Por Matheus Gomes, Colunista do Esquerda Online
Foi no dia 1° de janeiro de 1804 que o líder da maioria negra escravizada Jean-Jacques Dessalines proclamou, diante de uma multidão reunida na cidade de Gonaïves, a República do Haiti. Após mais de uma década de revoltas, nascia o segundo país independente das Américas e o primeiro a abolir a escravidão, já que o processo que levou à independência dos Estados Unidos, em 1776, não foi capaz de garantir liberdade ao povo negro da nação recém liberta do domínio inglês. O estabelecimento da Constituição que proibia qualquer estrangeiro de ser proprietário de terras ou imóveis no território haitiano foi fruto de um processo revolucionário singular – a primeira e única revolução protagonizada por escravos que se sagrou vitoriosa -, e desestabilizou potencias como a França e a Inglaterra.
Colonização espanhola e francesa: a acumulação pela barbárie
A região das Antilhas, ou América Central insular, foi a primeira a ser invadida pelos colonizadores liderados por Cristovão Colombo. Haiti significa terra montanhosa e era a forma como os Tainos – nativos da região – denominavam a ilha.
Os primeiros relatos dos espanhóis afirmam que o território era dividido em diversos “cacicados” e classificava os autóctones como “mansos”, “sensíveis” e “tímidos”. O uso de tais adjetivos não impediram, no entanto, o genocídio dos nativos, por meio de tentativas mal sucedidas de exploração da sua mão-de-obra. De acordo com o historiador Eric Williams, “Nesse local a população em 1492 era estimada entre 200 mil e 300 mil. Em 1508, o número tinha sido reduzido para 60 mil; em 1510, era 46 mil; em 1512, 20 mil; em 1514, 14 mil. Em 1548, Oviedo [historiador espanhol] duvidava se permaneciam 500 índios puros. Em 1570, tinham sobrevivido apenas dois povoados” .
Foi nesse cenário de devastação e barbárie que os primeiros africanos escravizados desembarcaram na ilha a partir da segunda década do século XVI, dando início a três séculos de produção intensiva destinada a exportação e baseada no tráfico de escravos. Já em fins do século XVII, após a assinatura do acordo que findou a guerra entre a França e a Grande Aliança de Impérios, a parte ocidental da então ilha de “Santo Domingo” foi cedida aos franceses. Essa região teria sido inicialmente povoada por piratas, mas após a chegada dos enviados da coroa tornou-se o território mais valioso do Caribe, chegando a representar 2/3 dos negócios franceses. O desenvolvimento da exploração deu-se através das plantações de açúcar e, posteriormente, com o cultivo do café e, em menor escala, algodão e cacau.
A divisão demográfica da ilha em meados do século XVIII nos ajuda a entender o alto grau de tensão social: mais de meio milhão de escravizados formavam cerca de 85% da população, o que obrigava os colonizadores a instituir um clima permanente de repressão e terror, sem qualquer direito a apelação.
Quando “Liberté, Egalité, Fraternité” são levadas às últimas consequências
Para entendermos a dinâmica da revolução é necessário conhecermos as peculiaridades da sociedade haitiana, que possuía uma estratificação social diferente de outras colônias, a exemplo do Brasil. Para o historiador cubano Sérgio Vilaboy, o elemento que distinguia Santo Domingo era a existência dos “mulatos livres”, agricultores emergentes que, na metade do século XVIII, representavam cerca de 5% da população, mas detinham um quarto da terra cultivável, tornando-se uma ameaça a hegemonia branca e ampliando a complexa relação entre cor e classe na ilha. Já nas últimas décadas do século XVIII, as vésperas da revolução, a composição étnica da população era a seguinte: brancos, 40 mil; mulatos, 96 mil, sendo 56 mil libertos e 40 mil sujeitos a distintas formas de escravidão; e 532 mil negros escravizados.
Esse conjunto de classes em conflito permanente foi diretamente afetado pela Revolução Francesa de 1789. Para os grandes proprietários brancos, surgiu a oportunidade de dominar diretamente o governo de Santo Domingo estabelecendo o comércio livre e mantendo a escravidão. Em abril de 1790, foi convocada a Assembleia Geral da Parte Francesa de Santo Domingo, uma reunião com acesso limitado a proprietários com mais de 20 escravos, o que excluía os mulatos e brancos com menos posses. Contudo, as pretensões dos convocadores da Assembleia se chocavam com os interesses da metrópole, que viu na nascente Constituição Colonial as bases de uma declaração de independência, o que levou o Governador Conde de Peynier a dissolver em armas a empreitada, com apoio de mulatos e pequenos proprietários. Todavia, essa aliança entre mulatos e brancos não tardou em se desfazer à medida que era negada a igualdade de direitos entre eles, o que ocasionou uma série de levantes armados dos mulatos em 1791, que não incluíam em suas reivindicações a liberdade para os escravos.
A dianteira dos mulatos no processo revolucionário começa a ser desfeita em agosto de 1791 quando iniciam as revoltas negras no norte. Vale destacar que o histórico de resistência dos escravizados remete a sua chegada à ilha e as constantes fugas e movimentos de guerrilha dos cimarrones – termo equivalente aos quilombolas do Brasil. A religiosidade mística e misteriosa do vodu cumpriu um papel importante na articulação de revoltas, como a liderada pelo escravo Makandal em 1758. Este dizia se inspirar nos deuses africanos e julgava-se forte o bastante para derrotar os senhores. De fato, além de uma rebelião massiva, ele ordenou diversos envenenamentos de brancos durante quatro anos, mas este movimento culminou no seu assassinato numa fogueira. Contudo, a repressão à religião nos anos seguintes não conseguiu impedir que o vodu seguisse aglutinando os escravizados, pelo contrário, o clima de conspiração instaurou-se fortemente e foi a partir do chamado do sacerdote Boukman que iniciou o levante escravo por todas as planícies do norte.
Ao lado da metrópole, os grandes proprietários fizeram todas as manobras possíveis para conter a rebelião negra que se alastrava, mas a radicalização da Revolução Francesa novamente interferiu no processo. Encarregados de restaurar a ordem, três comissários franceses acompanhados de um forte efetivo militar desembarcaram na ilha em fins de 1792, entretanto, do outro lado do Atlântico aconteceria em janeiro de 1793 à execução de Luís XVI, acontecimento que transformou os grandes proprietários brancos em defensores diretos da causa realista. Enquanto o comissariado francês promulgava leis que concediam igualdade de direitos entre brancos, mulatos e negros livres, os grandes proprietários viam seu poder diminuir e organizavam sublevações contra a metrópole. Nesse interregno, as revoltas de escravos não cessaram, já que suas condições sociais permaneciam intactas e sem perspectiva de alteração, o que fica nítido nas palavras de um representante francês, que era enfático ao dizer que “não buscamos meio milhão de escravos na costa africana para fazer deles cidadãos franceses”, demonstrando que a igualdade, liberdade e fraternidade dos liberais franceses não se estendiam ao mundo colonial.
Meses depois, no verão de 1793, o anseio pela liberdade e a impotência dos mulatos livres faz os escravizados, liderados por Toussaint Louverture, aliarem-se a Espanha, que invadiu a ilha prometendo liberdade aos negros, aproveitando-se da fragilidade da metrópole francesa ocasionada pela ofensiva internacional contrarrevolucionária. Por outro flanco, os ingleses também retomam a ofensiva militar, respaldados por colonos brancos e os mulatos. A intensificação da crise cria um beco sem saída para a metrópole que se vê obrigada, a partir de seu comissário Sonthonax, a declarar o fim da escravidão em 29 de agosto de 1793, medida respaldada pela Convenção Francesa em 4 de fevereiro de 1794 e garantia aos negros plenos direitos como cidadãos franceses.
O acontecimento faz Louverture e outras lideranças como Dessalines, Jean Christophe e Charles Belair romperem sua aliança com os espanhóis e expulsarem seu exército da ilha, passando diretamente a vanguarda da resistência à ofensiva inglesa. Com base em pesquisas de historiadores do exército britânico, C.L.R. James afirma que as baixas da Grã Bretanha nas Antilhas chegam a quase 100.000 homens, o que é considerado o principal elemento da fraqueza do reino no final do século XVIII. Após liderar a expulsão dos ingleses em outubro de 1798 e já na condição de governador da colônia, Louverture enfrenta um conflito interno, pois a posição destacada dos ex-escravizados germinou a insatisfação entre os mulatos, que iniciam tentativas de sublevação contra o governo central, mas são derrotados rapidamente pelas tropas oficiais. O governo de Louverture promulga leis importantes como a ratificação da abolição da escravidão, a igualdade jurídica entre o conjunto da população e o reconhecimento do catolicismo como religião oficial.
Entretanto, a reação de Napoleão Bonaparte e o Consulado na França impulsionaram a tentativa de fazer a ilha regressar a sua condição anterior a partir de 1802, fato que se consumou na Martinica e em Guadalupe. Contando com o apoio de alguns mulatos, que permaneciam como inimigos incontestes de Louverture, os franceses avançaram suas tropas e impuseram um regime de terror generalizado. Mas o ressentimento dos franceses também atingia os mulatos, nas palavras do General Leclerc – comandante da retomada -, “em minha opinião, temos que suprimir todos negros das montanhas (…) e não deixar na colônia nenhum mulato que carregue charretes” . Essa postura acabou forjando um bloco de classes entre escravizados e mulatos, em defesa da independência nacional e contra a escravidão. A revolta generalizada liderada por essa aliança acabou por derrotar o exército francês, que teve seus últimos destacamentos rendidos em 18 de novembro de 1803, na batalha de Vertieres. A partir daí florescia uma nação independente, mas também iniciava uma saga marcada por bloqueios econômicos, invasões estrangeiras e isolamento político.
O impacto da revolução no Brasil
Os ecos de liberdade ressoaram em nosso país e em toda a Afroamérica. Segundo o historiador Clóvis Moura, já em 1805, negros empregados nas tropas de artilharia do Rio de Janeiro foram presos por portarem um retrato de Dessalines. Nessa época, a impressão de qualquer gravura no Brasil era quase impossível, o que sugere a circulação da imagem a partir de escravos vindos de outras regiões do continente. Já na Bahia (não consta a data na referência), uma revolta de negros empregados na pescaria foi sufocada pelo governo central e os donos dos estabelecimentos relatavam que os acontecimentos revolucionários eram comentados abertamente entre os escravos. Ou seja, mesmo com todas as limitações de comunicação que a condição de escravizado impunha, o exemplo do Haiti se tornou uma utopia libertária para a parcela de escravizados que teve contato com os acontecimentos revolucionários.
Esse período coincide com o momento em que os escravizados resistiram de forma mais ampla contra sua condição no Brasil: formação de quilombos, suicídios, crimes individuais contra os senhores, guerrilhas, assaltos nas estradas, uma série de ações contestatórias definiam o clima de corpo a corpo permanente entre escravos e senhores. O Haiti fez com que a metrópole e a burguesia nascente ampliassem as características repressivas do Estado e criou uma paranoia generalizada sobre a possibilidade de um movimento similar em nosso país.
O cerco imperialista permanente
A revolução logo colocou a República do Haiti numa encruzilhada. C.L.R. James escreve que Louverture, bem como seu sucessor Jean Christophe, “não conseguia ver outra saída para a economia haitiana senão as plantações de cana de açúcar. (…) Mas com a abolição da escravatura e a conquista da independência, a defesa das plantações, indelevelmente associadas à escravidão, tornou-se insustentável” , fazendo com que em poucos anos a economia da ilha se resumisse as necessidades de subsistência. Essa condição imposta pelo isolamento político e econômico internacional afundou o país na pobreza e criou conflitos políticos diversos. Mesmo assim, manteve-se entre a população um forte sentimento nacional, repleto de contradições cruzadas pelas divisões de classe da própria sociedade haitiana, pois, segundo James, após a revolução a elite haitiana sempre tentou reproduzir na ilha um modelo de civilização europeia que nunca se consolidou.
O fato é que o Haiti jamais saiu da mira dos colonizadores de ontem e segue como alvo dos imperialistas de hoje. O sociólogo haitiano Franck Seguy, corroborando com o historiador e ex-presidente do Haiti Leslie Manigat, entende que as cinco razões principais da cobiça pelo território haitiano são “(1) a sua posição geoestratégica no caminho ao canal de Panamá (…); (2) a necessidade de transformação econômica do Haiti (sua liberalização) e de cumprir seu papel na divisão internacional do trabalho; (3) o controle do seu comércio exterior; (4) sua dívida externa; (5) a necessidade de comprovar que uma república negra é incapaz de se autogovernar.” .
O último aspecto salientado tem relevância especial para refletirmos sobre o cruzamento entre os interesses de classe e a questão racial. Como seres considerados sem alma e inteligência poderiam erguer-se ante um Império? A verdade é que em 1804 toda a racionalização construída para legitimar a escravidão caiu de joelho ante a revolução negra, mas eles não tardaram em criar novas pseudo-justificativas para as suas ações ofensivas movidas por um profundo ressentimento racista. Desde a primeira invasão norte-americana em 1915 até a última ocupação liderada pelo governo brasileiro, as intervenções estrangeiras ocorrem em nome da paz, mas, na realidade, tem o intuito de frear a progressão de lutas sociais contra a opressão e a exploração no país. Qual guerra existe no Haiti? Quais são os campos em conflitos? As ofensivas militares e a ingerência estadunidense na política haitiana em todo o século XX e as primeiras décadas do século XXI são a nova face do impedimento imperialista a autodeterminação haitiana. A repressão às lutas sociais promovida pela Minustah, à serviço da superexploração nas empresas da indústria têxtil, verdadeiros engenhos do século XXI, não foi divulgada pela grande imprensa no Brasil, mas é uma constante desde 2004. Nem o trágico terremoto, em 2010, sucedido por uma epidemia de cólera, foi capaz de suscitar o senso humanitário nas potencias imperialistas, tornando-se um dos fatores da emigração que hoje desagrega a nação.
Como bem disse o uruguaio Eduardo Galeano, a tremenda sova dada pelos escravizados nos colonizadores jamais foi perdoada pelos europeus e “a história do assédio contra o Haiti (…) é também uma história do racismo na civilização ocidental.” . Mas relembrar a resistência das negras e negros haitianos é reacender a chama da esperança na potência desse povo e apostar que a consciência preservada historicamente ajudará a germinar novas lideranças, novos projetos e impulsionar a rebeldia. Viva a luta pela autodeterminação do Haiti!
Seguem abaixo as referências utilizadas no texto e um convite para que ampliemos o estudo do tema:
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