Dois breves comentários acerca da relação entre partido revolucionário e vanguarda

Por: Daniel Tomazine Teixeira, de Duque de Caxias, RJ

No dia 18 de novembro passado, o camarada Valério Arcary publicou um artigo intitulado O caminho para chegar às massas passa pela vanguarda. Trata-se de uma bela escrita, que resgata conceitos clássicos do marxismo revolucionário. Sou adepto da maioria das afirmações contidas nesse artigo. Mas, como só as polêmicas fazem as coisas andarem em política, dedico-me a apresentar dois comentários a respeito de conclusões que considero equivocadas que se façam a respeito do tema, embora não apareçam explicitamente no texto.

Nova vanguarda x velhas direções
Sigamos a ordem dos temas conforme aparecem no artigo citado. Já no segundo parágrafo, nosso camarada afirma:
“Há momentos raros em que a nova vanguarda não se sente identificada ou representada pela direção majoritária pré-existente. Nessas circunstâncias, abre-se um período de disputa aberta pela direção da classe, de’rebelião de base’, de reorganização sindical e política. Um período assim só é possível depois de esgotada uma experiência histórica, e exige, além de argumentos, a força inapelável de grandes acontecimentos. Estamos em um desses momentos raros”.

No caso brasileiro, devemos ler “direção majoritária pré-existente” como as correntes petistas e aliadas que dirigem a maioria dos sindicatos e movimentos sociais das classes exploradas e oprimidas. Dessas correntes, a que exerce uma certa hegemonia no movimento operário brasileiro é a Articulação Sindical (ArtSind). Dirigem a CUT desde sua fundação, bem como a ampla maioria dos sindicatos brasileiros. Esta corrente segue à frente de praticamente todos os sindicatos que já dirigiam antes da vitória de Lula em 2002, depois das jornadas de junho de 2013 e mesmo depois do golpe palaciano de 2016.

Não é possível afirmar que haja rebelião de base contra a ArtSInd, ou outras correntes políticas que dirigem os sindicatos. É certo que perderam algumas eleições sindicais. Mas, nada que tenha abalado seu poder. É certo que houve momentos em que a base, e uma vanguarda jovem nos locais de trabalho, quiseram ir além. No meu caso, vivenciei uma experiência ímpar: os petroleiros, em várias bases dirigidas pela ArtSind, rejeitaram a orientação de fim de greve apresentada pela FUP, em 2015. Neste ano de 2017, as eleições nos Sindipetros Ceará, Minas Gerais e Duque de Caxias foram os que mais chegaram perto de retirar esses velhos dirigentes burocráticos de seus aparatos, dando votações expressivas às oposições sindicais, majoritariamente compostas por uma vanguarda jovem.

Porém, mesmo nesses casos, a grande maioria dos que compõem a vanguarda das oposições sindicais ainda possui referência política no lulo-petismo. Ou seja, podem até não querer mais que as mesmas direções sigam à frente dos sindicatos, mas desejam o retorno do PT e aliados ao Governo Federal.

Assim, é totalmente falsa a afirmação de que vivemos esse “raro momento” em que a nova vanguarda não reconhece a liderança das direções sindicais e políticas pré-existentes. Seria verdadeiro se falasse que é crescente dentro da vanguarda o descontentamento com essas velhas direções. Mais falsa ainda é a premissa de “rebeliões de base”. Essa assertiva simplesmente não se sustenta à luz da história recente da classe trabalhadora.

Política para as massas x política para a vanguarda
A segunda observação parte do próprio título do artigo, mas se expressa melhor na seguinte passagem: “Nesta luta pela organização da vanguarda o mais importante é que os marxistas revolucionários tenham a paciência para explicar o programa. Nada substitui a defesa do programa porque ele é a síntese entre a estratégia e a tática. Compreendendo a estratégia, mesmo que a situação permaneça adversa, a vanguarda não desmoralizará. O caminho para chegar às massas, em uma situação defensiva, passa pela vanguarda”.

Ora, nossa observação se desdobra em duas:

1) os revolucionários, agrupados na forma Partido, são selecionados na vanguarda, como o mesmo autor afirma anteriormente. Assim, não importa se a época é defensiva, se é insurrecional, se é reacionária, se é revolucionária. A verdade é que o partido político revolucionário só atua a partir da vanguarda, pois ele é parte da vanguarda.

2) A disputa pelo programa é sistemática. Contínua. Nunca acaba. Mesmo após a tomada do poder. Mas a disputa programática se situa num campo amplo. É propaganda, é disputa ideológica, é disputa de estratégia, mas também passa pela agitação, pois o programa deve levar em conta não só as necessidades da classe trabalhadora e seus aliados, mas deve considerar a forma como se disputa a consciência das massas exploradas e oprimidas.

A disputa pela consciência das massas, por sua direção, passa pelo campo da agitação. Aqui, as táticas, as palavras de ordem, os detalhes fazem toda a diferença. Um partido revolucionário tem, por vocação, o objetivo de dirigir as massas em sua luta contra a exploração e opressão que vivenciam cotidianamente. Portanto, a política para as amplas massas, que é a aplicação do programa, não sua disputa ideológica, se faz com política de massas, não de vanguarda. A vanguarda é disputada para a implementação das políticas de um partido. Ninguém é convencido a se disciplinar por um partido sem que concorde com sua política cotidiana – isto é, com a aplicação prática do seu programa para a luta pelo poder. Não existe o convite “se junte a nós, que aqui dentro você tenta mudar o que não concorda”. Obviamente que acordos completos são raros. E a luta de classes é dinâmica. O que era válido em um dia, deixa de sê-lo no seguinte.

Acredito que o momento da luta de classes defensiva dificulta o trabalho dos revolucionários sobre as massas. Essas se tornam mais conservadoras. Têm pouca confiança em suas ações. A pressão pela sobrevivência inibe a maior parte da coragem por enfrentar o sistema na sua raiz. Deste modo, é esperado que os revolucionários voltem boa parte de suas energias para os debates internos. O cenário brasileiro atual é desanimador: uma esquerda desmoralizada pelos 13 anos de conciliação de classes imposto pelo PT e PcdoB e extremamente dividida, sofrendo da “melancolia da esquerda fragmentada”, para usar o conceito da camarada Sabrina Fernandes.

Lutar para superar as divergências, buscar as sínteses, fusões de organizações, elaboração de um novo programa que atenda à realidade atual do país, tudo isso é desejável. Ou melhor, necessário. É melhor que se inicie agora, enquanto estamos na defensiva, do que se improvise num momento de acenso. As jornadas de Junho de 2013 não nos autorizam a deixar para o improviso. Uma oportunidade rara foi perdida. É preciso reconstruir os laços de confiança e de respeito entre a esquerda revolucionária. Que se faça já.

Isto não quer dizer, porém, que os revolucionários tenham que abandonar a disputa pela liderança das massas exploradas e oprimidas. Essas, porém, estão a seguir, majoritariamente, as velhas direções lulistas, ou caindo no conto neo-conservador e novo-fascista de pessoas como Dória e Bolsonaro, sem contar com o obscurantismo crescente das vertentes teocráticas de uma grande parte das igrejas neopentecostais, que já provaram ter um projeto de poder político para o País.

O Partido revolucionário, em qualquer situação, visa o trabalho sobre as massas. Em situações reacionárias, seu trabalho é extremamente limitado, quase nulo a depender do grau de repressão. Em situações defensivas, seus apelos encontram resistência, especialmente se abrirem mão das mediações táticas; das exigências políticas às velhas direções; da construção de frentes únicas. Em situações ofensivas, a distância entre o programa e a palavra de ordem diminuem. Isto facilita o trabalho do partido. Em todos esses momentos, porém, o caminho às massas, de fato, passa pela vanguarda.

Imagem: Contraste Acompanhado (1935) | Kandinski | 38,2 × 63,8 “(97,0 x 162,0 cm) |  Nova York, The Solomon R. Guggenheim Museum