Por: Paulo César de Carvalho e Boris Vargaftig, de São Paulo, SP
No último dia 6 de dezembro de 2017, a imprensa noticiou a condução coercitiva do reitor da UFMG, da vice-reitora, da coordenadora do projeto “Memória e Verdade” e de mais cinco profissionais da universidade. A justificativa para a ação dos agentes federais é o suposto desvio de verbas destinadas à construção do “Memorial da Anistia Política do Brasil”, projeto lançado pela Comissão de Anistia há quase uma década, com financiamento do Ministério da Justiça e parceria com a UFMG.
Não nos cabe aqui discutir se houve ou não irregularidades na aplicação dos recursos públicos por parte dos acusados: as investigações estão em curso e o processo judicial está em andamento. Ainda que houvesse culpa dos réus, a sua condenação não serviria de salvo-conduto para “legitimar” as arbitrariedades cometidas pelos policiais na operação “Esperança Equilibrista”. Aliás, a infeliz escolha do nome evidencia o espectro autoritário que ronda o país, em geral, e a universidade, em particular.
A Polícia Federal se apropriou indebitamente de um trecho da canção “O Bêbado e o Equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco. Vale lembrar que a música foi lançada no disco “Linha de Passe”, em 1979, no mesmo ano da Anistia. Imortalizada na voz de Elis Regina, tornou-se o hino dos presos políticos. Um deles era o sociólogo Betinho, irmão do cartunista Henfil, ambos citados na letra, que também homenageia a mãe da dupla, dona Maria: “Meu Brasil/ Que sonha/ Com a volta do irmão do Henfil/ Com tanta gente que partiu/ Num rabo de foguete/ Chora/ A nossa pátria, mãe gentil/ Choram Marias e Clarices/ No solo do Brasil”.
A referência a Clarice Herzog, companheira de Vlado, deixa ainda mais explícita a memória dos anos de chumbo evocada e desrespeitada pela operação “Esperança Equilibrista”. Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi conduzido coercitivamente para prestar depoimento no DOPS, em cujas dependências foi torturado e assassinado. À época, a suspensão da ordem democrática era justificada pela “Doutrina de Segurança Nacional”, que dava amplos poderes aos agentes da repressão para sequestrar, torturar e assassinar qualquer “suspeito”. Os policiais, armados das prerrogativas totalitárias, não necessitavam de autorização judicial para invadir redações de jornal, sindicatos, universidades – corria-se perigo dentro de casa. Foi assim que levaram o jornalista Vlado, em 1975; foi assim que mataram o metalúrgico Manoel Fiel Filho, em 1976; foi assim que assassinaram o estudante Alexandre Vannucchi Leme, em 1973. O deputado Rubens Paiva estava em casa quando foi conduzido para a lista de desaparecidos políticos em 1971.
De volta ao presente, em 6 de dezembro de 2017, o reitor da UFMG foi surpreendido por policiais federais quando saía do banho. Como estava de toalha, pediu autorização para se vestir, ouvindo de um dos agentes armados a temerária resposta: “o senhor não tem mais direito à privacidade”. Se estivéssemos em um quadro de normalidade democrática, a condução coercitiva não teria fundamento: o reitor e os outros acusados já haviam prestado esclarecimentos tanto à Controladoria Geral da União (CGU), quanto ao Ministério Público Federal (MPF). É redundante dizer que também possui residência fixa, podendo ser facilmente intimado a depor. Lembremos que ele foi levado de sua própria casa. Se estivéssemos em um contexto político de estabilidade democrática, um policial, sem resguardo legal, jamais diria a um cidadão de toalha saindo de seu próprio banheiro que ele não tem mais “direito à privacidade”.
Denunciamos, a partir deste sintomático caso concreto, as investidas autoritárias que têm posto em risco as conquistas democráticas. Não é sempre que a realidade coloca diante de nossos olhos um acontecimento com tal força simbólica, não é por mera coincidência que as suspeitas envolvam o Memorial da Anistia, que a operação se chame “Esperança Equilibrista” e que o reitor tenha sido conduzido arbitrariamente de sua casa à viatura. Se não soubéssemos que isso aconteceu no dia 6 de dezembro de 2017, poderíamos imaginar que é mais uma das inúmeras histórias trágicas da ditadura. Quem suporia, afinal, que fosse possível ocorrer tais arbitrariedades quase 40 anos depois da Anistia?
Se algum dramaturgo, poeta, romancista, contista, novelista, ou cineasta tivesse escrito esta narrativa, o enredo soaria caricato. Os críticos acusariam a inverossimilhança produzida pelo abuso de clichês, pela reiteração de estereótipos. De fato, não parece mesmo nada convincente a história de um reitor de toalha surpreendido por policiais federais armados na frente do banheiro, suspeito de irregularidades na construção de um “Memorial da Anistia”, em uma operação chamada “Esperança Equilibrista”. Não faltariam leitores para dizer que as “coincidências” são muito artificiais, que as alusões são muito explícitas, forçando a barra e entregando o jogo.
Mas esta história não é lenda. A realidade novamente desafia e supera as piores ficções. Se é impossível não enxergar a presença paquidérmica do absurdo, como não registrar a realidade? Quem dera a condução coercitiva do reitor da UFMG não fosse “de verdade”; quem dera o suicídio do reitor da UFSC fosse “de mentira”. Antes a prisão de Rafael Braga não fosse real; antes fosse ficção o processo contra os 18 estudantes presos no Centro Cultural SP. Infelizmente, os soldadinhos não são de chumbo; as armas não são de plástico e as balas não são de festim. Os fatos não são isolados. Temos assistido a uma escalada de ataques ao chamado Estado de Direito, o que nos evidencia a fragilidade da democracia burguesa, que “dança na corda bamba”. Aliás, é o que sintomaticamente dizem os versos finais da canção “O Bêbado e o Equilibrista”:
“Mas sei
Que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança, na corda bamba de
sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar”
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