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Sobre ódios e medos

Valerio Arcary, militante do MAIS

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por Valério Arcary, Colunista Do Esquerda Online

O medo cala a boca dos inocentes e faz prevalecer a verdade dos culpados.

                                                                                                                          Karl Marx         

Me perguntam, com alguma frequência, sobre o lugar do ódio na luta contra a opressão e a exploração. A sociedade em que vivemos está atravessada pelo conflito de interesses. Não há solução indolor para nenhum problema político-social. Não há soluções técnicas, neutras e indolores. Para que a maioria social possa ser beneficiada, uma minoria privilegiada precisa ser prejudicada. Aonde prevalece a injustiça, engrandece o ódio. E só o medo silencia o ódio.

Os ódios sociais são incompreensíveis quando não os relacionamos com os medos sociais. Prevalece nas camadas médias da sociedade a aspiração pela paz, na mesma proporção em que os antagonismos sociais ficam mais duros. O desejo de paz corresponde à necessidade de preservação da ordem. Não é por outra razão que a extrema direita exige a criminalização das lutas operárias e populares.

São poderosas as pressões de inércia cultural e ideológica que aprisionam as amplas massas trabalhadoras, urbanas ou rurais, na apatia ou na submissão. Mas em situações revolucionárias precisam medir forças com pressões ainda mais fortes. Não há força social mais poderosa na história do que a revolta popular, quando se organiza e mobiliza.

O medo de que a mudança não chegue nunca – que, entre os trabalhadores, é desencorajado pelo temor às represálias – precisa encarar medos ainda maiores: o desespero das classes proprietárias de perder tudo. No calor de processos revolucionários a descrença dos trabalhadores em suas próprias forças, a incredulidade em seus sonhos igualitaristas, foram superadas pela esperança de liberdade, um sentimento moral e um anseio político, mais elevado que a mesquinhez reacionária e a avareza burguesa.

A dimensão utópica da ideia socialista – a promessa de uma sociedade sem classes, ou seja, a aposta na liberdade humana – teve e tem seu lugar na exaltação ideológica. Que o vocabulário desta exaltação tenha sido, tntas vezes, místico é compreensível. Os sonhos alimentam a luta por um mundo melhor. Igualdade social e liberdade humana permanecem sendo as aspirações civilizatórias mais elevadas da época que nos tocou viver.

Na luta contra a exploração as massas populares, mais de uma vez, deixaram-se seduzir por discursos milenaristas – a escatologia de futurismos que preveem um esgotamento “natural” da ordem do mundo – ou messiânicos – a redenção de uma vida de sofrimento por um agente salvador -, que ressoam suas aspirações de justiça. São ilusões de que o mundo poderia mudar para melhor sem luta, ou sem maiores riscos. A forma mística da linguagem, porém, não deveria desviar nossa atenção.

A vida material dos trabalhadores ao longo da história remete à imagem do vale de lágrimas. Quem vive sob a exploração precisa acreditar que é possível transformar o mundo ou, pelo menos, que o seu sacrifício tem um sentido. Esta expectativa moral de que deve haver recompensa e punição corresponde à sede de justiça. Acreditar que será em outra vida ajuda a continuar a luta nesta vida, não o contrário.

A esperança em uma mudança iminente, ou a fé na força de uma liderança salvadora responde a uma intensa necessidade subjetiva – os céticos asseverariam um consolo -, mas também a uma experiência. Os que vivem do trabalho sempre foram a maioria. Os explorados sabem que sempre serão a maioria, enquanto houver exploração. É dessa experiência que se renova a esperança de que podem mudar suas vidas.

Todas as classes dominantes foram hostis a doutrinas utópicas que previam a subversão da ordem, e combateram sem hesitação movimentos de massas que abraçaram o prognóstico – ou a profecia – de um iminente desmoronamento do poder constituído. Acontece que o povo expressa-se no vocabulário que tem disponível. E crenças revolucionárias, quando conquistam as vozes das ruas, podem assumir uma dicção religiosa.

São os despossuídos, os visionários, e os radicais políticos que se comovem com a perspectiva de que é possível mudar o mundo. Os reacionários de todos os tempos sempre insistiram em desqualificar as utopias como teorias e projetos desvairados inspirados por apaixonados e extravagantes.

Mas o nome deles é revolucionários.