muito caros e nos jogam numa crise ecológica catastrófica que somente será limitada quebrando a ditadura mercantil. Falar de “revolução democrático-burguesa” tornou-se ainda mais do que ontem uma contradição em seus termos.

Somente revoluções anticapitalistas em seu conteúdo e antiburocráticas em sua dinâmica poderão devolver seu sentido à palavra “democracia”.

A questão é importante porque num plano internacional, correntes de esquerda provenientes notadamente do maoísmo (mas não só) consideram positiva a emergência do potencial chinês, mesmo quando reconhecem que se tornou capitalista – ao menos porque contribuiria para “equilibrar” as relações de forças mundiais. Num próximo artigo voltaremos ao papel geopolítico de Pequim, particularmente na Ásia oriental. Digamos simplesmente, para concluir o presente, que este papel contribui para tornar os povos da região reféns dos conflitos de poder.

Notas

  1.    Esta medida administrativa é bem antiga, mas foi utilizada pelo PCC para limitar o êxodo rural para os centros urbanos e as regiões costeiras, assim

como para reforçar seu controle político. Ela continua a existir, mas é hoje mais flexível em sua aplicação e caducou parcialmente.

  1.    Isto não exclui evidentemente a originalidade e a complexidade de cada sociedade (de cada “formação social”) onde cada instância (Estado etc.)

é o produto de uma história determinada, e relações sociais herdadas de épocas diversas se combinam e as relações com a ordem mundial diferem

(presente ou passado colonial etc.).

  1.    As leitoras e os leitores perspicazes terão provavelmente notado que utilizo o conceito de Estado burguês, mas evitei utilizar o termo Estado operário.

A proximidade das fórmulas me parece resultar em confusão, sugerindo que a relação entre Estado e classe (dominante) seria similar, o que justamente

não é o caso. Particularmente nas sociedades de transição, parece-me mais útil identificar as contradições que ocorrem no Partido no poder ou no

Estado do que refletir através de “definições” (a “natureza de…”).

  1.    Ver “A China do século XX em revoluções, II – 1949-1969, citado.
  2.    Para simplificar o texto, emprego a formula “revolução em permanência” ao me referir aos textos de Marx a respeito, “revolução permanente”

para os de Trotski e da tradição trotskista, e “revolução ininterrupta” para a tradição maoísta. Não se deve, entretanto, “fetichisar” estes termos,

pois as eventuais nuances de sentido entre todos não resistem à sua tradição, em particular em idioma chinês.