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O caminho para chegar às massas passa pela vanguarda

Valerio Arcary, militante do MAIS

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por Valério Arcary, Colunista do Esquerda Online

Dentro da consciência da classe trabalhadora e das massas exploradas, há uma luta entre concepções falsas e verdadeiras. Por exemplo, um trabalhador socialdemocrata que odeia o fascismo o considera seu pior inimigo e quer trabalhar a unidade para lutar contra ele, mas, ao mesmo tempo, confia em sua liderança burocrática e reformista. Quanto ao fascismo, tem uma consciência verdadeira; em relação à sua direção e, consequentemente, ao modo de lutar contra o inimigo, falsa. Aqui, como em todo conhecimento, o papel da prática é decisivo(…) Somente a prática pode permitir que ele vença o falso e afirme o verdadeiro, alcançar um novo nível de consciência, que terá novas contradições sempre superáveis ​​através de novas ações [1].

 

                                                                                                                  Nahuel Moreno

Algumas linhas sobre o tema da vanguarda, tão importante, mas tão pouco estudado. A classe trabalhadora e as outras classes populares geram, nas lutas sociais, um setor mais ativo, mais corajoso, mais disposto ao sacrifício, mais altruísta, em resumo, mais avançado. Em um país com as dimensões do Brasil, mesmo no contexto da atual situação defensiva, são dezenas de milhares de ativistas. Nos anos oitenta teríamos que considerar que eram na escala de centenas de milhares.

Há momentos raros em que a nova vanguarda não se sente identificada ou representada pela direção majoritária pré-existente. Nessas circunstâncias, abre-se um período de disputa aberta pela direção da classe, de “rebelião de base”, de reorganização sindical e política. Um período assim só é possível depois de esgotada uma experiência histórica, e exige, além de argumentos, a força inapelável de grandes acontecimentos.

Estamos em um desses momentos raros.

Eles são as lideranças locais que estão dentro das fábricas, nas empresas, nos movimentos populares, de mulheres, negros, LGBT’s, nas escolas e faculdades. Eles conquistam autoridade política e moral, em primeiro lugar, pelo seu despojamento. Também pela capacidade de traduzir em idéias ou em ações as aspirações da maioria. Sempre foi nesta camada mais enérgica que se selecionaram as lideranças das organizações independentes da burguesia, sejam sindicais, populares ou políticas.

A vanguarda se forma participando das lutas, não há outro caminho. Uma parte da vanguarda é quebrada pelas sequelas da repressão, ou pelas consequências desmoralizadoras das derrotas, outra será cooptada pela ação corrupta.

A burguesia, como as outras classes proprietárias da história, descobriu outros caminhos para resolver o problema da formação dos seus quadros dirigentes. Quando não os encontram, pela tradição de comando ou pela seleção de talentos, em suas fileiras, vão buscá-los na inteligência “disponível”, e remunerá-los bem.

O proletariado e as classes populares, não podem depender, evidentemente, desse recurso. Embora a força de atração de uma classe explorada se expresse, também, na capacidade de atrair para a sua causa os quadros mais sensíveis e abnegados que rompem, ideologicamente, com sua classe de origem. Os trabalhadores têm que formar as suas lideranças, arduamente, nas lutas. Em condições de estabilidade política, ou seja, de defensiva,  os sujeitos sociais oprimidos e explorados não geram uma grande vanguarda ativista. Quando muito, surge uma pequena vanguarda, muito diminuta, de suas fileiras.

Acontece que as relações da massa dos trabalhadores com sua vanguarda, e vice-versa, desta com a massa, não são simples. Nesta complexa relação reside um dos problemas da construção das organizações de esquerda, da consciência de classe, da subjetividade, da maior confiança dos sujeitos sociais em si mesmos, e da maior ou menor fé na vitória de suas lutas. A vanguarda das lutas, as lideranças enraizadas nas fábricas, escolas, empresas, bairros ou faculdades só se formam nos processos de mobilização e podem ou não avançar até à organização sindical e política permanente. Freqüentemente, uma maioria desta vanguarda retrocede ao final da luta, em maior medida ainda, se esta for derrotada. A vanguarda é um fenômeno, no sentido de que é um aspecto subjetivo da realidade em movimento, e pode tanto se organizar em uma superestrutura da classe já existente, quanto pode voltar a se integrar na massa e abandonar a luta ativa ao final do combate.

Na medida em que o impulso da luta for maior e mais consistente, a vanguarda se sentirá estimulada a aprender as lições das lutas anteriores. Procurará, então, se educar politicamente, e fará mais relações entre os fins e os meios, isto é, entre estratégia e tática, escolhendo a adesão a um partido ou sindicato, como via para a sua própria construção como liderança permanente. Entretanto, nesse processo, a vanguarda vive um conflito que pode se resolver, esquematicamente de três maneiras. O conflito é a luta, em um certo sentido, contra si mesma. Elevar-se acima das angústias das massas que, como sabemos, hesitam, vacilam e retrocedem durante a luta, para depois voltar a avançar, e depois voltar a retroceder, não é fácil.

Não é incomum que a vanguarda se exaspere diante destas hesitações das massas, e desenvolva um sentimento de frustração e decepção. Esse sentimento, potencialmente, conduz a três atitudes diferentes: uma parte da vanguarda fica tão desmoralizada com as fragilidades das massas que abandona o combate, desiste de tudo, e pode guardar um ressentimento maior contra sua própria base social do que contra as classes socialmente hostis e suas lideranças; outra parte da vanguarda, amargurada com o recuo e abandono das massas, se separa destas, e se inclina por ações isoladas e exemplares, para decidir sozinha a sorte do combate; uma terceira camada, escolhe o caminho de avançar junto com a massa e recuar, também, junto com ela, para ajudá-la a aprender as lições da luta, e garantir melhores condições de organização nos combates que se colocarão no futuro.

Se esta vanguarda encontra, durante a luta, um ponto de apoio para a sua formação como liderança de massas, uma boa parte dela pode se organizar permanentemente, se educar, e se construir como direção, para, na luta seguinte, combater em melhores condições. Esse ponto de apoio é a primeira razão de existência de um partido de classe. Ele deve ser esse ponto de apoio. A condições em que é possível lutar abertamente pelo poder são excepcionais. Elas só se abrem em uma crise revolucionária. A maior parte do tempo lutamos em situações políticas muito mais adversas. Uma organização socialista deve ser uma fortaleza para a educação dos e das melhores ativistas de vanguarda.

Porque senão, a maior parte das lideranças “naturais” se perderão, e será necessário um novo ciclo de lutas, para que se possa gestar uma nova geração de ativistas. Este processo de seleção “selvagem” de lideranças, em que uma incrível quantidade de energias se desperdiçam, tem sido uma das maiores dificuldades da construção de uma subjetividade do proletariado.

Um outro aspecto da questão, é a relação da vanguarda “emergente”, com as organizações sindicais e políticas pré-existentes que expressam a tradição anterior de organização das classes populares. Sendo elas muitas, e estando em luta umas contra as outras para conquistar maior influência, é previsível que a vanguarda, em um primeiro momento, se enerve contra todas elas. Simplesmente, por lhe ser difícil compreender as  ríspidas rivalidades.

O áspero sectarismo que prevalece cumpre um papel nefasto, porque, infelizmente, não se debatem somente as ideias, mas também se desmoralizam os militantes das correntes adversárias. Quais são as diferenças? Por que se criticam com tanta ferocidade? O quê as separam? A vanguarda se interroga sobre a divisão da esquerda entre moderados e radicais e precisa de tempo, de uma experiência para retirar conclusões. Esta luta ideológica é inevitável, mas pode ser feita de forma respeitosa e educativa.

Nesta luta pela organização da vanguarda o mais importante é que os marxistas revolucionários tenham a paciência para explicar o programa. Nada substitui a defesa do programa porque ele é a síntese entre a estratégia e a tática. Compreendendo a estratégia, mesmo que a situação permaneça adversa, a vanguarda não desmoralizará.

O caminho para chegar às massas, em uma situação defensiva, passa pela vanguarda.

[1] MORENO, Nahuel. O partido e a revolução.

https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/escandaloso/10_6_nm.htm

Consulta em 17/11/2017