Bruno Figueiredo*, de São Paulo (SP)
Quem confia na democracia?
Não se pretende aqui analisar a inocência ou não de Lula. Não é isso que está em julgamento, neste artigo, mas sim a democracia no Brasil e o Poder Judiciário como parte de tal engrenagem. O conceito moderno de democracia surge e se consolida juntamente com a Revolução Francesa. Neste processo surge o conceito de três poderes independentes – Legislativo, Executivo e Judiciário.
No Brasil, esta suposta tripartição dos poderes sempre esteve sob suspeita. Um caso concreto: Michel Temer, que é investigado, indicou um ministro do Supremo e a Procuradora Geral da República, agora responsável por lhe investigar. A ideia de que o Poder Judiciário seria “neutro” é uma ficção. Agora pode-se ver que “o rei está nu”, e a vista não é nada agradável.
A democracia no mundo está sob ameaça. Artigos em conceituados veículos liberais de países imperialistas, como The Economist e The New York Times, têm avaliado que a posse de Trump deixou mais evidente que uma ameaça à democracia paira sobre os EUA.
No Brasil pode-se destacar três movimentos combinados do golpe. O primeiro foi o suposto “impeachment” de Dilma. Onde houve uma evidente manobra parlamentar que resultou no afastamento de uma presidente eleita. De modo que a população havia votado em um projeto de governo e viu subitamente assumir um outro governo sem que tenha sido submetido ao escrutínio popular. Em uma democracia minimamente séria, por muito menos, teriam sido convocadas novas eleições gerais.
Os apoiadores do governo dizem que não houve golpe pois os tanques não estariam nas ruas. O segundo movimento é o uso das Forças Armadas e a sua ameaça. Podem ser destacados três exemplos deste uso. Um primeiro foi o uso de um militar do exército infiltrado para forjar uma prisão ilegal de pessoas que estavam se dirigindo para uma manifestação contra o governo. O segundo exemplo foi quando Temer, acuado pelas manifestações populares, autorizou o uso do exército para reprimir um ato em Brasília. O outro exemplo foi o fato de oficiais de elevada patente dizerem abertamente que dariam um golpe e isso não ter qualquer consequência.
Os três exemplos demonstram que as Forças Armadas estão sendo usadas como arma contra a oposição. Todas as Revoluções burguesas, como pauta democrática mínima, determinaram a proibição dos governantes de usaram o Exército contra seus opositores. Desta forma os tanques talvez não venham a ser usados de forma mais direta. Em 1964 os tanques não chegaram a disparar, mas mesmo assim foi um golpe, que se recrudesceu em 1968.
Agora o golpe chega a um novo patamar. Está evidente que, pelo voto popular, a maioria tende a apoiar o retorno do projeto de governo que foi deposto. Ou seja, o projeto do PT, personificado em Lula, ganha força a cada ataque e direito retirado pelo governo Temer. Pode-se não ter acordo com tal projeto, mas se essa é a vontade popular esse deve ser o projeto que deve governar. Se a burguesia se utiliza de uma manobra para inviabilizar isso então estamos diante de um golpe. Portanto, existe um golpe dentro do golpe. Ou seja, uma manobra para perpetuar o golpe.
O Judiciário no banco dos réus
O 24 de janeiro foi um dia histórico. Muito se tem falado sobre o julgamento de Luís Inácio Lula da Silva no TRF da 4ª Região, sendo difícil escrever algo sem ser redundante. As abordagens em geral se dividem entre aqueles que apoiam a Operação Lava-Jato e os que apoiam Lula. Entretanto, é possível existir outra forma de observar o caso sem que isto signifique apoiar Lula ou mesmo a Lava-Jato. Aqui cabe, antes de se pretender julgar ou não Lula, analisar o processo em si. Ou seja, analisar a Lava-Jato e suas consequências.
Não é o foco do presente artigo uma aprofundada análise sobre Lula. Mas cabe pontuar alguns aspectos fundamentais sobre o mesmo. Lula foi, e provavelmente ainda é, a principal direção da classe trabalhadora brasileira desde o fim da ditadura. Foi durante décadas uma esperança. Entretanto, os governos do PT representaram uma derrota para a classe trabalhadora. Um setor da classe trabalhadora lhe condena politicamente por ter governado junto com os empresários. Neste sentido, político, a classe trabalhadora tem todo o direito de condenar Lula.
Entretanto, não é por isso que ele está sendo condenado pelo Judiciário. Não está sendo condenado na Lava-Jato por seus defeitos, mas pelo contrário, por aquilo que ele diz representar. A condenação de Lula ocorre justamente por sua origem operária, pelo fato de representar uma esperança para a classe trabalhadora. Ou seja, existe um setor burguês que tem um projeto de governo que, neste momento, é incompatível com o projeto da Frente Popular, de Lula. Isso não quer dizer que o projeto do PT seja revolucionário, quer dizer que a burguesia não vê margem nem para as concessões que tal projeto poderia significar.
Qual o papel do Poder Judiciário? Seria o Poder Judiciário um ente neutro acima das classes sociais? Muitas pessoas entendem a “Operação Lava-Jato” como algo “neutro”, fruto talvez do acaso. No Direito costuma-se fazer uma avaliação do processo, que se chama análise preliminar. A operação “Lava-Jato” não é obra de forças ocultas ou caiu do céu. Portanto, suas decisões são tomadas por seres humanos. Neste sentido cabe uma análise se os mecanismos usados no julgamento de Lula são democráticos. Ou seja, dizer que existe uma nulidade no julgamento não quer dizer que haja acordo com Lula, mas que o julgamento não poderia lhe condenar.
Cinco violações da Operação Lava-Jato contra Lula
1 – Competência de Curitiba?
Uma questão “inusitada” está na própria origem da operação. Os fatos dos quais o Sr. Luís Inácio é acusado teriam ocorrido em São Paulo, Brasília ou Rio de Janeiro. Nenhum teria ocorrido em Curitiba. Na capital paranaense um doleiro teria um esquema de lavagem de dinheiro, que envolvia postos de gasolina e por isso foi batizado de “lava-jato”. Curiosamente, o Sr. Alberto Youssef se tornou delator. De modo que não se pode ter certeza de que desde o primeiro momento tenha sido tudo armado. Ou seja, a cidade escolhida para tramitar o processo não obedeceu ao critério do que se chama o “Juiz Natural”. Isso quer dizer que nenhuma das partes poderia influenciar para escolher o juiz que lhe apeteça. Em tese, no mínimo teria que ter sido sorteado um juiz ou em Brasília ou São Paulo. De modo que a escolha do Dr. Sérgio Moro representa uma nítida violação ao princípio do Juiz natural. Portanto, há uma violação a uma garantia democrática.
2 – Condução coercitiva
Lula chegou a ser preso de forma ilegal. Desde o fim da Idade Média existe uma grande garantia democrática, que é a presunção de inocência. Portanto, ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo. Na ocasião que Lula foi preso o argumento foi uma suposta “condução coercitiva” para tomar o seu depoimento na fase de inquérito. Sequer as pessoas são obrigadas a depor no inquérito. Este espetáculo foi orquestrado na mesma época do impeachment.
3 – Divulgação de escuta ilegal
Quando Lula foi nomeado por Dilma como ministro, o Dr. Moro vazou de forma ilegal uma gravação de um grampo, que também era ilegal. Em qualquer país sério um juiz de primeira instância não poderia grampear ilegalmente uma Chefe de Estado falando com um ex-presidente. Pior ainda, foi vazado o grampo e não houve qualquer consequência. Ou seja, depois desta atuação tendenciosa e parcial o mínimo seria o juiz ser considerado suspeito, e o processo ser redistribuído por sorteio.
4 – Julgamento com juízo prévio
O processo se mostra inquisitório por vários aspectos. Mas um elemento muito simples é o fato de que tanto o Dr. Moro quanto os desembargadores do TRF antes do julgamento pronunciaram suas respectivas opiniões sobre o tema. Por muito menos deveriam ser considerados suspeitos. Pois houve nítido pré-julgamento.
5 – Teoria do “Domínio do Fato”.
“Não tenho provas, mas tenho convicção”. O grande risco que agora ameaça toda a esquerda é a forma como se tem aplicado essa nova “teoria do domínio do fato”. Na verdade existe uma distorção da teoria original. Foi criada uma jabuticaba, ou seja, algo que não existe em nenhum outro lugar do mundo, apenas no Brasil.
Garantias democráticas
Uma condenação política se baseia em critérios políticos. Um processo judicial teria que ter outros critérios. Portanto, uma condenação judicial necessariamente teria que seguir um rito processual próprio. Existe uma triangulação que seria necessária estar demonstrada desde a acusação: Fato, prova e tipicidade. Ou seja, é necessário dizer que o acusado praticou tal fato, que existe tal prova, e o fato é contrário a tal lei.
Pode-se, por exemplo, chegar a conclusão política de que Lula e o PT traíram a classe trabalhadora, pois se aliaram a burguesia. Essa é uma condenação política que está correta. Mas isso, por si só, não poderia ser elemento suficiente para uma condenação judicial.
Para que Lula pudesse vir a ser condenado em um processo judicial, o processo teria que ter seguido uma tramitação específica. Seria necessário ter sido julgado por um juiz, ao menos em tese, imparcial. Seria necessário provar que ele pessoalmente teria praticado determinados atos. Ou seja, para além de provar que seria dono do tríplex, provar quais atos teria praticado na Presidência, e que estes teriam sido decorrentes de corrupção. Sem isso passa a se admitir um precedente grave.
As garantias democráticas existem exatamente para diminuir a influência política dos governos sobre o Judiciário. São uma garantia de existência das oposições. Ou seja, são garantias mínimas de qualquer Estado Democrático burguês liberal. Garantias estas que servem para defender as vezes a própria burguesia contra outros setores burgueses.
Cabe destacar que o Poder Judiciário é parte do Estado, e portanto, tem um caráter de classe. Não se trata de uma instituição neutra, acima do bem e do mal. Neutro nem sabão em pó. Conforme eescreveu o jurista soviético Piotr I. Stutchka:
“O Direito é um sistema de relações sociais, que corresponde aos interesses da classe dominante e que é assegurado pelo seu poder organizado (o Estado).”
Portanto, o julgamento de Lula está dentro deste conjunto de interesses da classe dominante. Mais ainda, o conjunto da Operação Lava-Jato atende à tais interesses.
Portanto, os movimentos sociais, a esquerda e os socialistas, têm o dever de zelar e defender as garantias democráticas. Trata-se de evitar que o Estado Democrático se torne um Estado autoritário.
Em países semicoloniais, como o Brasil, existe uma pressão permanente por governos autoritários. A burguesia só conseguiu garantir a existência de Estados Democráticos liberais por longos períodos nos países imperialistas. Pois nestes países foi possível conformar uma classe média ampla e fazer concessões a um setor do proletariado, conformando uma aristocracia operária.
Na América Latina existe um exemplo da “ditadura perfeita”, que é o exemplo mexicano, onde existia uma ditadura mas que tinha eleição a cada quatro anos. Um mesmo partido se manteve no governo por 75 anos. No México, mesmo havendo eleições, atos chegaram a ser reprimidos às vésperas das Olimpíadas de 1968, e centenas de manifestantes foram mortos em praça pública. Mas formalmente seria uma “democracia”. Portanto, em países coloniais a luta por garantias democráticas deve ser mais firme ainda.
Um julgamento político deste tipo só seria possível se houvesse uma mobilização popular de massas. Ou seja, os momentos históricos que permitiriam a restrição de liberdades democráticas são uma excepcionalidade. Não sendo o que ocorre no Brasil hoje. Apenas o proletariado em movimento poderia condenar Lula. Pois Lula traiu os trabalhadores; os burgueses não têm legitimidade para julgá-lo. No afã cego de querer condenar Lula não se pode endossar procedimentos que atentem contra as liberdades democráticas.
Por fim, os erros têm um preço. Caso a burguesia faça uma opção, como classe, de elevar o tom do golpe, prendendo Lula e lhe impedindo de concorrer às eleições, vai assumir um risco. As consequências são imprevisíveis quando se faz uma aposta de tudo ou nada. É possível que a classe trabalhadora esteja abatida. Mas uma luta de massas de resistência contra tal golpe é uma tarefa de todos que defendam a democracia. Infelizmente o PT fala em perdoar os golpistas, e não será assim que se impedirá a nova fase do golpe. Não se deve ter confiança nos golpistas nem no Poder Judiciário. Apenas a classe trabalhadora mobilizada poderá derrotar o golpe e construir novas instituições capazes de realmente fazer Justiça.
* Bruno Alves é advogado.
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