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EDITORIAL

Aonde vai a Arábia Saudita?

Por Waldo Mermelstein, São Paulo/SP

O Oriente Médio vive novos momentos de expectativa e de tensão. Após a vitória da ditadura síria na guerra civil e a derrota do autodenominado Estado Islâmico (EI) no Iraque e na Síria, as potências globais e regionais disputam o seu espaço na nova configuração da região.

Na Síria, a vitória de Assad fortaleceu o Irã e a Rússia e o governo iraquiano é aliado de ambos, embora tenha também a sustentação dos EUA. Apesar de sua intenção de reforçar o giro em direção à Ásia para “conter” a expansão da China como potência mundial, Trump resolveu subir o tom em relação ao Irã. Com isso, de certa forma, repete a trajetória de Obama que não conseguiu se desvencilhar do Oriente Médio, uma região decisiva em termos econômicos e geopolíticos.

O fortalecimento do Irã na disputa regional a partir da vitória de Assad enfureceu a autocracia saudita. A visita de Trump à Arábia Saudita em maio, quando se reuniu com dezenas de dirigentes do mundo árabe e muçulmano, certamente foi o momento em que ele avalizou a série de iniciativas sauditas em matéria de política externa. Claro que esta é uma simplificação do complexo xadrez na região. Olhando com um foco mais centrado em cada país ou em alguma de suas sub-regiões podem se ver contradições mais complexas, como o tema dos curdos[1] ou a questão palestina.

A Arábia Saudita: centro reacionário do Oriente Médio

A Arábia Saudita é, há décadas, a maior produtora de petróleo do mundo e possui uma das mais importantes reservas do planeta. Por isso é também o país mais poderoso entre os países árabes e seu centro financeiro, apesar de sua força militar individual não acompanhar esse poderio na mesma proporção.

O pais é governado por uma monarquia absoluta desde a sua fundação em 1932, sob a proteção inicial dos ingleses, e, depois, fiel aliado dos EUA. O rei Abdulahziz bin Saud, o primeiro soberano, morreu em 1953 e, desde então, o poder tem sido administrado entre as várias alas formadas pelos seus 45 filhos e os milhares de membros que formam a família real.

Calcula-se que as muitas propriedades da Casa de Saud alcancem cerca de 1 trilhão de dólares. Além disso, o rei distribui entre suas diversas alas os postos fundamentais no aparato estatal, assim como os 20% das receitas totais do petróleo, que são entregues à coroa de forma permanente. Como quase todos os demais países do Golfo, o regime é uma monarquia absoluta, sem nem os adornos parlamentares de outros reinos árabes, como a Jordânia, o Kuwait e o Marrocos. A lei religiosa (sharia) é a base jurídica e utilizada de forma praticamente literal nas áreas criminal e de família, por exemplo. A interpretação da sharia é dada por uma versão fundamentalista extrema e reacionária do islamismo, o wahabismo. Os sauditas controlam de forma unilateral os dois maiores santuários muçulmanos, Meca e Medina, e recebem as peregrinações dos fiéis, em particular a peregrinação anual que dura uma semana – o Hajj. Cerca de dez milhões de muçulmanos visitam o pais todos os anos.

Além disso, o clero wahabista é um centro de difusão mundial de uma versão fundamentalista extrema do islamismo, alimentado pelos fartos recursos do petróleo.  O país é conhecido por ter um dos mais reacionários regimes de dominação sobre as mulheres. Estas não podem realizar as principais atividades da vida regular sem a autorização de um “guardião” masculino, nem interagir na maioria dos espaços públicos (transportes públicos, parques, praias, por exemplo). A vestimenta das mulheres é regulada pelos preceitos wahabistas e garantida pela polícia religiosa. O regime tem procurado fazer pequenas reformas que tornem as normas da vida cotidiana mais próximas da realidade de uma potência regional. Há um conselho consultivo do rei, composto por 150 membros indicados pelo soberano.  Não há partidos políticos nem sindicatos ou direito de greve e qualquer oposição ao governo monárquico é severamente punida. Não há liberdade de expressão escrita e nem online.

Atos simples, como o de ostentar algum sinal de solidariedade com o regime do Qatar por ocasião do recente bloqueio, podem acarretar uma pena de 15 anos de prisão. O ateísmo é punido por um decreto real de 2014 com 20 anos de cadeia e os LGBTs, com a morte por apedrejamento! É um dos países que mais executa pessoas (160 em 2016), incluindo a decapitação em praça pública. Por exemplo, um clérigo xiita, o Sheik Nimr-al-Nimr, que liderou manifestações contra a discriminação religiosa e por eleições diretas para o governo foi preso e executado em 2016, com mais 45 pessoas, por esses “crimes”.

As reformas têm avançado pouco e, mesmo sendo extremamente limitadas, têm encontrado oposição entre o clero wahabista (que teve destacados membros presos por conta dessas tensões). A monarquia fez algumas pequenas concessões aos direitos das mulheres, entre elas o anuncio de permitir às mulheres dirigir veículos a partir do ano que vem, sem abolir o sistema de “guardiões” masculinos sobre suas vidas…

Um peso decisivo de trabalhadores imigrantes

Como em todos países do Golfo Pérsico, uma grande proporção da população do país é composta por imigrantes temporários. Na Arábia Saudita, eles constituem 12 dos seus 32 milhões de habitantes. Em alguns países, essa proporção entre imigrantes e cidadãos do país chega a mais de 80%, como é o caso do Qatar.

O regime a que são submetidos esses imigrantes é um dos mais rígidos do mundo: a concessão de vistos temporários está vinculada à obtenção de contratos de trabalho e a gestão dos vistos é feita pelos empregadores. O visto só é válido enquanto o contrato de trabalho for mantido, os passaportes ficam em poder dos patrões que se aproveitam para impor baixos salários e condições duríssimas de trabalho, além da ausência de benefícios de seguridade social.

De fato, os países do Golfo possuem uma imensa reserva de mão de obra extremamente barata e mais facilmente controlável oriunda em particular do subcontinente indiano e do Egito. Na Arábia Saudita, o governo recorre de tempos em tempos a expulsões massivas de imigrantes, como ocorreu com dezenas de milhares de palestinos quando Yasser Arafat apoiou a ocupação do Kuwait por Sadam Hussein em 1990. A partir de 2013, a monarquia se dedicou a expulsar mais de um milhão de imigrantes que se tornaram “ilegais” pelo endurecimento das regras migratórias, entre os quais meio milhão de etíopes.

Mudança de perspectivas

A queda no preço do petróleo, de cerca de 115 dólares o barril em 2014 para um mínimo de 34 dólares em janeiro de 2015, levou a uma dramática mudança nas expectativas do país. Como outros países da região do Golfo Pérsico e do mundo árabe, a Arábia Saudita baseia toda a sua economia em torno do petróleo, de onde vêm cerca de 75% de suas receitas orçamentárias, 40% do PIB e 90% do valor de suas exportações.

A monarquia percebeu que precisa mudar a dependência dos hidrocarbonetos, pois a crise dos preços veio para ficar e suas reservas são finitas. As receitas do petróleo caíram de 300 para “apenas” 150 bilhões de dólares. As reservas em dólares do país caíram de cerca de 700 para pouco menos de 500 bilhões de dólares desde seu pico de 2014 até hoje.

O governo lançou um programa de austeridade e privatizações, aumentou os preços subsidiados de água e energia (os combustíveis subiram 50%, apesar de ainda serem muito baratos) e, em setembro de 2016, cortou em cerca de 30% os salários e benefícios dos servidores públicos e das estatais (cerca de 60% dos cidadãos sauditas). Houve uma forte reação negativa e, neste ano, uma ameaça inédita de mobilização preparada pelas redes sociais. Uma hashtag no Twitter – “Movimento 21 de abril”-, exigia a anulação das medidas e do anúncio da venda de ações da estatal do petróleo Aramco e a mudança do regime para uma monarquia constitucional, entre outras demandas. O governo recuou e anulou os cortes nos benefícios, seis meses depois de instituídos. Ao mesmo tempo, lançou um programa compensatório para os mais pobres.

Foi anunciado em linhas gerais um ambicioso programa de mudanças para transformar o país até 2030. Um dos pontos mais importantes para financiar o plano foi o anúncio da privatização de 5% (100 bilhões de dólares, segundo a avaliação do governo) da Aramco, a maior empresa de petróleo do mundo, em 2018. Os projetos incluem também o estabelecimento de zonas de livre comércio e a construção de Noam, uma megacidade ultramoderna a um custo de centenas de bilhões de dólares.

A crise levou a choques entre os vários grupos de grandes capitalistas afetados e também na população. O crescimento econômico em 2016 baixou para 1,4% e, neste ano, se reduzirá a 0,1%. O desemprego cresceu e, em 2016, chegou a 31% entre os mais jovens. Temerosos pelos efeitos da crise, os grandes capitalistas levaram 300 bilhões de dólares para o exterior.

 Uma política externa muito mais ativa

A dinastia saudita sempre cumpriu um papel de decisão em última instância dos conflitos entre os regimes da região, mas o fazia de forma discreta e com subsídios financeiros. E sempre impondo soluções econômicas neoliberais extremas.

Para citar alguns exemplos, o capital saudita (e do Golfo) é o principal patrocinador da Autoridade Palestina, foi a fonte principal de irredutível oposição à Primavera Árabe e é o principal sustentáculo da ditadura de Al Sissi no Egito, a quem destinou dezenas de bilhões de dólares.

O atual monarca, Salman bin Abdulaziz Al Saud, designou neste ano seu filho, Mohammed bin Salman (ou MBS, como é conhecido), de 32 anos, como príncipe herdeiro. A carreira meteórica de MBS nesta corte de anciãos, começou quando foi nomeado chefe da corte de seu pai, então príncipe herdeiro, em 2013. Quando o atual rei assumiu o trono em 2015, ganhou o Ministério da Defesa. E começou a comandar uma nova política externa do reino, muito mais ativa do que a anterior.

Sob sua liderança, a Arábia Saudita intervém desde 2015 na guerra civil no Iêmen, o país mais populoso (e miserável) da Península Arábica, contra uma facção apoiada pelos iranianos. Dois anos depois – milhares de mortos, dezenas de milhares de feridos, milhões de refugiados e deslocados, gastos de quase 200 bilhões de dólares – a aventura criminosa da dinastia saudita no Iêmen não tem nenhuma previsão de vitória. Na semana passada, um símbolo desse fracasso foi o míssil disparado pelas milícias que combatem contra os sauditas, abatido sobre o aeroporto de Riad, um feito inédito e humilhante para o reino.

Dias depois da visita de Trump ao reino, MBS coordenou o boicote contra o emirado do Qatar. Os motivos parecem ter sido a política externa distinta do Qatar, que mantém relações relativamente boas com o Irã, com quem divide a terceira maior reserva de gás natural do mundo. Além disso, o emirado procura ter uma imagem externa mais aberta, por meio de iniciativas como a rede de TV Al Jazeera. Constituiu-se em outro fracasso, pois não conseguiu a capitulação do Emir do Qatar e, de quebra, desfez a unidade do Conselho de Cooperação dos Países do Golfo, único organismo supranacional na região. Terminou por perder o apoio entusiástico do próprio governo Trump.

No sábado, dia 04 de novembro, as tensões internas entre os príncipes da família real chegaram a um ponto inédito: MBS, lançou uma ofensiva para concentrar o poder em suas mãos, disfarçada de luta contra a corrupção – o que é um lugar-comum para designar o do país de conjunto. Mais de duzentas pessoas, entre eles onze príncipes da família real, entre ministros e/ou bilionários, foram presos de uma só vez, a mando de uma comissão de luta contra a corrupção criada horas antes, dirigida por…MBS. Entre os presos se encontram o homem mais rico do mundo árabe, Bin Talal Bin Abdulaziz Al Saud, e o irmão de Bin Laden, dono de uma das maiores empresas de construção civil do país.

 A “renúncia” de Hariri, primeiro-ministo do Líbano

Na última semana, a nova iniciativa bombástica liderada por MBS foi a de aparentemente forçar a renúncia do primeiro-ministro do Líbano, o milionário Hariri, quando de uma viagem de emergência a Riad, a convite do rei Salman. Seu crime teria sido o de liderar uma coalizão de governo da qual faz parte importante o Hezbolah, aliado do Irã, o que é intolerável para os sauditas neste momento. A seguir, o chefe do governo libanês permaneceu em Riad, sem se que saiba ao certo sua condição (prisioneiro ou “convidado” do regime) e o governo saudita ordenou que seus cidadãos no Líbano abandonassem imediatamente aquele país. A reação contrária dos EUA e da União Europeia a um conflito em território libanês entre sauditas e iranianos e/ou seus respectivos aliados e a resistência por enquanto unânime de todos os partidos políticos libaneses parecem encaminhar este caso para mais um fracasso diplomático.

É bom destacar que toda essa atividade contra o Irã tem sido apoiada por declarações do governo de Israel, que ameaçou atacar o Hezbolah e tem feito bombardeios semanais a supostos alvos a ele ligados na Síria. A dinastia saudita parece não perceber o imenso impacto negativo de aparecer abertamente como aliado a Israel no mundo árabe. Inclusive um regime muito reacionário como o da Jordânia foi afetado comercialmente pelo bloqueio ao Qatar e precisa atentar para a metade de sua população que é de origem palestina. E qualquer concessão a Israel no terreno do status de Jerusalém afeta a Jordânia, que é quem controla oficialmente os lugares sagrados muçulmanos dessa cidade.

Em resumo, no próximo período, pelo peso dos sauditas e a volatilidade extrema da região, somada à campanha histérica de Israel contra o Irã e as oscilações de Trump, pode-se esperar novidades a qualquer tempo no Oriente Médio.

[1] Entre outros complicadores fundamentais aparece com destaque a luta do povo curdo pelos seus direitos nacionais no Iraque, Síria, Irã e Turquia, em que se localizam a grande maioria de seus quase 30 milhões de membros. O referendo realizado no Curdistão iraquiano governado pelo clã dos Barzani não teve apoio mesmo entre as demais forças curdas na região e foi duramente confrontado pelos 4 governos mencionados, passando por cima de suas disputas. O regime de Bagdá aproveitou para retomar a região de Kirkuk, que os curdos haviam ocupado, após o vazio deixado pela fuga do exército iraquiano com o avanço do EI em Mossul em 2014. Em Kirkuk se localiza quase a metade das reservas de petróleo controladas pela região autônoma curda no Iraque e o governo se valeu de sua superioridade militar para retomá-la, contando para isso com a defecção do partido curdo iraquiano controlado pelo clã Talabani que é rival de Barzani. Por outro lado, os curdos na Síria consolidaram suas posições no enclave de Rojava e procuram garantir o espaço de autonomia que ganharam na negociação do status posterior à guerra civil, o que ainda não está definido, pois Assad não parece disposto a permitir isso e para a Turquia é inaceitável, devido às óbvias conexões com a luta dos 12 milhões de curdos em suas fronteiras.