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BRASIL

A nova reforma da saúde mental: sejamos subversivos

Por: Mariana Pércia, de Maceió, AL
*Mariana é médica

Na última semana tivemos um retrocesso gigantesco para os lutadores, usuários e profissionais sérios da saúde mental. A chamada “revisão da política nacional de saúde mental”, votada esse mês, traz o apontamento e concretização de um retrocesso de décadas, décadas de luta para estabelecer uma política de saúde mental que colocasse o paciente como centro, que pudesse tirá-lo do isolamento dos manicômios e apostar num modelo que o reinserisse à sociedade, o preparasse para isso.

Isso tudo tem história, fio de continuidade e disputas.

Já em 1936, Dra. Nise da Silveira, principal psiquiatra brasileira que fez entrar em nosso país o debate e a luta pela reforma psiquiátrica, foi presa por “atividades subversivas”, e como prenúncio do que seria o Estado Novo ficou um ano e meio no cárcere. Nise se considerava comunista também, mas o que a fez subversiva foi o enfrentamento com as práticas da psiquiatria naquela época, foi o ímpeto em tirar seus pacientes do abandono das instituições psiquiátricas, foi dar voz, cor e luta àqueles relegados como “problema” na sociedade. Talvez o que a fez comunista também tenha sido isso. Nise mostrou que os pacientes mentais têm um signo de ruptura com a realidade, descontinuação do que é real e abstrato e fez sua luta em costurar essa ligação novamente.

Os Centro de Atenção Psicossociais são a forma mais concreta desse caminho, por que eles dão atenção, no literal da palavra, acolhimento, tratamento, e eles não estão ali para isolar mais os pacientes com transtornos mentais da sociedade e, sim, para serem uma ponte de transição para que esses pacientes se sintam seguros parar encarar a realidade novamente. Nise precisou, àquela época, lutar em especial contra a psiquiatria.

Um dos argumentos do Ministério da Saúde do ilegítimo Temer é o apoio da Associação Brasileira de Psiquiatria. Acontece que, sem dúvida alguma, a psiquiatria sempre foi o que há de mais reacionário dentro da saúde mental. Os manicômios são a concretização mais fiel desse reacionarismo. Sem ofensas aos meus queridos amigos e amigas psiquiatras, eu inclusive namoro essa especialidade há alguns longos anos. Mas, desconfio daqueles que entram admirando a psiquiatria clássica, a camisa de força química, os tratamento sem critérios, a internação como artifício de tratamento de rotina e não como última necessidade. Espero que estejam na psiquiatria pelo fascínio com a mente humana, com as disrupturas dela, e com o anseio de poder acolher e ajudar aos pacientes nessa religação, jamais com o anseio de “controlá-los”.

A nova política de “revisão” do governo Temer pode parecer, à primeira vista, algo inocente, afinal, ele estaria apenas aumentando o valor da diária dos leitos psiquiátricos de R$ 49 para R$ 70. Ninguém é favorável a abandonar os pacientes que ainda dependem desses leitos, ou as famílias que sem assistência e informação recorrem a esse leitos como um grito de desespero.

Mas, a reforma psiquiátrica e a consolidação dela em 2001 com a lei 10.216 mostram um outro caminho, o caminho da atenção ao invés do isolamento, o caminho do acolhimento, ao invés da agressão, o caminho do tratamento e auto-cuidado, ao invés do silenciamento, o caminho dos CAPS, mesmo que limitados e insuficientes.

A política de Temer e seu “ministro planos de saúde” visa investir novamente em manicômios, desinvestir nos CAPS e dar milhões a “comunidades terapêuticas” privadas. Essas últimas instituições, ligadas à bancada evangélica que têm como preceito oferecer “tratamento moral” aos pacientes. Um viés muito claro de destruição de um patrimônio em construção, os CAPS, um viés muito claro de destruição do SUS, e de acordo com a bancada evangélica.

Essas comunidades existem e já tiveram diversas denúncias de maus tratos, trabalhos forçados, entre outras bizarrices. Vivemos em um estado laico, a religião não pode interferir numa política pública. A única relação da religião com os transtornos mentais que já vi é a imensa quantidade de delírios religiosos que os pacientes acabam desenvolvendo e sofrendo com isso.

Sempre será subversivo reinserir na sociedade aqueles que romperam com ela pela sua dureza, sempre será subversivo um sistema público que acolha a todos de maneira universal, equânime e integral.

Precisamos voltar a sermos subversivos, colegas, senão, já já acharemos “normal” retroceder 80 anos, acharemos normal a função dos manicômios, acharemos normal o silenciamento, ao invés do tratamento. Eu não quero achar nada disso normal.

Como diria Nise, “não se curem além da conta (..) é necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade”.