Pular para o conteúdo
CULTURA

“Ruy Guerra: paixão escancarada”, de Vavy Pacheco Borges: uma narrativa apaixonada sobre Ruy Guerra

Por Mariana Mayor, de São Paulo, SP

Em agosto deste ano foi lançada a biografia “Ruy Guerra: paixão escancarada”, da historiadora Vavy Pacheco Borges. O livro percorre a vida e a obra de um dos maiores cineastas do século XX em uma narrativa não cronológica a partir dos territórios onde Ruy Guerra viveu: Moçambique, França, Brasil, Cuba e Portugal. Ruy Guerra, hoje com 86 anos, recém completados, possui uma vasta obra celebrada internacionalmente, acumulando prêmios em festivais de cinema como o Festival de Berlim e o Festival Latino Americano de Havana.

Nascido em Moçambique, em 1931, Ruy viveu pessoalmente fatos políticos e culturais marcantes da segunda metade do século XX. No início da década de 1950 estudou em Paris no IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques) – importante escola que formou cineastas franceses como Alain Resnais, por exemplo. No final dos anos 1950, aos 30 anos, Ruy veio para o Brasil e viu de perto a irrupção da Bossa Nova no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que ia se aproximando de cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues e Leon Hirszman. Ainda nas terras brasileiras, no começo da década de 1960, filmou “Os cafajestes” e “Os fuzis”,  hoje considerados dois clássicos do cinema brasileiro, e de forma conflituosa acompanhou o desenvolvimento do Cinema Novo. Ruy sofreu na pele a ditadura militar no Brasil: foi diversas vezes interrogado e perseguido, teve muitas obras censuradas, como a peça “Calabar”, parceria com Chico Buarque, que em 1973 foi proibida de estrear;  e seu filme “Os Fuzis” que foi considerado pelos censores por meio de um dossiê apresentado em reuniões dos militares como  um modelo de “produção artística da esquerda a ser combatida”.

Na década de 1970 acompanhou o processo de independência de Moçambique, onde foi reconhecido como um dos principais agentes na construção do cinema nacional moçambicano, e onde filmou o longa “Mueda: memória e massacre”, sobre um dos últimos confrontos de resistência dos moçambicanos frente à dominação colonial portuguesa, em 1960. Ruy Guerra morou em Cuba, onde, como professor, ajudou a estruturar uma das maiores escolas de cinema da América Latina, a Escuela Internacional de Cine y Televisión, e em Portugal, já na década de 1990, num período difícil de ascenso do neoliberalismo e com várias adversidades para filmar. Com uma vida intensa e cheia de realizações, é preciso ter fôlego para acompanhá-lo.

“Ruy Guerra: paixão escancarada” é a segunda biografia escrita por Vavy Pacheco Borges, autora de pesquisas capitais sobre o período Vargas e o movimento tenentista no Brasil. Nesta recente biografia, a autora parte do pressuposto de que é impossível dar conta de todas as vivências e experiências de um artista como Ruy Guerra, até porque Ruy está vivo e atuante. Vavy comenta: “Como contar a história de uma vida não terminada, de um biografado vivo e falando de seus planos futuros? Em sala de aula, Ruy me arreliou: ‘Quando ela publicar o livro, eu saio na rua, mato alguém, aí quero ver como fica a história dela.”

Vavy, como historiadora, não se exime de seu ponto de vista, deixando claro que a biografia é o seu olhar sobre a vida e a obra do cineasta. E dialeticamente, a leitura do livro faz com que nos aproximemos de Ruy assim como da própria autora. São as muitas conexões entre a vida da biógrafa e a de seu biografado. A paixão pelo cinema e o olhar atento para a realidade brasileira são duas delas.

Não há tempo para amenidades nessa biografia. Os relacionamentos pessoais de Ruy nos revelam que o cineasta é um grande artista porque também construiu grandes parcerias, sejam elas,  profissionais, amorosas ou grandes amizades: Miguel Torres, Nara Leão, Leila Diniz, Chico Buarque e Gabriel Garcia Marques, são alguns nomes evocados por Vavy. Por isso também, a obra coloca a trajetória de Ruy em relação com a produção cultural brasileira e latino-americana de esquerda da segunda metade do séc. XX.

A segunda parte do livro é dedicada a um estudo sobre a obra de Ruy Guerra, abarcando não só os filmes, como a poesia, a dramaturgia, as canções. O entrelaçamento da vida e da obra do artista no livro nos confirma que a compreensão de suas criações passa pelo entendimento material das condições de produção dos filmes (na maioria das vezes muito difíceis e precárias), pela persistência em filmar projetos que durarão muitas vezes mais de uma década, pela relação com toda a equipe de artistas e produtores envolvidos e pelos posicionamentos ideológicos presentes na escolha dos trabalhos a serem realizados. Não à toa, Ruy sempre se mostrou muito consciente da realidade das artes na periferia do capitalismo.  

Porém, com todas as adversidades materiais enfrentadas ao longo da vida, não há tempo para lamentações, tanto da parte de Ruy como da própria Vavy – os dois octagenários cheios de vida e futuro. Aliás, o livro é uma ode aos sonhos e projetos que estão ainda por se realizar, ou que ainda não foram “perseguidos” – para citar uma expressão presente no livro sobre Ruy. Vavy inclusive foi produtora do documentário “O homem que matou John Wayne”, sobre Ruy Guerra, dirigido por Diogo Oliveira e Bruno Laet, de 2016.

Ruy Guerra, é um artista que lida com a realidade social e política de modo a confrontá-la, criando em suas obras fissuras onde podemos imaginar novas formas de viver no mundo. Ao ler sobre sua vida e obra, através do olhar de Vavy, tomamos fôlego para a encarar mais de perto o Brasil.

Mais informações:

https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/ruy-guerra-682