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BRASIL

Compra da Embraer pela Boeing: sindicato de trabalhadores exige veto do Governo Federal

SAO JOSE DOS CAMPOS – SP – BRASIL – 07/03/2017 – LANCAMENTO DO AVIAO EMBRAER E195-E2 – Apresentacao do modelo E195-E2, novo aviao da Embraer na manha de hoje no hangar da empresa. (Foto: Ricardo Matsukawa / UOL). ******EMBARGADO PARA USO EM INTERNET****** ATENCAO: PROIBIDO PUBLICAR SEM AUTORIZACAO DO UOL

Da Redação

Nesta quinta-feira (21), a imprensa noticiou a possibilidade de compra da Embraer, única fabricante brasileira de aviões, pela norte-americana Boeing.  A companhia emprega cerca de 17 mil trabalhadores no Brasil. A notícia foi recebida com repúdio pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região, que representa os trabalhadores da empresa. A entidade lançou um comunicado onde afirma que a Embraer “é estratégica para o país” e que, por isso, “não pode ser vendida para capital estrangeiro”. Ainda, exigiu um posicionamento do Governo Federal. “Exigimos que o governo federal vete a venda e, enfim, reestatize a Embraer como forma de preservar e retomar este patrimônio nacional”, completou em nota. Divulgamos, abaixo, a íntegra do comunicado, seguido de um texto elaborado por três autores, o diretor da entidade Hebert Claros, o doutor em administração Marco Antonio Oiveira e a economista Renata Belzunces, onde debatem a privatização da Embraer, Vale e Brasil Resseguros, o que chamam de “privatização da privatização”.

Nota do Sindicato dos Metalúrgicos de São Jose sobre as noticias de venda da Embraer 

Sindicato dos Metalúrgicos defende veto do governo federal a planos de compra da Embraer pela Boeing

A possibilidade de compra da Embraer pela norte-americana Boeing, conforme noticiado pela imprensa, nesta quinta-feira (21), merece todo repúdio do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região. 

Única fabricante brasileira de aviões e terceira maior do setor no mundo, a Embraer é estratégica para o país e não pode ser vendida para capital estrangeiro. Exigimos que o governo federal vete a venda e, enfim, reestatize a Embraer como forma de preservar e retomar este patrimônio nacional.  

 Ainda segundo informações divulgadas pela imprensa, a concretização das negociações depende da palavra do governo, que detém ações de classe especial (golden share) da Embraer. Isto mostra que as negociações já vêm de longo tempo, longe dos olhos da população.

A Embraer emprega hoje cerca de 17 mil trabalhadores no Brasil e já vinha adotando uma profunda política de desnacionalização da produção. A venda para a Boeing vai comprometer esses postos de trabalho e a própria permanência da fábrica no país. 

É importante relembrar que, no dia 19 de julho, o Ministério da Fazenda solicitou consulta ao Tribunal de Contas da União sobre a possibilidade de abrir mão das ações golden share da Embraer, Vale e IRB-Brasil Resseguros. Sem essas ações, o governo perde o poder de veto sobre essas empresas. 

No caso da Embraer, a golden share confere poder de veto em questões como venda, programas militares e acesso à tecnologia. 

Como representante dos trabalhadores, o Sindicato dos Metalúrgicos reafirma sua posição em favor do veto à venda da Embraer e sua reestatização.

SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS E REGIÃO 

_______________________________________

Embraer, Vale e Brasil Resseguros: a privatização da privatização

Por: Herbert Claros da Silva, Marco Antonio Gonsales de Oliveira e Renata Belzunces dos Santos 1

Recentemente, foi veiculada a informação de que o Ministério da Fazenda solicitou consulta ao Tribunal de Contas da União para que o governo federal possa se desfazer das ações especiais que possui em três companhias estratégicas: Embraer, Vale e IRB-Brasil Resseguros. O Ministério da Fazenda emitiu a solicitação de consulta em 19 de julho de 2017 e o TCU abriu processo no final de agosto para responder o pedido2.

Todas essas companhias foram privatizadas e em cada uma delas ficou assegurado ao governo a propriedade de ações de classe especial (golden share). Este é outro claro aceno do atual governo ao mercado financeiro internacional em busca de credibilidade e provas de alinhamento ideológico. Depois do tsunami das privatizações dos anos 90 – e outras mais pontuais no período governado pelo PT –, a história se repete como tragédia, agora aprofundando a mercantilização dos setores já privatizados e tentando privatizar o que ainda resta.

A golden share é uma classe de ação especial que confere determinados privilégios e prerrogativas aos seus detentores. São instrumentos da atividade criativa do direito empresarial com o objetivo de satisfazer as necessidades políticas e econômicas surgidas nos momentos de alteração da configuração entre Estado e mercado, como verificou-se a partir da década de 70, principalmente na Europa, com a grande transferência de empresas públicas às mãos das empresas privadas: as conhecidas políticas públicas e econômicas de privatizações. A Inglaterra foi a pioneira, a partir de 1979, quando Thatcher implementou o seu conhecido programa de privatizações, através do qual se passou a abrir à iniciativa privada setores que lhe eram vedados, adentrando o capital privado na prestação de serviços antes considerados inseparáveis do Estado. A experiência britânica é relevante, pois foi precisamente no contexto do programa de privatizações mencionado que surgem as golden share (Pela, 2008).

Para os setores contrários às privatizações, a transferência de empresas estratégicas públicas ao setor privado poderia acarretar no enfraquecimento do Estado sobre a administração desses recursos, além de comprometer outros setores fundamentais para o país, como a segurança nacional e a perda de empresas de tecnologias estratégicas. A criação da golden share teria sido uma concessão aos setores críticos às privatizações, pois garante ao Estado poderes que limitam a tomada de decisão das empresas privatizadas. Em suma, golden share são títulos acionários que atribuem ao Estado prerrogativas especiais, não proporcionais à sua participação no capital da sociedade, destinadas a salvaguardar interesses nacionais.

Sob essa mesma justificativa, o mecanismo das golden share foi usado por diversas companhias no Reino Unido. Entre 1979 e 1983, as empresas British Aerospace, fabricante de aeronaves civis e militares e de materiais bélicos; a Cable & Wireless, prestadora de serviços de telecomunicação; Amersham International, responsável pela fabricação de produtos radioativos para uso em medicina e pesquisa, e a conhecida British Petroleum, cujas atividades se concentravam no setor petrolífero.

O mecanismo foi adotado, sob diversas denominações, também em países como a França (action spécifique), Itália (poteri speciali), Alemanha (goldene Aktie e Spezialaktie), Bélgica (action spécifique), Portugal (acções preferenciais) e Espanha (regime administrativo de controle específico). No entanto, foi pouco acionado pelos governos. No Brasil, o instrumento ficou conhecido como ação de classe especial e foi implementado a partir dos anos 90, quando empresas estatais como a Vale e a Embraer entraram no Programa Nacional de Desestatização (PND). No caso da Embraer, a atividade se relaciona à defesa; na Vale, as reservas minerais têm importância estratégica para o país (Pela, 2008).

Um dos casos mais emblemáticos no Brasil, envolvendo a possibilidade de acionamento da ação de classe especial, foi a intenção de compra de 20% das ações ordinárias emitidas pela Embraer, em outubro de 1999, por um consórcio francês liderado pelas empresas Aérospatiale Matra, Dassault Aviation, Thomson-CSF e Snecma. O acordo foi negociado sem o conhecimento do governo, mas que através da Aeronáutica descobriu o plano dos grupos.

Segundo artigo publicado em 21 de dezembro de 1999 pelo jornal Folha de São Paulo, a aeronáutica desvendou o plano por meio de documentos confidenciais da negociação. O grupo Bozano Simonsen havia se comprometido a convencer os controladores da empresa a venderem mais ações para os franceses em um prazo de cinco anos. Foi discutido se o negócio poderia ser qualificado como transferência de controle acionário, ou seja, passar uma indústria de importância estratégica para ser controlada por um grupo estrangeiro, com ameaça à soberania e a defesa nacionais.

O governo FHC consultou a Advocacia Geral da União, os ministros da Defesa, Relações Exteriores e do Desenvolvimento e decidiu não recorrer às ações de classe especial para intervir no negócio de US$ 209 milhões, entre a Embraer e o grupo francês. Naquela ocasião, a golden share não foi usada, mas tudo indica que teria sido caso as negociações não tivessem sido encerradas. É o caso em que a mera existência do dispositivo impediu o prosseguimento da negociação, depois de manifestada a posição contrária do governo.

Em 2009, quando a Embraer demitiu 20% dos seus trabalhadores, mais uma vez o assunto das golden share veio à tona. No entanto, como demonstraremos abaixo, esse não era o melhor caminho jurídico para impugnar a demissão em massa, dado que as ações especiais que o governo detém da Embraer não lhes garantiam tal atribuição.

A mais recente e conturbada história envolvendo empresas e governo no campo das ações de classe especial foi na União Europeia. Portugal utilizou o mecanismo em 2010 para vetar a venda da participação da Portugal Telecom na Vivo por 7,15 bilhões de euros à espanhola Telefónica. A Corte Europeia de Justiça considerou que o uso das ações de classe especial pelo governo português violou a legislação da União Europeia sobre a livre movimentação de capitais. Essa foi a interpretação em outros casos em que a golden share foi acionada.

O assunto das ações de classe especial no Brasil voltou à tona quando o governo demonstrou intenção em liquidar de vez com esses papéis na Embraer, Vale e IRB-Brasil Resseguros. Suas ações de classe especial guardam bastantes semelhanças e algumas diferenças relacionadas ao tipo de negócio e à gestão. As características comuns a todas companhias são: poder de veto à alteração de denominação social, de objeto social, de modificação acionária e, por fim, garante que qualquer modificação nela própria – na golden share – pode ser vetada pela União (Quadro 1).

As diferenças mais relevantes referem-se às prerrogativas administrativas e especiais relacionadas ao setor de defesa. No IRB-Brasil Resseguros, a União pode indicar um membro (e suplente) para composição do Conselho de Administração. Por sua vez, esse membro exercerá a presidência do Conselho. Também indicará membro (e suplente) para o Conselho Fiscal. Na Embraer, os programas militares podem ser vetados, assim como o acesso à tecnologia envolvida nesses programas. A companhia também poderá deixar de fornecer peças de manutenção ou reposição para clientes, se for do interesse da União.

QUADRO 1

Comparação das Prerrogativas da golden share

Prerrogativa de Veto

Embraer

Vale

IRB

Alteração de denominação social (nome)

X

X

X

Alteração de mudança da sede social (local)

X

X

 

Mudança no objeto social (finalidade da empresa)

X

X

X

Alteração ou aplicação da logomarca

X

X

X

Fim da sociedade (liquidação dos negócios )

 

X

 

Qualquer modificação dos direitos atribuídos às espécies e classes das ações de emissão da sociedade previstos no Estatuto Social

X

X

X

Alienação ou encerramento de atividades pré-definidas no Estatuto Social

 

X

 

Modificação na natureza dela própria (Golden Share)

X

X

X

Transferência de Controle Acionário

X

 

X

Transformação, fusão ou cisão

  

X

Criação e/ou alteração de programas militares que envolvam o país

X

  

Capacitação para terceiros em tecnologia para programas militares

X

  

Interrupção de peças de reposição e manutenção

X

  

Prerrogativas Administrativas

   

Indicar membro para o Conselho de Administração *

  

X

Indicar membro para o Conselho Fiscal

  

X

Fonte: Estatutos Sociais das Companhias, disponíveis nos respectivos sites.

A motivação da consulta, segundo o ministro da Fazenda, é estabelecer como a União poderá se desfazer dessa ação. O motivo alegado seria o fato de que a golden share desvalorizaria os ativos3. Em uma primeira aproximação, parece que o ministro Henrique Meireles está na defesa do mercado em um momento em que são desconhecidas manifestações do próprio mercado contra a golden share.

Em uma tentativa de compreender os motivos que levam o governo a tomar essa iniciativa, identificamos duas possibilidades: a questão fiscal e o valor de mercado das empresas.

  1. Arrecadação fiscal: em meio ao pacote de privatizações em curso e forte ajuste recessivo, o governo poderia estar buscando arrecadar com a “venda” dessas ações. A consulta ao TCU teria como objetivo precificar esses papéis que hoje não têm preço, pois não são comercializáveis. Por quanto dinheiro valeria a pena abrir mão das prerrogativas da golden share? Quem pagaria? O fato é que o fim dessas ações também significa o fim das suas prerrogativas, que não poderiam ser exercidas por mais ninguém. Nenhum agente privado pode exercer as prerrogativas destinadas apenas à União. Quanto vale algo que deixa de existir assim que é comprado?

  2. Valorização das ações da empresa: a hipótese é que o fim da golden share aumentaria o valor de mercado dessas empresas, ao diminuir as possibilidades de intervenção do governo. Mas essa classe de ação especial é apenas um dentre vários outros instrumentos que o governo tem à disposição para interferir nos negócios dessas empresas, e isso não é diferente em qualquer outro lugar do mundo. Segundo levantamento do professor Marcos Barbieri (IE-UNICAMP), todos os governos têm políticas de interferência no setor aeronáutico, com ou sem golden share. Dessa maneira, seu fim não tornaria a Embraer, por exemplo, mais capitalista do que a Boeing, que não tem golden share. Também não tornaria a Vale mais capitalista do que as suas concorrentes mundiais.

Essas companhias são gigantes em seus setores. A Vale é uma das maiores mineradoras do mundo, a Embraer também é terceira maior empresa aeronáutica no ranking mundial e o IRB-Brasil praticamente monopoliza os resseguros no país. A soma de suas receitas em 2016 atinge R$ 115.275,3 bilhões (equivalente a 1,8% do PIB no mesmo ano); o lucro foi de R$ 18.896,3 bilhões e cerca de 100 mil trabalhadores são empregados pelas três gigantes. São cifras astronômicas, de fazer brilhar os olhos do mercado.

QUADRO 2

Resultados das Companhias – 2016 – em R$ milhões

Empresa

Receita Líquida

Lucro Líquido

Trabalhadores

Embraer

16.480,3

585,4

18.506

Vale

94.633,0

17.461,0

73.062

IRB

4.162,0

849,9

n/d

Total

115.275,3

18.896,3

91.568

Fonte: Embraer, Vale e IRB. Demonstrações Financeiras.

Essas companhias são representativas da totalidade ou quase totalidade dos setores em que atuam, foram privatizadas a preços questionáveis e vêm sendo geridas para e pró-mercado. A relação entre Estado e mercado nunca deixou de existir e vai continuar existindo. Não é conhecido argumento de que empréstimos subsidiados pelo BNDES, desonerações e outros diminuam o valor de mercado dessas empresas. O questionamento da gerência do Estado na economia privada é seletivo, portanto, quando soa o discurso da livre iniciativa, ele vem cheio de hipocrisia, pois esse mesmo mercado nunca se furta a pedir socorro e a aceitar “ajuda” quando convém.

A possibilidade do fim da golden share é um aprofundamento da privatização, pois liberaria os poucos itens estratégicos que poderiam sofrer veto do governo. O desejo de eliminar a golden share levanta a suspeita de que pode estar em movimento novos interesses por esses ativos, dessa vez por grandes empresas internacionais que tornariam a Vale, a Embraer e a IRB-Seguros meras filiais de seus negócios.

Neste cenário, é melhor que a golden share seja mantida como um resquício de soberania a ser utilizada em casos extremos. Estamos certos que essa não é uma preocupação do governo Temer, assim como também é necessário ter a clareza de que a sua manutenção não altera em nada o curso de destruição dessas empresas enquanto instrumentos de exercício de interesse do povo brasileiro e de seus trabalhadores. Ruim com golden share, pior sem.

Essas empresas deveriam passar por um amplo debate nacional em que fossem discutidos desde o preço de suas privatizações até sua contribuição para o país, caso tenha existido. A reestatização deve ser recolocada no cardápio de possibilidades para o futuro, se assim for entendido como benéfico para o país, e não apenas para os acionistas. Os rumos dessas empresas são importantes demais para serem deixados ao sabor do mercado, o mesmo que colocou o mundo em crise diversas vezes ao longo do século XX e, mais recentemente, em 2008, quando provou suas fragilidades e foi salvo pelos recursos dos contribuintes.

Referências Bibliográficas

PELA, J. K. Origem e desenvolvimento das golden shares. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, 2008.

1 Sobre os autores: Herbert Claros é vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região e ex-membro do Conselho de Administração da Embraer (2015 e 2016). Marco Antonio G. de Oliveira é doutor em Administração de Empresas pela PUC-SP e professor da Universidade São Judas Tadeu. Renata Belzunces dos Santos é economista e cientista social, técnica do DIEESE e doutoranda no Prolam-USP.

2 O Tribuna de Contas da União abriu processo sobre o tema em 30/08/2017, sob o número 025.285/2017-3, de relatoria de José Múcio Monteiro. O acesso é restrito, de forma que não pode ser consultado pelo público em geral.

3 http://www.valor.com.br/empresas/5109590/governo-quer-fim-de-golden-share