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TEORIA

Por que a reforma trabalhista pode significar o fim de boa parte do que restou da indústria brasileira de alta tecnologia?

Patrick G. de Paula

Na dialética da dependência (1973), Ruy Mauro Marini teorizou a super-exploração da força de trabalho como um dos traços distintivos essenciais das economias dependentes na América Latina. Para Marini, o passado colonial e a persistência relativamente recente de relações compulsórias de trabalho estariam na base de uma divergência profunda entre os níveis de produtividade do trabalho entre os países latino-americanos e as principais economias industriais, no momento da entrada daqueles no mercado mundial capitalista.

Este fato, associado a um crescimento diferencial da produtividade (em outras palavras: aos avanços tecnológicos mais rápidos na produção nos países centrais) teria como conseqüência o que Marini vai chamar de intercâmbio desigual: mercadorias que expressam uma quantidade de trabalho cada vez maior realizado na periferia são trocadas por mercadorias que expressam quantidades cada vez menores de trabalho realizado nos países industriais. Aqui estaria a base das trocas de “toneladas de minérios por algumas caixas de microchips”, só que cada vez mais toneladas de minérios por cada vez menos caixas de microchips.

Esta troca ou intercâmbio desigual, do ponto de vista interno dos países latino-americanos, significaria uma pressão cada vez maior sobre a lucratividade dos capitalistas, que contra ela teriam desenvolvido mecanismos de compensação peculiares à sua situação periférica: sempre que observam sua lucratividade ameaçada pelo crescente atraso tecnológico (em termos relativos), os capitais latino-americanos recorreriam a ao menos dos seguintes expedientes: 1 – Aumentos na intensidade do trabalho (algo como aumentar o ritmo das máquinas); 2 – Extensão da jornada de trabalho (aumento da quantidade de horas trabalhadas por trabalhador); 3 – Remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor (reiteradas reduções dos salários abaixo do nível social/culturalmente considerado como normal no momento). À operação destes mecanismos de compensação como forma de recuperação da lucratividade dos capitais periféricos, Marini chama de super-exploração da força de trabalho.

A super-exploração de Marini, portanto, não consiste apenas na possibilidade de um exploração do trabalhador além do “normal”, mas em uma lei tendencial do capital nas condições existentes na periferia, ou seja, trata-se de uma forma necessária que assumiria a acumulação de capital nas condições existentes nos países dependentes. O capitalismo daqui precisa “super-explorar”, ou então entra em crise.

Independente dos acertos ou eventuais erros de Marini na construção de suas categorias de análise, qualquer observador mais atento reconhecerá que aquilo que Marini chama de super-exploração, não necessariamente como posição estática, mas como forma de movimento, é um aspecto fundamental da acumulação de capital na América Latina e em boa parte da periferia capitalista.

Vejamos o caso da reforma trabalhista.

Vivemos recentemente no Brasil uma crise profunda com crescimento do desemprego, recessão ou estagnação da economia. Diante disso, os capitalistas exigem medidas que permitam a recuperação de sua lucratividade como requisito para a recuperação da economia (e do emprego etc.). Quais medidas são as exigidas pelos capitalistas brasileiros (ou, mais precisamente, os capitalistas que operam no Brasil)? Maiores investimentos em tecnologia? Mais recursos para pesquisa e desenvolvimento? Nada disso: eles exigem redução dos seus “custos” pela via da retirada ou “flexibilização” de direitos trabalhistas, liberalização das terceirizações (que na prática significam apenas maior liberdade para violação de direitos trabalhistas), instituições de remunerações abaixo do salário mínimo (o verdadeiro significado do famigerado “trabalho intermitente”) e fim das fiscalizações estatais das condições de trabalho degradantes ou análogas à escravidão. Em suma, os capitalistas exigem do governo que lhes permita acionar sobre os trabalhadores os mecanismos da super-exploração, de uma forma livre de quaisquer constrangimentos, em especial daqueles relacionados a práticas até então proibidas por lei. Marini não poderia estar mais certo.

Em comum todo este conjunto de medidas tem o seguinte: todas elas visam recompor a lucratividade dos capitais pela via de redução da participação dos salários no total da riqueza produzida socialmente, ou seja, significam um aumento da exploração dos trabalhadores de uma forma absoluta, já que não se baseiam numa redução (relativa) do custo de vida do trabalhador, como ocorre em geral nas economias industriais na medida em que os aumentos de produtividade barateiam as mercadorias de subsistência.

A imprensa empresarial vende medidas deste tipo com o argumento da sua necessidade para a “volta do emprego” etc. Trata-se obviamente de uma falácia, uma manobra cínica que visa aproveitar o desespero de quem está desempregado para permitir o assalto do capital a uma parcela da remuneração do conjunto dos trabalhadores. O nível de emprego não depende apenas do salário, e uma redução salarial pode ter impacto negativo na demanda de modo a gerar ainda mais desemprego. Além disso, as contratações e a expansão da produção também obedecem a certos critérios técnicos, e uma redução salarial não significa que tal fábrica vai abrir outra planta, ou que tal rede de lojas vai abrir novas filiais. Isto pode até ocorrer, em especial em negócios de pequeno porte, mas nada garante que isto ocorra em larga escala (os dados recentes apontam que o único setor impactado positivamente pelas medidas recentes do governo foi o trabalho informal). Entretanto, vistas como formas de redução dos salários, ou redução dos “custos” por trabalhador para os capitalistas, é claro que estas medidas têm como efeito direto uma elevação da taxa de lucros dos capitalistas, ou uma recomposição destas taxas.

Uma reforma a favor do atraso.

Tudo isto já foi exaustivamente discutido recentemente. Entretanto, um aspecto importante tem sido negligenciado no debate recente, que é a forma diferencial que a redução salarial geral trazida pelas medidas do governo atinge os distintos setores da economia. A queda no nível salarial pode até beneficiar todos os capitalistas (em um sentido direto, imediato, de redução dos “custos”), mas é óbvio que ela beneficia mais àqueles cuja proporção dos gastos com salários em relação ao capital total adiantado é maior, do que àqueles onde a proporção dos salários dentro dos seus “custos totais” é menor. Ou seja, as reduções salariais beneficiam mais os setores “menos tecnológicos”, e menos aqueles cuja produção é mais sofisticada, e os custos da maquinaria são mais relevantes.

Mas a questão aqui não é apenas de “quem ganha mais” contra “quem ganha menos”. A produção capitalista é caracterizada também pelo fato de que a lucratividade geral na economia tende a nivelar-se. Toda vez que um setor qualquer apresenta uma lucratividade acima da média, ocorre uma migração de capitais para estes setores mais lucrativos, e o aumento de capitais, da produção e da oferta de produtos termina por levar a uma redução de preços, o que por sua vez resulta numa redução da lucratividade extraordinária, até que ela se aproxime da média social geral.

Este processo de formação de uma taxa média de lucros faz com que existam conseqüências peculiares para uma redução salarial geral[1]. Tomemos como ilustração a evolução de três capitais distintos (que não representam o capital social total): o capital 1, de menor “intensidade tecnológica”, tem uma proporção entre seus gastos com máquinas, equipamentos e matérias primas (o que Marx chama de capital constante) versus salários de 50/50 (ou seja, os salários correspondem a metade de seus custos (nos termos da economia, um setor “trabalho-intensivo”); o capital 2, que fica na média social em termos da proporção de seus gastos com salários (o que Marx chama de capital social médio), para o qual os salários correspondem a 20% dos seus gastos (ou seja, a proporção é de 80/20); e o capital 3, de um setor que utiliza a tecnologia mais avançada, onde a participação dos salários nos custos totais é de 8% (proporção 92/8) (nos termos da economia, um setor “capital-intensivo”). Neste caso hipotético, a taxa média de lucro seria de 20%[2].

situação I

Imagine-se então uma redução salarial de 25%, mantendo-se constantes os demais gastos e supondo que as mercadorias são vendidas aos preços de produção. Todos os gastos com salários se reduzem em um quarto. Entretanto, isto não significa uma redução idêntica dos preços, o que neste caso significa que não houve uma redução do valor das mercadorias, mas apenas uma redistribuição do valor produzido pelos trabalhadores dos salários para os lucros (ou seja, um crescimento do mais-valor em detrimento do capital variável). Assim, com a redução salarial ocorrerá uma elevação da taxa de lucro.

Supondo que o capital 2 continua equivalente ao capital social médio (em termos da proporção entre salários e capital constante), comecemos por ele para descobrir a nova taxa média de lucros. Uma redução de 25% significa que agora seus gastos com salários se reduzem de 20 para 15. Sendo assim, o valor-mercadoria total ao final do processo de produção = 80 (capital constante) + 15 (salários) + 25 (lucros) (neste caso, como se trata do capital social médio podemos supor preços inalterados) = 120. A taxa de lucros (que para o capital médio é igual ao mais-valor produzido) é agora de 25/95 (lucro total / capital total adiantado) ≈ 26,32%. De acordo com os pressupostos do exemplo, esta é a nova taxa de lucro média, o que significa que (nas condições do exemplo) os capitalistas terão um aumento médio próximo de 6 pontos percentuais em seus lucros com a queda salarial geral de 25%. Vejamos agora como fica a situação dos demais setores com a redução salarial geral de 25% e uma nova taxa média de lucros de 26,32%:

situação 2O que ocorre neste caso é que o capital 1, aquele cujos gastos com salários são relativamente mais altos (o “menos tecnológico”, digamos) é mais beneficiado pela redução salarial, pois consegue agora obter a lucratividade média (que é 26,32%, seis pontos percentuais mais alta do que os 20% anteriores) mesmo reduzindo os seus preços (de 120 para 111,53). Já o capital cujos gastos com salários tem uma participação menor nos custos totais (o “mais tecnológico”) só conseguirá obter a nova taxa de lucros (26,32%) se aumentar os seus preços (de 120 para 123,8), mesmo com a redução de 25% nos seus gastos com salários. O aumento geral da lucratividade expressa um aumento geral da exploração dos trabalhadores, expresso na taxa de mais-valia (que necessariamente aumenta).

Isto significa que os capitais dos setores mais atrasados agora vão obter uma lucratividade relativamente maior caso não reduzam os preços de seus produtos, enquanto os capitais dos setores de tecnologia mais avançada vão ter que aumentar preços para obter a taxa média de lucros ou então terão que aceitar uma taxa de lucros abaixo da média caso mantenham os preços anteriores.

Entretanto, na prática os efeitos da redução salarial podem assumir contornos adicionais. Como os capitais dos setores mais sofisticados em geral concorrem com produtos fabricados no exterior, onde não são sentidos os efeitos da redução salarial e do aumento da taxa de lucros dela decorrente, talvez não seja possível, devido à concorrência, realizar o aumento de preços necessário para a obtenção da nova taxa média de lucros. De modo que é perfeitamente plausível imaginar que estes setores precisem se “contentar” com uma taxa de lucros abaixo da nova média (no caso do exemplo, abaixo de 26,32%, ainda que possam obter taxas acima dos 20% anteriores)[3].

Qual o problema disso? O problema é que, como vimos, no capitalismo uma taxa de lucros abaixo da média sinaliza uma retirada de capitais destes setores e uma migração destas para os setores onde a lucratividade é superior.

É óbvio que para os capitalistas o problema não se apresenta desta forma. O que pode ocorrer é que em alguns meses empresas nestes setores podem reduzir seus investimentos, algumas matrizes podem fechar suas filiais no Brasil ou algumas empresas podem passar a ter dificuldades de financiamento, sendo os financiamentos e os capitais direcionados para os setores onde a lucratividade é mais alta (setores mais “trabalho-intensivos”). Isto não porque os lucros tenham caído, mas apenas porque estes cresceram a taxas mais baixas do que os setores menos “capital-intensivos”, devido à redução salarial. De qualquer forma, o conjunto de medidas que visa atacar os salários dos trabalhadores e que tem na reforma trabalhista seu carro chefe pode acender um sinal vermelho para o que restou da indústria de alta tecnologia instalada no Brasil.

Se para os capitalistas, entretanto, o que importa são os lucros, é pouco relevante se estes são obtidos produzindo aviões ou chinelos, então isto não é necessariamente um problema. Já para os trabalhadores e para a sociedade brasileira em geral trata-se de um problema grave, pois a perda destes setores contribui para o atraso técnico, material e cultural em um sentido mais amplo, já que sabemos que a industrialização é muito mais do que um mero fato econômico, mas consiste em uma alteração profunda no modo de vida. Deste modo, o que fica demonstrado é o quanto o capitalismo cada vez mais impõe retrocessos à nossa vida, e tem cada vez menos a oferecer, o que reforça a necessidade da superação deste tipo de sociedade.

Ademais análise acima permite expor a falsidade e o caráter contraditório de todo o discurso de um setor da direita brasileira que, para posar de nacionalista, reclama da subordinação do país à “globalização” e do atraso tecnológico, mas ao mesmo tempo defende a necessidade de escolher entre “direitos ou empregos”, ou seja, defende ou aceita medidas no sentido de uma redução da remuneração dos trabalhadores com vistas à recomposição dos lucros dos capitalistas. Seu “nacionalismo” consiste apenas na busca de bodes expiatórios para os problemas do país, identificando suas causas nos trabalhadores imigrantes e nas minorias, incitando o preconceito e a xenofobia. Mas quando se trata de medidas econômicas concretas, defendem sempre aquelas que favorecem o mesmo modelo rentista e primário-exportador que os demais representantes políticos dos capitalistas, seus colegas “liberais”.

Mesmo que a desumanidade das medidas defendidas pelo governo contra os trabalhadores não fosse motivo suficiente, a crítica da economia política fornece razões adicionais para apoiar a luta contra as reformas propostas pelo atual governo, dentro da qual a luta pela construção da greve geral contra estas reformas, bem como a recente emenda apresentada no congresso exigindo um referendo sobre a reforma trabalhista, permitindo que a população decida pela sua revogação, são exemplos.

Observação: Este artigo foi editado em 07/12/2017 para corrigir alguns erros na redação original.

Notas:

[1] O argumento a seguir baseia-se na lógica do exercício realizado por Marx em O Capital, no capítulo XI do livro III, que oferece um exemplo mais completo e detalhado do mesmo ponto abordado aqui.

[2] Igual à taxa de lucro do capital social médio, supondo a taxa de mais-valia igual a 100%.

[3] Assume-se aqui adicionalmente que o movimento de nivelamento das taxas de lucro seja nacional (conforme Marx defende em O Capital). Recentemente, alguns economistas marxistas, entre os quais Michael Roberts e Minqi Li (e acredito que o próprio Marini também tinha esta compreensão), tem defendido a possibilidade de uma “taxa de lucros mundial”. Esta consideração alteraria substancialmente os termos do problema, em especial no ponto levantado neste parágrafo, o que não necessariamente significa que o argumento seria invalidado.