Pular para o conteúdo
Especiais
array(2) { [0]=> object(WP_Term)#3885 (10) { ["term_id"]=> int(4295) ["name"]=> string(20) "Especial Neofascismo" ["slug"]=> string(20) "especial-neofascismo" ["term_group"]=> int(0) ["term_taxonomy_id"]=> int(4295) ["taxonomy"]=> string(9) "especiais" ["description"]=> string(0) "" ["parent"]=> int(0) ["count"]=> int(69) ["filter"]=> string(3) "raw" } [1]=> object(WP_Term)#3889 (10) { ["term_id"]=> int(4354) ["name"]=> string(27) "Tirem as mãos da Venezuela" ["slug"]=> string(26) "tirem-as-maos-da-venezuela" ["term_group"]=> int(0) ["term_taxonomy_id"]=> int(4354) ["taxonomy"]=> string(9) "especiais" ["description"]=> string(0) "" ["parent"]=> int(0) ["count"]=> int(184) ["filter"]=> string(3) "raw" } }

Os resultados eleitorais na Venezuela: Uma resposta a UST (seção venezuelana da LIT-QI)

 

Por Argimiro Goyo, de Caracas, Venezuela

A Liga Internacional dos Trabalhadores- Quarta Internacional (LIT-QI) publicou um artigo de seu grupo venezuelano, a Unidad Socialista de los Trabajadores (UST), intitulado “Frente aos resultados das eleições de 15 de outubro na Venezuela”.  O artigo assume como próprias as acusações da MUD contra o recente processo eleitoral do qual saiu derrotada, às vezes sem ter sequer o cuidado de verificá-las, terminando por fazer malabarismos para tentar manter-se fora de um ou outro grupo. O artigo indica que os resultados foram inesperados para “militantes honestos e ativistas de oposição” que foram votar contra o Chavismo, obviamente votando a favor da MUD.

Os processos eleitorais refletem um momento de uma realidade que pode, como no caso da Venezuela, cobrir um longo período. Esta última eleição, como os 22 processos eleitorais ocorridos nos últimos 18 anos, é mais um episódio de uma batalha entre o Chavismo e a MUD, mas expressa uma luta de classes subjacente a ela. Dependendo da perspectiva em que sejam colocados na realidade, os resultados podem ser óbvios ou surpreendentes. Embora a UST tente equiparar a MUD ao chavismo enquanto direções burguesas, fica claro no artigo que para isso se baseia na verborragia da MUD para atacar o Chavismo, denunciando a MUD por “não ter sido consequente em derrubar o governo Maduro“.

Um processo revolucionário aberto desde 1989

Para entender a realidade venezuelana, a análise não pode se restringir a um episódio eleitoral ou sequer ao espaço de um semestre dentro de um período revolucionário aberto desde o “Caracazo”. Seria necessário um livro para analisar todo o processo revolucionário, os avanços e recuos da luta de classes e dos setores de classes em todo o período aberto desde o 27 de fevereiro de 1989.

Mas, resumindo, é possível tomar quatro marcos históricos, quatro momentos críticos da luta de classes, que marcam o presente e o futuro do processo venezuelano. Há uma Venezuela antes e outra depois do “Caracazo”. Nem as instituições, nem os partidos e nem o povo são os mesmos que há trinta anos. A Venezuela teve uma virada na sua história, atribuível apenas à intensidade da luta de classes vivenciada durante esses anos.

O primeiro momento é o própio 27 de fevereiro (27F) de 1989, o “Caracazo”, uma insurreição popular espontânea contra o pacote neoliberal anunciado por Carlos Andrés Pérez (AD), um governo que apenas três meses antes havia recebido a votação mais alta de todo o regime puntofijista[1]. A população enfrentou a repressão policial, que não conseguiu contê-la, e arrasou comércios, bancos, empresas, instituições governamentais e tudo o que fosse possível saquear e destruir. Para restaurar o controle, a burguesia encurralada recorreu ao exército, que recebeu ordens de metralhar os bairros para impor um toque de recolher. Mais de três mil mortes mancharam as mãos do último governo da AD. A repressão sangrenta deteve a insurreição, mas não a derrotou. Três semanas depois, eles ainda não conseguiam que os trabalhadores retornassem a seus postos de trabalho, apesar de uma intensa campanha da mídia anunciando absoluta normalidade. Essa rebelião quebrou o regime puntofijista, que ainda viveu uma agonia de nove anos (ver o livro “A insurreição de fevereiro”, publicado pela LIT-QI em 1989).

O segundo momento foi a rebelião militar de 4 de Fevereiro (4F) de 1992. Os analistas simplificam-no como típicos golpes de Estado, históricos no cone sul do continente, ligados a uma alta oficialidade fascista. Mas o 4F não foi uma fratura vertical do alto comando militar, com altos funcionários de ambos os lados, mas uma rebelião liderada pelo médio oficialato contra o governo e o alto comando militar[2]. Não havia generais no comando. Os oficiais de mais alto escalão – Chávez, Arias e Acosta[3] – eram comandantes de tropas, abaixo do nível mais baixo dos altos oficiais. Foi uma fratura horizontal, possível apenas devido ao impacto do “Caracazo” e ao processo aberto posteriormente nas Forças Armadas.

O manifiesto rebelde acusava o puntofijismo de “haver utilizado o exército para assasinar seu própio povo”. O 4F foi, como toda aventura golpista, o ato de um grupo de conspiradores, mas indissociavelmente ligado ao processo aberto desde o “Caracazo”. Após dois dias da tentativa de golpe, as mobilizações populares exigiam a liberdade dos golpistas. Os “marxólogos” universitários identificavam em Chávez um acidente histórico. Enquanto a esquerda seguia sem entender o que havia ocorrido no “Caracazo” – alguns repetiam com o governo que era uma ação de delinquentes – os jovens oficiais do 4F a reivindicaram arriscando a vida para derrubar o governo responsável pelo massacre.

O terceiro momento se dá no terceiro ano de governo de Chávez. De mãos atadas entre a busca pela governabilidade após o pontofijismo e a mobilização popular, Chávez decreta leis que afetam os interesses históricos da burguesia nacional parasita e do império. A lei dos hidrocarbonetos, a lei da terra e a lei dos bancos, tornam-se um ponto de princípio para a burguesia que exige sua revogação imediata. Após três meses de mobilização de amplos setores da classe média contra o governo, a grande burguesia promove no dia 11 de abril, com o apoio total do alto comando militar, um golpe que coloca no governo Carmona Estanga, presidente da FEDECAMARAS, a maior entidade empresarial do país.

Em poucas horas, enquanto começava uma festa dos golpistas no palácio presidencial de Miraflores, que incluía intelectuais da esquerda que explicavam os “erros” do chavismo e a “oportunidade” que se abria para um governo de “unidade nacional”, a mobilização nas ruas contra o golpe já estava se desenvolvendo.

Os moradores dos bairros tomavam as ruas e saíram para enfrentar os efetivos policiais que apoiavam o golpe. Uma paralisação se estende a todo o país e, ao meio-dia da sexta-feira 12, os oficiais médios do exército e suas tropas se juntam, armados, às manifestações de rua, deixando o alto comando sem tropa. A polícia abandona as ruas e grupos de trabalhadores e soldados ocupam os arsenais e distribuem armas entre as pessoas. Na manhã de sábado, dia 13, depois de uma noite de choques intensos, os principais pontos das grandes cidades estão nas mãos de trabalhadores e soldados, e a cidade se prepara para a tomada de Miraflores.

A burguesia tenta negociar um novo governo que inclua o Chavismo, mas a população em armas exige: “Queremos ver Chávez!”. A tomada de Miraflores ocorre sem batalha, uma vez que a burguesia e seus lacaios bateram em retirada. Apenas alguns “desavisados” são surpreendidos no palácio.

Entre a noite do dia 13 e o início da manhã do dia 14, os últimos redutos do golpe são entregues e Chávez é resgatado da prisão para ser restaurado como presidente. “Todos 11 terão seu 13!” foi marcado como slogan na consciência da população de sua vitória sobre o golpe. Se aquela batalha triunfante do povo não passou pelas armas contra a burguesia e seus lacaios, foi porque o próprio Chávez o impediu[4].

O quarto momento ocorre no mesmo ano com a sabotagem do petróleo. O conjunto da burguesia tenta novamente retirar Chávez do governo. Com a intenção de “coordenar ações e evitar a dispersão“, é criada a “Coordenadoria Democrática”, o que hoje é a Mesa de Unidade Democrática (MUD). Em outubro, o alto comando militar se rebela contra a reestruturação do exército e deixa de reconhecer o governo. Sem tropa que os acompanhe, eles não podem dar um golpe militar, mas se instalam na Plaza Altamira, a leste de Caracas, onde se realizam as concentrações dos setores opostos ao chavismo, principalmente a classe média. Nos dias seguintes, centenas de grupos, associações empresariais, associações profissionais, grupos sindicais, associações de bairro e até clubes esportivos, anunciam sua decisão de não reconhecer o governo.

Em 2 de dezembro, os gerentes do petróleo paralisam a indústria petroleira, cortando o estoque de gasolina e gás para a população e bloqueando os portos de petróleo. Em três dias, a paralisação se estende a todo o país. Eles fecham as empresas e o comércio, não há produção ou distribuição de alimentos, a marinha mercante bloqueou os portos impedindo a atracação e descarga de navios. As estradas foram bloqueadas com barricadas, inclusive com caminhões sendo tombados contra as pontes impossibilitando o tráfego. Edifícios públicos e transportes foram atacados por grupos de manifestantes, enquanto a mídia dedicava toda a programação para transmitir “os protestos contra a ditadura“. Com um exército em crise e órgãos de polícia sob intervenção após o golpe, o governo parecia amarrado e mudo. Todo o poder do estado burguês foi lançado contra o governo. Como explicaria um líder da MUD de então: “É questão de horas, senão de dias, para que o governo (de Chávez) renuncie ou as pessoas morrerão de fome dentro de suas casas. Ninguém vai se suicidar por causa de Chávez, apenas um grupo de loucos e marginais que o acompanha[5].

Não havia comida, não havia transporte, não havia trabalho, nem salário, nem dinheiro, porém o povo trabalhador, o das ruas, não se rendeu. A solidariedade entre as pessoas permitiu organizar restaurantes comunitários para comer e quando já não havia gás, se cozinhou com lenha. Sem gasolina, caminhava-se e havia manifestações contra o locaute petroleiro. As rádios comunitárias nascidas depois do golpe de abril se uniram para romper o cerco midiático.

A mobilização popular, a luta de classes e um processo revolucionário vivo desde 1989, que alguns analistas “marxianos” esquecem, rompeu o curso que a burguesia quis imprimir. O que seriam dias, se converteram em semanas de batalhas, que logo chegaram a dois meses.

A mobilização dos trabalhadores passou da propaganda à ação. As zonas industriais foram ocupadas, reabrindo as fábricas, com ou sem patrão. Os centros de transportes tomados permitiram a circulação de caminhões de carga e de transporte público. Os centros de produção petroleiro e distribuição de gás e gasolina foram colocados em funcionamento pelos trabalhadores. Pescadores e marinheiros mobilizaram os barcos que fechavam os portos. Soldados detiveram os oficiais que tentaram colocar os quartéis contra o governo. As rodovias foram reabertas e o país foi aos poucos retomando o funcionamento. Cada dia era uma batalha ganha pelos trabalhadores e pelas classes populares.

Às vezes havia enfrentamentos com grupos de choque da “Coordenação Democrática”, em outras recuavam sem se apresentar para batalha. Na medida que avançava o movimento de massas, a classe média recuava, voltava às suas casas e as mobilizações contra o governo perdiam força. Na última semana de janeiro de 2003, os “pontos vermelhos” (grupos chavistas) se concentram nas portas dos bancos e no 30 de janeiro, a associação bancária, temendo o assalto, abandona o locaute. No 2 de fevereiro, dia 61 da sabotagem petroleira, os meios de comunicação retomaram sua programação tradicional e as praças tomadas pela “Coordenação Democrática” amanheceram vazias. O locaute petroleiro havia sido derrotado. A “Coordenação Democrática” nunca levantou o locaute, simplesmente a burguesia recuou e o povo, sem uma direção clara, deixou-a sobreviver.

A história contemporânea venezuelana, a situação atual, só pode ser entendida como expressão desses quatro momentos da luta de classes, onde a organização, consciente ou inconsciente do povo, derrotou a burguesia e a fez bater em retirada: a insurreição popular do “Caracazo” (27F), a rebelião militar do 4F, a derrota do golpe fascista do 13 de abril e a derrota do locaute petroleiro, formam parte integral da consciência revolucionária do povo venezuelano e do profundo ódio da burguesia.

Não se trata de sucessos midiáticos. Na verdade, enquanto a imprensa burguesa os oculta, o povo venezuelano os celebra todo os anos. São expressões vivas da luta de classes no marco de uma dinâmica revolucionária. Nenhum revolucionário, nenhuma organização realmente revolucionária pode evadir-se disto ao realizar uma análise sobre a Venezuela.

Para os analistas reacionários, a realidade venezuelana se reduz a uma somatória de processos eleitorais com resultados surpreendentes (ou fraudulentos) e decisões governamentais erráticas, atípicas ou ditatoriais. Uma esquerda internacional domesticada ao neoliberalismo e outra nacional que odeia o chavismo – com justificadas razões muitas vezes – faz coro como comparsa da burguesia, desprezando a realidade subjacente no movimento de massas e esquecendo a história destes últimos anos gravada na consciência do povo venezuelano.

É impossível entender a Venezuela passando por cima dessa história. A campanha midiática conseguiu internalizar na consciência de um importante setor da classe média a expressão “antes éramos felizes e não sabíamos”, quando pessoas menores de 40 anos acreditam que antes do “Caracazo” – que não viveram – havia um país próspero que deve ser recuperado. Com isso tentam destruir o importante legado histórico que construiu a mobilização popular. Como se pode ser revolucionário na Venezuela e não reivindicar o “Caracazo”, a derrota do golpe do 13 de abril ou a derrota do locaute petroleiro e, ao contrário, por essas coisas do destino terminar ao lado, e/ou defendendo, os que ordenaram o massacre sobre o povo caraquenho em 1989, aos que propiciaram o golpe de abril e orquestraram o locaute petroleiro?

Sem entender a luta ocorrida na Venezuela expressa nesses quatro momentos, não se explica o chavismo, nem a MUD, não se entende por que há um presidente de origem operária e uma oposição dirigida diretamente pelos filhos da burguesia. Não se pode explicar a profusão de processos eleitorais – 23 em 18 anos, 19 depois da derrota do locaute petroleiro – e ainda menos seus resultados. Não se entende um povo onde milhões de pessoas falam do socialismo como parte de seu cotidiano – a favor ou contra. Tampouco se pode entender como, no meio da pior crise econômica, existem programas sociais que, entre outras coisas, garantam pensão de um salário mínimo para todos com mais de 60 anos, mais de três milhões de pessoas – tenham contribuído ou não com a previdência social -, que tenha sido entregues 1,8 milhões de casas gratuitas, que se distribuam mais de quatro milhões de cestas de alimentos através dos Comitês Locais de Alimentação e Produção (CLAP).

Sem a rebelião de 4 de fevereiro e a derrota do golpe fascista em abril de 2002, não é possível entender as características do exército venezuelano, nem a existência de uma milícia com quase 200 mil voluntários, com cerca de 60% de trabalhadores. Sem conhecer a derrota do locaute petroleiro não se entende por que há mais de duas mil empresas e 2,5 milhões de hectares de terras expropriadas, o porquê da presença do Estado em determinadas áreas de produção e de serviços públicos, ou ainda, enfim, por que, apesar da grande queda dos recursos petroleiros (cerca de 735%) se pode encher um tanque de gasolina com o preço de um ovo e um botijão de gás custa menos que um quilo de carne. Afirmar que é apenas a ação de um governo populista é simplismo político e não dar a devida importância à luta de classes, às lutas do povo.

Desprezando o nível alcançado pela luta de classes na Venezuela, em particular depois da derrota do locaute petroleiro, não se entende porque em janeiro de 2005, Chávez se declara socialista e, pela primeira vez, questiona “engodos capitalistas” na Constituição de 1999. Não havia “movimento socialista internacional” pressionando-o para isso. Toda a esquerda latino-americana havia abandonado o discurso socialista, inclusive a esquerda venezuelana chavista considerava-o inconveniente. Não havia um bloco de países socialistas onde fosse obrigado a buscar refúgio da pressão do império, como ocorreu no passado com governos de direita. Por que, no momento em que ninguém era socialista e os que o haviam sido evitavam lembrar-se, Chávez assume o socialismo como proposta? Só a luta de classes, a mobilização popular na Venezuela explica tal declaração, que trouxe novamente a ideia do socialismo ao discurso de muitos revolucionários na América Latina.

Outra coisa é a discussão sobre se o chavismo foi a direção ideal do processo revolucionário, se sua condução foi errada e se ele pode dirigir o país em direção à construção do socialismo. Inclusive a discussão de se é uma direção revolucionária, pequeno burguesa ou burguesa, como diz a LIT-QI. O que estamos falando é de que lado está cada um dentro do processo revolucionário aberto desde 1989. Uma coisa é o papel da direção, revolucionária ou não, e outra o do movimento de massas.

As revoluções não são uma estrada limpa que passa no meio de um gramado verde, bonito e aparado. Ela é mais bem representada por uma estrada sinuosa, mal pavimentada, às vezes à beira de precipícios, outras vezes debaixo d’água. As revoluções são um caos que reflete as forças telúricas da luta de classes e dos grupos que compõem as classes em luta. É um ser vivo que expressa erros, confusões, acertos, avanços e recuos. Porém, toda revolução traça uma linha bastante clara que define qual é o campo revolucionário e qual é o da contrarrevolução. Lamentavelmente, há muitos que se conformam com um discurso socialista caseiro, muito crítico, porém colocando-se do outro lado.

A luta política na Venezuela, deixa muito pouco espaço, polariza a política pressionando em direção ao chavismo ou em direção à MUD, porém isso não são desculpas para um revolucionário. Por mais necessário que seja atacar a direção equivocada de um processo revolucionário, não se pode estar do lado do inimigo e, muito menos, converter-se em seu porta-voz. Em Venezuela, aconteceu isso com a UST e a LIT-QI.

Faz pouco tempo se celebraram 100 anos da revolução bolchevique. Em muitos pontos do país comemorou-se o Outubro de 1917. Muito poucos se lembram da korniloviada neste ano de 1917. Quando os bolcheviques sofriam a perseguição do governo de Kerensky que havia surgido da revolução de fevereiro, o general Kornilov preparava um golpe fascista para esmagar não somente o governo de Kerensky, mas a revolução russa. Lenin e Trotsky, corretamente, com todas as diferenças com o governo kerenkista, assumiram sua defesa, derrotaram a korniloviada e ganharam a direção do movimento de massas que tornou possível a revolução de Outubro.

Se os bolcheviques houvessem questionado o governo de Kerensky, repetindo os argumentos de Kornilov, e se houvessem esperado para ver como triunfaria a korniloviada, nunca teria acontecido a revolução de Outubro. Esta última é a forma como atua a UST e a LIT-QI com a MUD e o governo chavista na Venezuela.

O que é a MUD

A MUD se apresenta como uma frente de partidos políticos opositores ao chavismo. Alguns analistas agregam que ela é uma “frente da direita”, e alguns mais atrevidos indicam “que ela representa os interesses da burguesia venezuelana e do imperialismo”. Porém a MUD não é uma frente comum de partidos políticos.

A MUD nasceu como “Coordenadora Democrática” no ano de 2002 – logo após a derrota do golpe de abril – como um órgão de coordenação e ação da frente burguesa, não somente dos partidos políticos, para tentar um novo assalto ao governo durante a sabotagem petroleira. A derrota da sabotagem petroleira, o triunfo de Chaves no referendo revogatório e o fracasso da política de se abster nas eleições parlamentares de 2005 – apostava numa campanha internacional de ilegitimidade (que não ocorreu) obrigaria o governo a repeti-las -, acabou por decretar o término da Coordenadora Democrática e recolocar a “frente antichavista”.

No ano de 2006, ano de eleição presidencial (dezembro), aumentaram as expropriações de terras e de fábricas. O campo adquire características violentas quando os camponeses enfrentaram os grupos armados de pistoleiros. Mais de trezentos morreram na luta pela terra. As expropriações de fábricas na cidade obedeceram a conflitos de trabalhadores onde os empresários responderam com o fechamento: “Empresa fechada, empresa ocupada” foi a palavra de ordem do movimento dos trabalhadores. Chaves anunciou o fim da concessão do canal de televisão RCTV, propriedade de um dos principais e tradicionais grupos econômicos do país.

Para a burguesia venezuelana, e em geral para toda a burguesia do continente, tratou-se de um problema de classe. A intensa campanha pela “Defesa da RCTV”, acompanhada por atos políticos e civis culminou com as primeiras guarimbas[6] e a criação da Mesa da Unidade Democrática, MUD, convocada pela própria burguesia, superando as “falhas de funcionamento da Coordenadora Democrática”. Desde o princípio não se tratou de uma frente eleitoral, mas de um organismo da burguesia para a ação política contra o governo. Com exceção de casos muito individuais, na MUD está representada a burguesia como classe e toda sua superestrutura.

A MUD tem uma estrutura executiva que inclui um presidente e vários vice-presidentes – quase nunca proveniente dos partidos políticos – e equipes de trabalho profissionais em diversas áreas. A frente de partidos políticos é apenas uma das áreas de trabalho, ainda que seja a que mais reflete a combatividade, a mais pública e a mais protagonista na mídia. Porém, a MUD é integrada por organizações patronais, os restos da burocracia sindical (CTV), as ONGs financiadas pela NED e a USAID que praticamente são as porta-vozes diretas do Departamento de Estado Norte Americano, a alta hierarquia da Igreja (núncio apostólico, arcebispo) os diretores e donos dos meios de comunicação (inclusive representantes do capital mexicano e de Miami), grupos lobistas financeiros venezuelanos de Miami vinculados ao FMI, ao Banco Mundial e empresas que calculam o risco país, as corporações, a associação bancária (incluindo representantes do capital espanhol) e “representantes da sociedade civil” que incluem os grupos de choque, alguns com treinamento paramilitar na Colômbia, Panamá e México. É um aparato político onde se dirimem as disputas internas da burguesia e se coordena a ação nacional e internacional contra o governo[7].

Independentemente dos discursos eleitoreiros demagógicos de alguns dirigentes, a MUD tem um programa público que não se limita a derrubar o governo chavista. Contém um plano de medidas “para a recuperação do país”, que contempla a desregulamentação das relações trabalhistas, a restituição das garantias econômicas dos bancos e do setor imobiliário, a separação do estado da atividade econômica produtiva, a devolução das terras e empresas expropriadas a seus legítimos donos, a privatização dos serviços públicos e da atividade petroleira, a redução dos gastos públicos, a privatização da educação e da saúde, etc.

Se a MUD pode se manter como órgão disciplinado da burguesia, apesar das crises internas, é porque está unida por um profundo terror à mobilização revolucionária do povo, pois já sentiu por três vezes perto da sua jugular, e teme o povo mais do que ao chavismo. Se a burguesia conseguisse se convencer que o chavismo pudesse servir de freio ao movimento popular isso seria uma outra situação, porém até o dia de hoje tem a convicção que, ao contrário, o movimento de massas poderá passar por cima do chavismo e acabar com ela.

Não é que a MUD não queira derrubar Maduro.  Ela deseja isso intensamente, como o desejou com Chávez. Se fez isso com mais força contra um ou contra outro, tem mais a ver com oportunidades e cálculos. Ainda que Maduro e Chávez demonstraram grande habilidade política para se esquivarem das dificuldades, foi a mobilização do povo que realmente derrotou a ação da burguesia. São as profundas forças da revolução que ainda permanecem desde 1989 apesar dos erros do chavismo.

O chavismo se equivoca quando diz que coexistem uma oposição democrática e outra terrorista na MUD. A burguesia venezuelana, apêndice do imperialismo norte-americano, coordena suas ações para a derrota da revolução venezuelana: sabotagem econômica, ataques à moeda nacional, bloqueio internacional político e econômico, campanha midiática, ações violentas dos guarimbeiros, ameaça militar externa e participação eleitoral. Não há nenhuma tática privilegiada, apenas oportunidades. Os porta-vozes da MUD podem se identificar com alguns tipos de ações mais que outras, porém a burguesia em seu conjunto usou todo o arsenal que lhe foi possível. Claro que há diferenças, porém, as divergências internas refletem as relações de forças dos distintos grupos da burguesia.

A derrota da guarimba e das eleições regionais, a tendência da mobilização popular e o que fazer nos próximos meses para impedir o fortalecimento do governo são as razões das divergências internas [da MUD], que se refletem nos meios nacionais e internacionais de comunicação. O maior medo é o movimento popular que viveu um refluxo temporário pelos efeitos da difícil situação econômica. A burguesia teme isso diariamente e, por isso, o seu ódio ao chavismo que não lhe dá garantias de que a mobilização do povo não impulsione o governo chavista e coloque a burguesia contra a parede como aconteceu na derrota da sabotagem petroleira de 2003.

 

Do lado da revolução ou do outro lado da rua?

Uma intelectualidade pequeno-burguesa (de esquerda ou de direita) que tem audiência na academia universitária, cafeterias ou bares, se incomoda com a polarização imposta pela realidade venezuelana e que sejam identificados com um ou outro grupo. Proclamam “independência”, “autonomia”, etc., quando o que querem realmente é a independência em relação ao movimento de massas. Reclamam do maniqueísmo e da polarização, mas terminam orbitando em torno da política de uma ou outra parte. Tentam criar um espaço “nem nem” (nem de um lado e nem do outro), mas sem uma base social para tal. É a crise existencial do centrismo.

Essa crise não é vivida pelos os que, a partir da direita, criticam que a MUD se “presta ao jogo eleitoral” e chamam abertamente à intervenção estrangeira. Tampouco vivem essa crise, os que desde o campo revolucionário criticam a inconsequência, o burocratismo, a corrupção e a direção errática do chavismo.

Em cada crise da direita surgem grupos centristas que duram pouco tempo. Mas outros, supostamente socialistas, pequeno-burgueses que se incomodam com a “marginalia chavista” ou antigos ativistas que por diversas razões – muitas delas válidas – se enfrentaram com o chavismo, terminam oscilando para um centrismo, e nos momentos de crise terminam ao lado do inimigo, ou como meros observadores da revolução.

Durante o golpe de 2002, no locaute petroleiro e agora, no meio da guerra das “guarimbas”, alheios ao movimento de massas, sentiram-se pressionados pela campanha midiática e acreditaram realmente que seria o fim do chavismo. Não ficaram do lado da MUD já que seu centrismo não o permite, mas se colocam nas arquibancadas do estádio para ver a inevitável “queda do chavismo, produto dos seus erros”. Alguns, mais ousados, se proclamaram a si mesmos os “verdadeiros chavistas” – às vezes sem nenhuma razão que avalize tal denominação – esperando, como aves de rapina, desfrutar o cadáver do vencido.

Não perceberam o que os sintomas indicavam e que o vento soprava em outra direção, sendo surpreendidos pelos acontecimentos. Incapazes de um discurso próprio, os que entenderam ser uma “rebelião popular” a ofensiva “guarimbeira” da MUD, não compreenderam igualmente os resultados eleitorais e terminaram como bonecos de “ventríloquos”, repetindo sem nenhum pudor o discurso da direita, às vezes com mais convicção e dureza que a própria MUD. Epítetos de “fraude”, “processo fraudulento”, “ditadura”, “governo ilegítimo”, substituem os conceitos políticos, para fazer coro com a direita, sem fazer nenhuma análise séria de suas afirmações. Assim é o artigo assinado pela UST publicado pela LIT-QI. Não se trata de que tenham diferenças com o chavismo. Seria compreensível. Se trata de que estão do lado da MUD, olhando da calçada o confronto do processo revolucionário aberto desde 1989.

O resultado visível das eleições de 15 de outubro foi a polarização entre o Polo Patriótico[8] e a MUD. Ambos juntos somaram cerca de 96% de votos, e em alguns dos Estados, alcançaram 99%[9]. Em nenhum Estado da federação, outro candidato ou grupo, alcançou uma votação superior a 1%. O tão propalado crescimento de um provável centro político, supostas correntes da dissidência chavista, não ocorreram. O suposto crescimento da abstenção associada à suposta queda do chavismo também foi um fiasco. A participação (61%) foi a mais alta em trinta anos de eleições regionais (escolha de governador e prefeitos).

O moderno e automatizado sistema de votação venezuelano permite inclusive a análise geográfica e social do comportamento eleitoral. A abstenção subiu de maneira significativa apenas nos setores de classe média de Caracas (Miranda), Maracay (Aragua), Valência (Carabobo) y Barquisimeto (Lara), precisamente em todas as áreas onde ocorreram as “guarimba” do início do ano e onde ganhou o chavismo. Nos bairros operários e populares somente subiu a abstenção em Táchira, Zulia e Anzoátegui, três estados em que ganhou a MUD.

Os resultados já eram previsíveis antes de as eleições, apesar da subida dos preços dos produtos alimentícios – mais de 50% em alguns casos – na mesma semana das eleições gerando descontentamento que se chegou a pensar que favoreceria a abstenção. Uma prova da previsibilidade dos resultados é que de quase 2 mil jornalistas de agências internacionais que estavam na Venezuela cobrindo as notícias das guarimbas, cerca de 80% abandonou o país nas semanas antes das eleições. Algumas agências de notícias, que inclusive realizaram reportagens com imagens e notícias diárias das guarimbas, em especial as espanholas, deixaram de publicar notícias sobre a Venezuela desde o princípio de outubro.

Em todos os processos eleitorais desde 2004, fosse qual fosse a perspectiva eleitoral, a cartilha da MUD, concebida para a imprensa internacional, nunca variou. Até o dia da votação, pesquisas e os meios de comunicação, se dedicavam a vaticinar as inevitáveis derrotas do chavismo[10]. Desde a noite anterior das eleições, conclamavam o povo a não terem medo e a sair a votar contra o chavismo, que o governo desejava a abstenção, etc., etc., papel que corresponde ao catecismo dos meios de comunicação[11].

Durante o processo de votação, a grande mídia coleta denúncias de pressões e manipulações do chavismo “que já saberia que seria derrotado”. Imediatamente depois do fechamento das urnas, já dizem que os resultados garantem uma esmagadora vitória da oposição. No momento do anúncio dos resultados pelo Conselho Nacional Eleitoral, ocorre uma entrevista coletiva denunciando a fraude, anunciando que nas próximas horas irão apresentar as provas irrefutáveis da fraude, mas isso nunca ocorre.

Quando se esgota o tema da fraude e não aparece nenhuma prova, passam à quarta fase: o processo é fraudulento e denunciam as supostas manipulações e mecanismos antidemocráticos do processo eleitoral e, para tal, há sempre o mesmo repertorio previsto. A quinta fase corresponde ao não reconhecimento dos organismos e governos que passam a desconhecer, baseados nas “inúmeras denúncias”, as autoridades surgidas de “um processo eleitoral fraudulento”. Os venezuelanos, inclusive os seguidores da MUD, estão acostumados à cartilha, mas sempre há os desprevenidos como a UST que terminam sendo os tolos úteis da conhecida cartilha.

As denúncias da MUD e da UST

A MUD passou para a quinta fase de sua cartilha. O artigo da UST ainda se localiza na fase anterior. A fase da denúncia de fraude se esgotou muito rapidamente porque a crise interna da MUD começou a gerar polêmicas públicas. A respeito, um dos porta-vozes públicos da MUD, Ochoa Antich, presente na coletiva de imprensa da denúncia de fraude, publicou nas redes sociais, dois dias depois: “Não houve fraude, ainda que o processo seja fraudulento. Já não podemos falar de fraude porque não pode ocorrer um processo eleitoral auditado 14 vezes, nem que nossos técnicos fossem imbecis. Manter a denúncia de fraude nos compromete a demonstrá-la e existe plena consistência entre os resultados publicados e as atas que temos em nosso poder“.

A denúncia de processo fraudulento é apontada para assinalar que as pessoas não puderam expressar sua vontade por mecanismos antidemocráticos, vantagens indevidas e manipulações do regime ditatorial. Já não dizem mais que a votação foi alterada, mas poucos entendem a diferença semântica entre fraude e processo fraudulento. Há anos, o chavismo tem uma política de não responder. Em geral, o CNE ordena uma auditoria geral do processo como única resposta. Mas, já que a UST assumiu como suas as acusações da MUD, é necessário responder:

  • Partidos políticos foram ilegalizados antes das eleições. Falso. As normas eleitorais vigentes desde 1960 estabelecem que um partido regional ou nacional legal deve obter um mínimo de votação de 2%. Se não o conseguir, deve solicitar novamente sua legalização. Vários partidos ficaram de fora da legalidade nas eleições parlamentares de dezembro de 2015. Isso afetou os partidos do Polo Patriótico (salvo o PSUV), incluindo o PPT e o PCV[12], vários da MUD e muitos pequenos grupos regionais. A maioria conseguiu cumprir as exigências no ano passado, mas alguns da MUD não. A situação desses partidos da MUD é o que reclama a UST.
  • A MUD foi ilegalizada em sete estados. A MUD não é um partido, mas uma frente de partidos e, da mesma forma que o Polo Patriótico, não tem personalidade jurídica própria, mas “se apropria” da dos partidos que a constituem. Em 2016, decidiram legalizar a MUD para convertê-la no organismo impulsionador da solicitação de um referendo revogatório e organizaram uma coleta de assinaturas em nível nacional[13], mas houve denúncias de falsificação de assinaturas ou da utilização de pessoas falecidas. Pessoas afetadas ou familiares de falecidos apresentaram denúncias nos tribunais que anularam a legalização em sete estados. Isso ocorreu em outubro de 2016. Afetou a legalidade da MUD, não a dos partidos que a integram, não teve relação com essas eleições como diz a LIT-QI. Posteriormente, a MUD abandonou o processo de referendo revogatório seguindo instruções do governo dos EUA e deixou de lado o tema da legalização até agora.
  • As eleições regionais deveriam ter sido realizadas em 2016. E também é correto que o chavismo não tinha certeza naquele momento sobre os resultados, mas não foram suspensas unilateralmente pelo chavismo, como deixa entrever a denúncia. Em junho de 2016, a MUD estava centrada no referendo revogatório e o possível cronograma se sobrepunha ao das eleições para governador fixadas para dezembro. Na mesa de negociações[14], a MUD solicitou a suspensão das eleições para governador e o chavismo aceitou com muito prazer. Em seu balanço, Ochoa Antich assinalou para a MUD: “… se tivéssemos solicitado as eleições regionais em dezembro e tivéssemos escolhido os candidatos a tempo, os resultados teriam sido outros…”. Foi um erro de cálculo da MUD, que foi aproveitada pelo chavismo, mas não ilegal como diz a UST.
  • Prenderam e inabilitaram prefeitos que poderiam ter sido candidatos a governadores. É certo que alguns prefeitos foram processados por darem apoio logístico a partir da prefeitura à guarimba em seu município e não dar proteção aos habitantes. Mesmo que estejam ou tenham sido detidos, nenhum está inabilitado. Por não cumprir as normas de prestação de contas à Controladoria, existem governadores, prefeitos e outros funcionários detidos e/ou inabilitados. O caso mais famoso é o do prefeito de Caroní, na Guiana, chavista e candidato certo a governador pelo PSUV, onde certamente a votação será mais apertada. A regra foi aplicada por igual a chavistas e opositores, ainda que os últimos casos foram no ano passado e não às vésperas das eleições. Como a UST não menciona o caso de Caroní, supõe-se então que reclama dos casos que atingiram a MUD.
  • A convocatória para as eleições foi imprevista. No Primeiro de Maio, na manifestação dos trabalhadores, Maduro convocou as eleições da ANC. Anunciou que, instalada a ANC, solicitaria a fixação imediata da data para as eleições de governadores. Um mês antes, haviam iniciado a guarimba e o objetivo era a saída de Maduro. Poucos analistas acreditavam que Maduro chegaria a julho, que a ANC seria eleita e que seriam convocadas eleições para prefeitos. O imprevisto não foi a convocatória, porque foi feita desde maio, senão que ela foi cumprida. A UST passa por alto disso.
  • Foi proibida a substituição de candidatos. Falso e foi tema mais agitado pela MUD. Revisando os diários oficiais eleitorais deste processo, encontram-se 179 substituições, inclusive em partidos da MUD. O que é correto é que o processo eleitoral foi convocado pela ANC em 75 dias (15 de outubro) e como a norma eleitoral indica que as substituições devem ser feitas 60 dias antes das eleições, o prazo terminou quase ao começo do processo.

Mas o problema real vai mais além. Instalada a ANC, que significou a derrota da guarimba, explodiu a crise da MUD. Nos três dias seguintes à convocatória de eleições, enquanto alguns a rechaçavam, 214 candidatos de partidos da MUD se inscreviam, inclusive fogosos incendiários guarimbeiros como Guanipa, candidato de Primero Justicia, em Zulia. Quando foi encerrado o processo de substituições, a MUD nem sequer havia decidido que participaria, já que o Departamento de Estado dos EUA não tinha aprovado isso e vários rechaçaram participar das eleições convocadas pela ANC, entre eles Vente Venezuela e Voluntad Popular, que, junto com Primero Justicia e Acción Democrática, são os quatro principais partidos da MUD.

Apenas em 17 de setembro, a 28 dias das eleições, os partidos da MUD convocaram primárias para decidir os candidatos e em alguns estados tardaram uma semana mais, devido a choques internos. A MUD aspirava a uma prorrogação que foi negada pelo CNE, mas nem sequer a MUD indicou que isso tenha afetado os resultados. Realmente, mais do que manipulação do chavismo, foram as contradições da MUD, mas somente ela foi afetada, e é disso que reclama a UST.

  • Foram modificados os centros eleitorais. Uma conquista do processo atual é a distribuição geográfica equitativa dos centros de votação. Antes de 2004, as pessoas eram localizadas em qualquer centro. Os habitantes dos bairros deviam transladar-se a centros muito longínquos, onde se formavam grandes filas, pois tinham até vinte mil votantes. Em doze anos, multiplicaram-se os centros de votação, fazendo com que as pessoas votassem mais perto de sua residência e cada mesa tivesse poucos votantes – de 300 a 400 – o que agiliza o centro de votação e a contagem.

Durante a guarimba, para impedir a eleição da ANC, cerca de duzentos centros foram atacados e destruídos. Em outros centros localizados em edificações ou colégios privados a instalação foi sabotada. Esses centros foram mudados e levados para bairros em que a comunidade garantia o seu funcionamento. Outros foram eliminados e as pessoas a eles designadas foram distribuídas para outros centros. Isso ocorreu em julho e desde então as modificações e mudanças foram publicadas. Além disso, mediante uma mensagem telefônica de texto, todo venezuelano/a recebe a localização de seu centro eleitoral. Se alguns votantes se inteiraram no próprio dia não foi por não terem sido avisados, mas porque acreditavam que os centros voltariam ao lugar original.

Algumas pessoas de classe média ficaram incomodadas com ter que entrar em um bairro pobre para votar e é verdade que em alguns bairros grupos de jovens zombavam deles e gritavam contra os desconhecidos. Alguns meios de comunicação disseram que alguns votantes tinham sido assaltados e os mais escandalosos informaram que grupos de “coletivos”[15] armados atacavam as pessoas. Não é verdade que tenham sido afetados mais de 700 mil votantes. Não chegaram a 300 mil sobre 18 milhões – menos de 2%. Onde houve mais centros atingidos foi em Táchira, estado em que a MUD ganhou. Ao revisar-se os centros eleitorais mudados, a sua abstenção foi equivalente à de outros centros que não foram mudados, de forma que não afetaram o resultado em nenhum caso.

A respeito disso, um colunista assinalava: “se oito milhões de pessoas passaram por cima de barricadas, atravessaram quebradas, dormiram fora de suas casas para votar nas eleições para a ANC e fizeram filas em meio ao ruído de tiroteios, como vamos dizer que perdemos porque alguns poucos milhares não foram votar por medo que o centro estivesse em um bairro…”.  Por outro lado, nenhum centro de votação dos bairros operários e populares foi atingido, assim que é estranho que a UST se desespere por isso.

  • Uso abusivo dos recursos do Estado pelo chavismo. Muito correto. O chavismo usa recursos, veículos e logística dos organismos públicos para apoiar a campanha do Polo Patriótico em todas as eleições. Também se apoia nos recursos, na infraestrutura e na capacidade de mobilização das organizações sindicais, Conselhos Comunais, organizações estudantis e sociais, e na rede de emissoras comunitárias. Desde 2004, em cada bairro popular, quando há eleições, toca uma Diana[16] a partir das cinco da manhã para que as pessoas se levantem cedo para votar.

A MUD utiliza os recursos, veículos e a logística dos governos estaduais e prefeituras em seu poder. Apoia-se no financiamento estrangeiro e da empresa privada. Usa a infraestrutura da Igreja e os meios de comunicação se alinham para a campanha. No México, em Bogotá e em Madrid existem centros dedicados a bombardear as redes sociais, os telefones e computadores com propaganda eleitoral. Nestas últimas eleições, a CAVIDEA – Câmara Venezuelana de Indústrias de Alimentos – indicou aos distribuidores que aumentassem os preços dos alimentos em pelo menos 40%.

É verdade que, nas eleições venezuelanas, ainda que existam limites legais, ninguém os respeita. É uma briga de foice. A UST se preocupa com o que faça o chavismo, não com o que faça a MUD, que afete o caráter supostamente “imaculado” do jogo democrático eleitoral.

  • Amedrontamento dos fiscais. Esta é uma denúncia reiterada que se baseia em informações nunca demonstradas. São mais de quatorze mil mesas de votação e é certo que alguns fiscais da MUD têm que estar em centros de bairros onde mais de 90% da votação é chavista, e as eleições são uma festa que envolve o bairro, onde se ridicularizam os opositores, mas não se registrou nenhum incidente sério. Pode-se verificar que a MUD recebeu a cópia das atas na totalidade das mesas, o que indica a presença do/a fiscal.

Como se indicou anteriormente, essas denúncias formam parte da fase de denúncia de processo fraudulento. Há outras que são agregadas pela UST e que formam parte da fase de ilegitimidade do processo que serão vistas adiante.  Mas para desmontar a fraude ou o processo fraudulento, seria chave responder a esta pergunta: Como é possível, em um país onde existe um altíssimo rechaço ao governo e que apenas semanas atrás estava encurralado por uma “rebelião popular”, que seja realizada uma fraude e que não haja sequer uma só manifestação de protesto?

A revolução volta a derrotar a MUD

Depois de todo processo eleitoral surgem especialistas, numerólogos, estatísticos e até astrólogos, que tentam com manipulações matemáticas explicar porque não ganhou quem devia ganhar e porque ganhou quem realmente não ganhou. Nos meios de comunicação têm aparecido especialistas da MUD com esses “tecnicismos eleitorais” a que o artigo da UST recorre.

Sobre a participação eleitoral, já se mencionou que a mesma foi de 61%, a mais alta em 30 anos de eleições regionais[17], jogando por terra as previsões dos especialistas. A direita, pela boca do arcebispo, disse que o governo promovia a abstenção para evitar sua derrota. Mas não foi assim, já que a participação subiu e, além disso, o chavismo ganhou.

Para explicar tal contrassenso, comparam o resultado com as eleições parlamentares de 2015, apesar de serem processos distintos e com características distintas, onde a abstenção sempre é mais baixa que as eleições regionais e mais alta que as presidenciais.

Nestas eleições regionais, o chavismo conseguiu 5,8 milhões de votos e a MUD 4,9 milhões, com uma abstenção de 39%. Nas últimas eleições parlamentares realizadas em dezembro de 2015, o chavismo obteve 5,6 milhões de votos e a MUD 7,7 milhões, com uma abstenção de 26%. Efetivamente a participação caiu 13 pontos percentuais como indica a MUD, mas vejamos em relação às eleições regionais e parlamentares anteriores.

Nas últimas eleições para prefeito realizadas em dezembro de 2013, o chavismo obteve 5,2 milhões de votos e a MUD 4,3 milhões, com 42% de abstenção. Antes, em dezembro de 2012, houve eleições para governadores, sendo que o chavismo obteve 4,9 milhões de votos e a MUD 3.9 milhões, com 46% de abstenção. Nas eleições parlamentares de dezembro de 2010, o chavismo obteve 5,4 milhões de votos e a MUD 5,3 milhões, com 41% de abstenção. Lançados num gráfico, pode-se perceber que a votação de dezembro de 2015 não foi uma tendência, mas um pico excepcional. A constante tem sido uma votação do chavismo entre cinco e seis milhões de votos, a MUD atrás, e uma abstenção entre 39% e 46%. Em dezembro de 2015, a abstenção caiu 26% e a MUD alcançou uma votação de 7,7 milhões. Da mesma forma que o chavismo evita referir-se aos resultados dessa eleição, a MUD só se refere a eles tentando converter esse momento numa tendência.

Como não se trata de números senão de realidade política, faz-se necessário analisar o porquê desses resultados. No ano de 2014, houve uma investida forte da guarimba que teve como objetivo atacar os centros de distribuição de alimentos – ainda não existiam os CLAP. Combinado com o recrudescimento do ataque à moeda pelo dolartoday[18], o desabastecimento levou ao esvaziamento das prateleiras. O controle de preços por parte do governo se converteu numa ferramenta inútil, já que toda vez que os produtos desapareciam dos circuitos regulares de distribuição tinha-se que buscá-los no mercado negro. A venda de produtos pelos canais públicos gerava enormes filas, muitas vezes de revendedores que levavam o produto ao mercado negro. Quase todas as políticas do governo para enfrentar a crise eram erráticas e espasmódicas.

A campanha midiática da MUD se centrou em fazer com que as pessoas acreditassem que derrotando o chavismo apareceria a comida.  Com isso a preocupação pelo desabastecimento começou a superar a dos preços. “Será a última fila” dizia a campanha televisiva referindo-se a que a fila para votar na oposição nos centros de votação acabaria com as filas por comida.

As pessoas responsabilizavam o governo, mas também sabiam que os responsáveis são os patrões e os comerciantes que estão ao lado da MUD e não do governo. É muito difícil um trabalhador não se dar conta que o patrão que o explora no trabalho e o comerciante que o rouba nos preços são os que falam mal do governo e fazem propaganda a favor da MUD. Ainda que seja por instinto de classe ele sabe onde está o inimigo. Entretanto, naquela ocasião, um vasto setor da população que normalmente não participa nos processos eleitorais e que são a retaguarda da atividade política foi votar na MUD. Uma estranha lógica o levou a pensar que se votasse nos que escondiam a comida, esta apareceria e que o governo não tinha como acabar com o desabastecimento.

Neste momento passou-se a dizer que o chavismo havia perdido votos para a MUD. Entretanto, análises posteriores demonstraram que ainda que isso tenha ocorrido, não foi significativo. Embora o chavismo tenha alimentado a abstenção em alguns lugares, a votação da MUD veio muito mais da tradicional abstenção.

Nesse momento apareceram aqueles que baseados somente nestes resultados eleitorais, viram neles o fim do chavismo e logo correram para mudar de arquibancada querendo ficar do lado do time vencedor. Mas os analistas da MUD, sobretudo as ONGs financiadas e vinculadas ao império, sabiam que se tratava de um momento e não necessariamente de uma tendência. Se o império acreditasse na teoria de que seria uma tendência eleitoral teria pressionado para que se manifestasse eleitoralmente. Entretanto, apostando em aproveitar uma oportunidade que poderia não se repetir, passou a deslocar todas as forças no choque direto com o governo chavista. Não só não se acabou com a guerra econômica, senão que ela recrudesceu agregando-se situações como a desaparição do dinheiro[19]. O ataque econômico se intensificou a tal nível que colocou em risco até mesmo a sobrevivência de muitos grupos econômicos que a apoiavam. O papel da OEA e dos governos da região para alimentar a crise passou a ser descarado.

O parlamento nas mãos da MUD aprovou leis com a intenção de desmantelar os programas sociais do governo[20], ainda que soubesse que seu funcionamento estava questionado pela designação ilegal de deputados para obter a maioria de dois terços[21].  A três meses das eleições, a MUD debatia se a via para a saída de Maduro era eleitoral, através de sua inabilitação pela Assembleia Nacional (referendo revogatório), ou pela exigência de sua renuncia (guarimba). Depois de três meses de discussão acordaram aplicar todas as vias simultaneamente. O próprio presidente do parlamento, Ramos Allup, deu o prazo de 6 meses para que o governo se retirasse de Miraflores.

Fracassado o referendo e também a decisão de “destituição política” do governo aprovada pela Assembleia Nacional sem que a mesma estivesse normatizada na Constituição, lançaram-se à guarimba. Mas já nesse momento, salvo idiotas desprevenidos, a MUD sabia que não contava com a votação de 2015. Por isso, evitou participar das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. O domínio da ANC teria proporcionado à MUD a destituição imediata do presidente e convocação de eleições nacionais. Com um proclamado apoio de 90% da população, ou ao menos a repetição da votação das eleições parlamentares, teria sido impossível perder a ANC. Mas se sabia que isso era falso. Por isso recorreu a deslegitimar a ANC e, mais ainda, a impedir pela via violenta a realização das eleições.

Era evidente que inclusive no momento de maior violência, as guarimbas não haviam conseguido incorporar nem um só bairro operário e popular. No último dia das guarimbas, deram-se conta que dentre os 8 milhões de votantes na ANC, uma parte importante – pelo menos um milhão indicam os analistas mais conservadores –  foram eleitores da direita que votaram para que as mesmas tivessem um fim.

Precisamente a isso se refere o principal dirigente da MUD, Ramos Allup, citado no artigo da UST, quando aponta que “desapareceram” 3 milhões de votos da MUD entre 2015 e agora.  Não se trata de uma acusação ao chavismo, senão diretamente à MUD, cuja crise interna se agudiza, com acusações da direção ter dilapidado o capital político alcançado em 2015. Hoje, a crise da MUD relaciona-se com o fato de que tem que decidir se a oportunidade alcançada em 2015 já se fechou e se deve voltar a começar de novo, ou se ainda existe espaço para continuar a aventura insurrecional que lhes brindou o triunfo eleitoral de 2015.

O chavismo se fortaleceu?

Outra das manipulações numéricas estão direcionadas para determinar se o chavismo saiu fortalecido. O artigo da UST tomou literalmente um balanço da MUD que indica que o “chavismo não se fortaleceu como diz o castrochavismo internacional” (usam inclusive o mesmo termo da burguesia). O texto indica que “observa-se que chavismo descende de 5,7 milhões de votos aproximadamente a 5,561 milhões de votos, uma perda de mais de cem mil votos”.

Esse argumento numérico logo veio abaixo por seu próprio peso, já que esses dados correspondiam aos escrutínios sem incorporar o estado de Bolívar, onde a pequena diferença obrigou a esperar o resultado até que se contasse o último voto. Os números finais dão ao chavismo 5.814.903 votos. Em 2015, nas eleições parlamentares, obteve 5.559.025 votos, isto é, para estas eleições regionais o chavismo não caiu 100 mil votos, senão que aumentou 215 mil votos.

Mas não se trata de números finais. A manipulação consistiu em “esquecer” que as eleições regionais não incluem o Distrito Federal – a segunda circunscrição eleitoral do país, mas que não elege governador – que nas eleições parlamentares deu ao chavismo meio milhão de votos que não foram contados dessa vez. Quer dizer, o chavismo incrementou sua votação em mais de 700 mil votos.

Entretanto, uma análise dos números não é suficiente. Em termos estritos, partindo da realidade prévia, ainda que o chavismo triunfasse em três estados onde a MUD governava, ele perdeu em cinco estados onde governava.  A MUD passou de três para cinco estados governados por ela.

O chavismo tirou a MUD do principal estado do país, Miranda, que junto com o Distrito Federal constituem a cidade de Caracas, e foi o centro mediático da guarimba. Governada até então por Capriles Radonsky, que por duas vezes foi candidato a presidente – uma contra Chávez e outra contra Maduro -, essa derrota representou um duro golpe para a estratégia da MUD. Mas a MUD conseguiu ganhar em três estados – Zulia, Táchira e Mérida – limítrofes entre si e com a Colômbia, que juntas constituem toda uma região, formando uma vasta zona fronteiriça, cuja área tem sido centro de operações do contrabando e paramilitarismo, e está na zona de influência das bases militares gringas em território colombiano o que pode, a partir de uma estratégia secessionista, ser utilizada como Benghazi na Líbia.

Os resultados eleitorais provocaram uma mudança nas relações internas dos partidos da MUD e a crise se agudiza, apesar das tentativas da burguesia e do império de disciplinar os conflitos internos. Com o controle do estado de Miranda, a direção partidária da MUD girava em torno de Primero Justicia (Capriles), mas como dos cinco governos ganhos pela oposição, quatro são da AD (Ramos Allup), esta desejará fazer valer sua nova importância internamente à MUD.  Portanto, o fortalecimento ou não do chavismo será mais produto da realidade e das batalhas que estão por vir.

A posição da MUD de que seus governadores não tomariam a posse ante a ANC, agravou sua crise.  Antes das eleições vários representantes da MUD, incluindo Ramos Allup, haviam dito que não tomariam posse ante a ANC porque esta não era legítima[22]. Argumento estúpido, já que as eleições foram convocadas pela ANC. Em meio à raiva provocada pela derrota eleitoral, reiteraram que os governadores eleitos não tomariam posse ante a ANC. Esta aceitou o desafio e aprovou uma resolução em que os governadores que não tomassem posse ante a ANC não poderiam assumir seu cargo.

A recomendação da OEA foi que os governadores tomassem posse ante Luís Almagro, secretário geral da OEA, e assumissem a sede do governo em Miami, onde já existe um Tribunal Superior de Justiça (TSJ) paralelo. Os governadores da AD, pragmáticos, não consideraram viável essa proposta e, antes que a MUD a avaliasse, se apresentaram ante a ANC, tomando posse e assumindo seus respectivos governos.

O governador de Zulia, Guanipa, de Primero Justicia, se manteve rebelde e foi declarado o abandono de seu cargo. A ANC decidiu convocar novamente as eleições de governador em Zulia junto com as eleições para prefeito em dezembro próximo.  O enfrentamento e os insultos entre os dirigentes da MUD têm ocupado as páginas da imprensa nacional e internacional. O que parece certo é que, ao menos eleitoralmente, o chavismo saiu fortalecido das eleições e, possivelmente, qualquer que seja a decisão da MUD sobre participar ou não das eleições municipais, terminará explodindo a frente partidária, apesar dos desesperados esforços da burguesia.

A UST- LIT(QI), para avaliarem as perspectivas, deveriam se perguntar, à margem do que diz a MUD: Como em meio à pior crise econômica já vivida na Venezuela a partir da agudização do desabastecimento e em plenas eleições, quando a situação econômica praticamente pulverizou as conquistas sociais e, passados quatro meses de “rebelião popular”, o chavismo conseguiu obter 54% dos votos?

Depois do “Caracazo”, a AD não conseguiu ganhar nenhuma eleição nacional. Passados 29 anos, por que o chavismo consegue ganhar depois de dois meses de uma “rebelião popular”? Por que o chavismo consegue incrementar a votação em relação a 2015 nos bairros pobres e de trabalhadores, sendo estes os setores que mais sofrem com a situação econômica? Porque nas cidades onde a MUD conseguiu consolidar uma alta votação, a diferença a favor do chavismo foi dada pelos bairros operários e populares? Em Bolívar, onde as votações foram muito apertadas, por que a votação a favor do chavismo foi dada por San Félix, bairro onde se concentram as indústrias siderúrgicas?

Guarimba ou rebelião popular?

A grande fraude da qual a UST-LIT (QI) acabou sendo vítima é a de caracterizar que a guarimba de 114 dias entre março e julho deste ano se tratou de uma “rebelião popular”. O tema de insurreições, rebeliões e lutas nas ruas, forma parte do DNA da política venezuelana nestes anos.

Um jornalista italiano que veio fazer a cobertura da “guarimba” se perguntava, lendo materiais sobre o golpe de 2002, como era possível que um povo que em 48 horas derrotou um golpe militar que contava com o apoio dos meios de comunicação, do governo norte americano e dos governos europeus, não pode em 100 dias derrubar o governo de Maduro o qual “ninguém o apoiava”. Concluía “não parece o mesmo povo”.

O problema não é somente que o povo não é o mesmo, mas que os fatos ocorridos entre março e julho não são equivalentes ao “Caracazo” ou à derrota do golpe de estado e à sabotagem petroleira. Pelo contrário, são diametralmente opostos. A direção, os objetivos, a composição social dos manifestantes, a localização social dos protestos, não deixam lugar a dúvidas. Se alguma coisa parecida houve na história recente foi a sabotagem petroleira derrotada pelo povo venezuelano em janeiro de 2003.

A guarimba foi uma ferramenta da MUD aplicada nos anos 2006, 2009, 2013, 2014 e neste ano. É verdade que nesta última houve apoio tecnológico, de armamento e de recursos muito superiores às anteriores, porém isso somente influiu nos métodos e na força, politicamente são as mesmas. A grande diferença com a sabotagem petroleira de 2003 é que o chavismo impediu por todos os meios possíveis que o povo enfrentasse as guarimbas. O argumento de que gerar enfrentamentos violentos entre a população e a guarimba provocaria um caos interno de tal magnitude que justificaria uma intervenção estrangeira ecoou na população. Contudo, nesta ocasião houve pontualmente bairros que saíram a enfrentar a guarimba e conseguiram expulsá-la da região.

Alguns argumentam que, ainda que a guarimba seja dirigida e controlada pela MUD, também se trata do povo. Isso é certo pois a MUD contou, desde 2001, com amplo apoio de setores da classe média que cresceu à sombra da renda petroleira. Inclusive setores lumpens da população estiveram decididamente participando das guarimbas e propiciando assaltos a centros públicos de distribuição de alimentos e remédios para seu próprio benefício.

No golpe de 2002, setores de trabalhadores levados pelas empresas ou pela burocracia sindical acompanharam a marcha que serviu de cobertura ao golpe militar. No começo da sabotagem petroleira os trabalhadores acompanharam os seus gerentes nos protestos. Esse fenômeno de setores da população apoiando o fascismo existiu na Europa de Hitler, Mussolini e Franco. Também se pode recordar, no Chile, as manifestações da classe média e grupos de estudantes contra o governo de Allende nos dias prévios ao golpe de Pinochet.

Nas guarimbas do princípio deste ano não há nenhuma dúvida que havia trabalhadores, mas não a classe trabalhadora: também havia pessoas dos bairros, porém os bairros não estavam na guarimba. De manhã era possível vê-los, às vezes nos transportes públicos, dirigindo-se para o leste da cidade com suas equipes de guarimbeiros[23]. Não criavam guarimbas em suas fábricas, nem em seus bairros, pois iam para o leste, para as zonas das classes médias, onde ocorria a guarimba. A conformação da guarimba foi de classe média e se desenvolveu nas zonas residenciais da classe média e não nos bairros ou zonas industriais. Como uma rebelião popular se desenvolve exclusivamente nas regiões de classe média e alta e não consegue a participação massiva em nenhum bairro operário e popular?

Ainda assim, a difícil situação econômica poderia ser a base de uma rebelião popular, ainda que fosse somente na classe média. Então caberia perguntar: por que uma rebelião popular contra a fome destrói dezenas de centros de distribuição de alimentos públicos e, diferentemente do “Caracazo”, não toca em nenhum McDonald, nem em nenhum centro de comida ou restaurante privado? Como uma rebelião popular ataca e destrói mais de 300 unidades de transporte gratuito e instalações do Metrô e, diferentemente do “Caracazo”, não toca em nenhum transporte privado, que aumentou seus preços em 500% somente neste ano? Como uma rebelião popular consegue destruir e, em um ataque coordenado, fazer desaparecer todos os centros de distribuição gratuita de medicamentos e não é afetada nenhuma farmácia ou lojas das redes privadas de medicamentos? Como é possível, em uma rebelião popular, conseguir esta precisão cirúrgica de destruir coisas públicas e respeitar as coisas privadas, o que não foi possível no “Caracazo”? O grupo Polar, principal grupo econômico e proprietário da maior rede de produção de alimentos, cujo dono não oculta sua aspiração a ser Presidente, em uma semana do “Caracazo” perdeu setenta caminhões e catorze centros de distribuição somente em Caracas e em 114 dias de guarimba em todo o país não perdeu um só caminhão. Como uma rebelião popular espontânea foi paralisada por dois dias enquanto a MUD decidia se participava ou não das eleições da Assembleia Nacional Constituinte, e dois dias depois para novamente para que a MUD fizesse um plebiscito e, em seguida, na mesma noite, essa rebelião acabou quando foi anunciado o resultado da Constituinte?

Inclusive o tema da violência que gerou mais de uma centena de mortos teve um alto conteúdo de classe. Menos da quinta parte desse total foram pessoas vinculadas à guarimba ou aos enfrentamentos. A maioria, pelo contrário, foram vítimas das ações das guarimbas. Metralhar os bairros, em particular, as casas da Misión Vivienda[24], colocar cabos de aço atravessando as ruas contra os trabalhadores que usavam motos, usar pregos, bombas e barricadas contra os veículos que transitavam pelas ruas, e disparar com franco-atiradores contra as pessoas que retiravam os obstáculos das ruas, tais foram as causas de mais de 60% dos mortos – mais de 100 – e não os enfrentamentos entre os policiais e os guarimbeiros. Inclusive houve o linchamento de uma dezena de pessoas, todos trabalhadores, que, devido à paralisação dos transportes, regressavam do seu trabalho caminhando e ficavam presos numa zona de controle das guarimbas e foram acusados de chavistas somente por serem pobres, de pele escura e evidentemente não pertencer àquela região.

A guarimba, a princípio, teve por objetivo gerar o caos interno no marco da discussão na OEA sobre a aplicação da Carta Democrática. Isto teve data fixada para o seu início e, inclusive, um dia antes o ex-presidente da Costa Rica, Oscar Arias, disse que esperava que “a situação dos próximos dias da Venezuela comoverá a comunidade internacional”.   É estranho que uma rebelião popular ‘espontânea’ seja anunciada por este tipo de personagem.

Tudo levava a crer que o que se esperava era que as pessoas dos bairros, em meio à difícil situação, apoiassem os saques ou que ficassem irritadas e partissem para os enfrentamentos de rua. Os ataques aos centros de saúde, os assaltos aos caminhões que transportavam alimentos aos bairros e os primeiros mortos[25] parecia que tinham por objetivo excitar a população para que adotasse a via de enfrentamentos e caos interno. Contudo, depois da convocatória às eleições da Assembleia Nacional Constituinte, o objetivo das guarimbas passou a ser de impedir que estas se realizassem. Quiseram infundir o terror na população para que esta não saísse às ruas, realizando o que chamavam de “trancazos”, onde ameaçavam os que se “atrevessem a circular pelas ruas”. No entanto, como as guarimbas não abarcavam toda a geografia nacional, chegou um momento em que os mais afetados por elas era a própria classe média por trás de suas linhas.

O financiamento das ações da guarimba era tão descarado que a maioria levava câmeras digitais caríssimas colocadas nos capacetes para gravar sua participação em determinadas ações e poder cobrar ou vender as imagens à imprensa internacional. Voltando a Ochoa Antich, alto dirigente da MUD, em plena crise da MUD afirmou: “o que foi derrotado não foi o rumo democrático e eleitoral. Esta derrota é filha de quatro meses de delírio extremista que cultivou a abstenção … o chavismo não é somente dádivas e orçamento. Também é um discurso reivindicador. Por isso sobrevive à pior crise que ele mesmo criou …”

A guarimba é o braço executor da violência que forma parte do programa da MUD e do imperialismo. Por isso não foi uma ação espontânea, senão que foi preparada previamente. Por isso parou por dois dias enquanto a MUD decidia o que fazer com a Assembleia Nacional Constituinte, e depois para permitir que a MUD fizesse um plebiscito. Por isso a guarimba morreu na mesma noite em que se realizaram as eleições para a Constituinte. Numa rebelião popular isso teria sido impossível.

A revolução diante de duas encruzilhadas

Depois do processo eleitoral, o governo continuou a ofensiva eleitoral contra a MUD convocando eleições municipais para aproveitar a crise interna da direita. Mas o problema não é eleitoral, a situação econômica piora cada vez mais, e este novo pico da mobilização popular deve encontrar resposta ou poderá voltar para atrás.

Essa é uma das encruzilhadas do processo revolucionário. As eleições, como se demonstrou em 2015, distorcem a realidade: os setores de retaguarda, uma efetiva campanha publicitária e o desânimo da vanguarda podem provocar um resultado eleitoral adverso.

A revolução não é irreversível e pode ser derrotada. Até agora tem demonstrado ter reservas de forças suficientes para derrotar a direita. Cada vez que o chicote da contrarrevolução tem ameaçado, demonstrou sua força para fazer o inimigo retroceder. Mas o ataque continua. Uma inflação de quase 70% na semana anterior e na seguinte às eleições, demonstram que segue em pé a guerra económica.

No mercado, um operário surpreendido pelos novos preços comentou em voz alta “…nos castigam por votarmos no chavismo e o governo não faz nada, também são uns desgraçados …“. E se voltando para o grupo que o escutava repetiu “…são uns desgraçados, mas são nossos desgraçados…”.

O povo trabalhador sabe que quem provoca a inflação e o desabastecimento são os mesmos de 89, os mesmos da sabotagem petroleira. Sabe que há uma guerra econômica, mas sente que o governo não responde. Diferente do “Caracazo“, quando buscou queimar o governo de AD, sente que este é “seu” governo. E essa é a primeira encruzilhada. Já basta de derrotas parciais, a revolução deve derrotar a direita definitivamente ou continuará a guerra, ou a qualquer momento esta pode quebrar a revolução e reverter o processo iniciado em 1989.

Porém, a segunda encruzilhada é mais difícil. O chavismo, com seus erros, é a direção objetiva do processo revolucionário venezuelano. Tem sido o responsável por suas vitórias, mas também por seus retrocessos e que as vitórias conquistadas não tenham se tornado definitivas.

O chavismo é responsável pelo triunfo sobre o golpe fascista de 2002, pela derrota da sabotagem petroleira em 2003, e por não transformar essa em uma vitória definitiva contra a burguesia, freando o povo quando esse deveria seguir avançando, criando a ilusão que a burguesia aceitaria a derrota e não seguiria tentando.

Setores da burguesia enriqueceram a partir de negócios ilícitos, de manipulação do câmbio, de contrabando, bachaqueo[26], e negócios fraudulentos com o próprio governo que serviu para financiar a própria MUD contra o governo. O fato de a burguesia seguir tendo um enorme poder econômico, que lhe permite dirigir a guerra econômica contra o povo, deve-se a que durante todos estes anos lhe foi deixado o controle de áreas-chave da economia, da produção e da distribuição. A ausência de controle do comercio exterior por parte do governo lhe permitiu a gestão das importações e o uso de dólares do Estado para seu próprio benefício e não para atender as necessidades da população. Os milhões de dólares roubados, retirados do país e entregues para importações que nunca aconteceram, ou tinham superfaturamento, ou não eram necessárias, são responsabilidades do descontrole por parte do governo.

Existe um enorme setor da classe média que respalda a MUD, não só pelo bombardeio intenso da propaganda, mas também pelas debilidades da revolução na construção do socialismo. Criaram-se ilusões de que simplesmente dando benefícios, ele passaria para o nosso lado, ignorando a carga ideológica que o capitalismo desenvolveu nesse setor.

O chavismo permitiu o crescimento de uma burocracia ineficiente que, combinada com uma burocracia sindical clientelista e economicista, abarcou as empresas do estado. A corrupção nos escalões baixos, médios e altos do governo, e que também permeou as forças armadas, tem sido muitas vezes um flagelo pior que a própria guerra econômica. A manipulação do câmbio, o ataque à moeda, o bachaquerismo, o contrabando de minérios e o mercado negro têm crescido baseados na corrupção de muitos burocratas.

As opiniões, as críticas e a disposição para a luta das organizações de base de trabalhadores, das Comunas e das organizações sociais são muitas vezes caladas e asfixiadas pelo burocratismo do governo. O “golpe do timón” que Chávez exigiu meses antes de seu desaparecimento físico, para enfrentar o burocratismo e a ineficiência do governo, não se materializou.

O povo está disposto, hoje mais que nunca, a dar a batalha contra a direita, mas quer que esta seja a última batalha. A indefinição e indecisão do chavismo contribuiu para a impunidade da direita. As pessoas não entendem que os mortos da guarimba sigam sendo a gente do povo e a direita continue se apresentando como vítima. As pessoas não entendem que os que vivem da revolução militem contra ela.

Por isso, despois de derrotar a guarimba e triunfar nas eleições regionais, o povo redobrou sua exigência ao governo chavista para que tome medidas que acabem com a guerra econômica, que acabem com as guarimbas, a corrupção e o burocratismo.

Há alguns dias, o ex-procurador Isaías Rodríguez, herói de abril de 2002 na derrota do golpe fascista e promotor da convocatória à esta ANC, se pronunciou dizendo que a ANC não poderia se reduzir a ser uma Assembleia Nacional paralela, que não tinha explicação que em 3 meses não houvesse abordado o problema econômico. O dirigente chavista Pedro Carreño lhe respondeu acusando-o até de traidor da pátria. Milhares de organizações populares e militantes de base utilizaram as redes sociais para expressar sua solidariedade a Isaías Rodríguez e rejeitar o ataque grosseiro de Pedro Carreño. Os grupos que diariamente se manifestam no entorno da ANC criaram o slogan “Mais Isaías, menos Carreño”, demonstrando a sua exigência sobre para onde deve seguir a ANC.

Em resposta à pressão das bases se instalou a Constituinte económica e funcionários do SUNDDE (Superintendência Nacional para a Defesa dos Direitos Socioeconômicos) foram atacar os centros de distribuição, transporte e comercialização de alimentos, conseguindo fazer com que os preços caíssem em até 50%, demonstrando a natureza especulativa da fixação de preços.

O povo aplaudiu esta ação do SUNDDE, mas se trata de ações espasmódicas que não dão solução definitiva. O comércio, prevendo a ação do SUNDDE, esconde os alimentos e passamos da inflação à escassez e desabastecimento. Não é possível continuar com medidas isoladas, nos faz falta um plano de ação.

O governo chavista deve se apoiar em organizações de base de trabalhadores e das comunidades, mais do que na burocracia do Estado, para enfrentar a guerra econômica e derrotar definitivamente a burguesia pela construção real do socialismo. O socialismo não é um discurso, é o planejamento centralizado da economia nas mãos do povo. Como disse Chávez: “o socialismo deve e pode ser planejado“. Há que fazê-lo. Essa é a batalha definitiva para derrotar a MUD, a burguesia e o império.

Já basta de negociações estéreis com a direita, que só levam a novos confrontos, a novas guarimbas. As pessoas querem a paz, mas não a querem para viver de joelhos, e só teremos a paz com a derrota definitiva da burguesia através do controle da economia e eliminando os vestígios do capitalismo que dominam a sociedade venezuelana, mesmo após quase trinta anos do “Caracazo“.

Caso contrário, a revolução deve tomar o caminho do questionamento da liderança chavista, assumindo o governo a partir das organizações de base do povo. É necessária uma revolução política para derrotar a burocracia e a corrupção que se apoderou de uma parte importante do governo chavista. Uma reviravolta, um “golpe de timón”, como indicou Chávez, mas do povo e com o povo.

 

[1] Após a derrubada da ditadura em 1948, e com o patrocínio dos EUA, os partidos da Ação Democrática (AD), o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI) e a União Republicana Democrática (URD), excluindo o PCV, assinaram um “pacto de governabilidade” que implicava a distribuição do governo, os mecanismos de consulta e a aprovação de políticas extra constitucionais, com o objetivo de “garantir a alternativa democrática e afastar a ameaça comunista”. O pacto foi assinado no sítio de Rafael Caldera, dirigente da Copei, conhecida como “Puntofijo“. Daí o nome do “pacto de punto fijo” e o período de dominação dos partidos AD-COPEI ser conhecido como regime puntofijista. Em 1993, como consequência do “Caracazo“, Rafael Caldera venceu as eleições, mas teve que sair por outro partido/legenda (Convergência Democrática), conseguindo obter o apoio da esquerda. AD e COPEI saíram do governo pela primeira vez desde 1948, mas o esquema puntofijista se manteve até o triunfo de Hugo Chávez em dezembro de 1998.

[2] Após o “Caracazo“, principalmente nos meses que antecederam o golpe, circulavam folhetos entre a população denunciando a corrupção do governo e sua responsabilidade no assassinato de milhares de pessoas. Os panfletos foram atribuídos aos COMACATES, um acrônimo que identifica os oficiais médios das forças armadas: Comandantes, Majores, Capitães e Tenentes.

[3] Hugo Chávez Frías, Francisco Arias Cárdenas e Joel Acosta Chirino, eram os três dirigentes do 4F, todos tinham o cargo de tenente-coronel – o mais alto do médio oficialato – e eram comandantes de tropas. Arias e Acosta romperam com Chávez durante a Assembleia Constituinte de 1999. Arias chegou a ser candidato a presidente pela oposição nas eleições realizadas em 2000. Ele voltou ao chavismo durante o golpe de abril de 2002. Atualmente, era governador do estado de Zulia e candidato a reeleição, sendo derrotado pela MUD. Por sua vez, Acosta esteve na oposição até o golpe de abril de 2002 para, logo depois, se retirar da atividade política.

Um quarto dirigente, Wilmer Castro Soteldo, da aviação, foi forçado a fazer um treinamento na Costa Rica e não pode participar do 4F. Participou de uma nova tentativa de golpe em 27 de novembro daquele ano. Ele é um dos dirigentes do chavismo. Atualmente é Ministro do Poder Popular para Agricultura e Terras.

 

 

[4] Na madrugada de 14 de abril de 2002, Chávez se dirige à população já reintegrado como presidente. Milhares de trabalhadores misturados com soldados, cercam Miraflores e se concentram nas praças das principais cidades do país. Alguns representantes da burguesia fugiram da Venezuela. Bairros de classe média que duas noites antes estavam celebrando o golpe, agora estavam em silêncio e no escuro. Chávez, apertando um crucifixo, pediu que toda a população voltasse às suas casas e os soldados para o quartel, já que este seria um momento de reconciliação nacional e não de vingança.

[5]Durante a sabotagem do petróleo (dezembro de 2002/janeiro de 2003), as mídias nacional e internacional deram muita publicidade às manifestações contra o governo. Essas manifestações eram protagonizadas por importantes setores da classe média – surgida a partir da riqueza gerada pelo petróleo -, que sempre repudiaram os moradores dos bairros que chamam de “macaco” ou “marginal”. Vale ressaltar que muitos destes têm origem nesses mesmos bairros, mas que conseguiram a duras penas uma profissão e um nível econômico que lhes proporcionaram ascensão social.

A difusão de imagens de pessoas se declarando contra o governo, de fortes confrontos com as forças da ordem pública que tentavam reabrir as estradas, das barricadas e dos incêndios, mostrou ao mundo um país onde a população estava em guerra contra o governo. Todos os dias, às seis horas da tarde, três representantes da “Coordenação Democrática” – o presidente da FEDECAMARAS, o presidente da CTV e o líder da “Gente do Petróleo” – um grupo que integrava os “trabalhadores” (de fato, os gerentes) da indústria do petróleo. Eles fizeram parte da ampla mobilização contra Chávez e, da mesma maneira que toda a “sociedade civil”, exigiam sua renúncia.

Alguns setores da esquerda, impressionados pela mídia ou oportunistas, e colunistas de imprensa, falavam do estado de “rebelião civil” contra o governo Chávez, “que perdeu o apoio popular”. Um ano depois, Chávez derrotou a direita em um referendo revogatório com 59% dos votos. Apenas a palavra “fraude” parecia servir para encobrir a incompreensão do processo aberto na Venezuela desde o “Caracazo” e a correlação de forças existente no país.

 

 

[6] Se entende como “guarimbas” as ações violentas promovidas pela MUD que contemplam o fechamento de ruas, destruição de instalações, veículos e bens públicos – incluídos centros de saúde, depósitos de alimentos e remédios, creches, não somente repartições públicas – e em muitos casos choques violentos com as equipes da ordem pública (Polícia Nacional Bolivariana e Guarda Nacional Bolivariana).

O termo “guarimba” se refere a documentos apreendidos de um produtor da RCTV, nessa ocasião o principal canal privado e publicamente promotor do golpe de abril de 2002, onde se instruía que as manifestações de rua que se preparavam para a defesa do canal RCTV deviam se dar nos bairros fechando vias, colocando barricadas, sair, atacar e destruir edifícios e veículos do governo e voltar aos bairros rapidamente, ou seja, quando a polícia chegasse havia que voltar para as casas e atacar desde os andares superiores dos edifícios, usar os bairros como guarimbas. Existe um jogo infantil “polícias e ladrões” onde um grupo de crianças persegue e pega os outros, porém existe um lugar chamado guarimba onde os perseguidos não podem ser pegos.

Nesse ano de 2006 houve uma ampla difusão da propaganda nas redes sociais de como organizar a guarimba, inclusive alguns indicavam com diagramas onde deviam se colocar os franco-atiradores que protegiam a guarimba.

[7] Depois da sabotagem petrolífera, a participação direta da burguesia no direcionamento da ação política tem sido muito visível. Inclusive os dirigentes dos principais partidos políticos do país são filhos da grande burguesia. Capriles Radonsky, dirigente de Primero Justicia, além de fazer parte de uma família das principais redes de jornais, é herdeiro da principal rede de salas de cinema e distribuição de filmes do país. Corina Machado, dirigente da Vente Venezuela, pertence às famílias aristocráticas provenientes da colônia. Ela herdaria o principal polo industrial siderúrgico que foi expropriado pelo governo em 2010 depois de um conflito trabalhista que durou seis meses. Leopoldo Lopez, dirigente da Voluntad Popular, é filho de uma família herdeira de várias outras famílias donas de empresas manufatureiras e vinculadas ao gerenciamento petroleiro e, em sua juventude, foi militante da Tradição, Família e Propriedade (TFP). Todos eles, tradição da burguesia venezuelana, se formaram em colégios jesuítas e em universidades norte-americanas, sem deixar de passar por uma etapa de adesão às drogas e à boemia.

O único que escapa desse grupo é Ramos Allup, dirigente da AD. Ainda que venha da burguesia comercial de ascendência libanesa localizada na zona franca de Paranaguá, se incorporou à AD como estudante e fez carreira política nesse partido, ascendendo a cargos de direção até a crise posterior ao “Caracazo”. Depois da derrota da sabotagem petrolífera, assumiu a máxima direção da AD. Político de carreira, não oculta seu desprezo pelos filhos da burguesia que incursionam na política e os chama publicamente de “filhinhos de papai” e “metidos”.

[8] O Polo Patriótico é a frente de partidos que apoiam a revolução bolivariana. É integrado pelo PSUV, o Partido Comunista (PCV), a Unidad Popular Venezuelana (UPV), Pátria Para Todos (PPT), Movimento Tupamaro, Movimento Eleitoral do Povo (MEP), independentes pela Comunidade Nacional (IPCN), Pela Democracia Social (PODEMOS), Corrente Revolucionaria Venezuelana (CRV), Partido Redes, Aliança (NCR), Organização Renovadora Autentica (ORA). Nas eleições regionais de 15 de outubro, os demais partidos obtiveram juntos 7% dos 54% obtido pelo PSUV.

[9] Somente em dois estados, correntes distintas do Polo Patriótico ou da MUD tiveram votações superiores a 4%. No Amazonas (11%) e em Apure (9%), localizados ao sul do país na fronteira com a Colômbia, mas não se tratou de uma terceira corrente, senão de muitos grupos locais que não saíram juntos e que nenhum teve mais de 1%.

[10] Este ano uma pesquisa chegou a publicar que 85% da população rechaçava o governo e estava pela intervenção estrangeira.

[11]No domingo 15, as manchetes da imprensa burguesa foram: “Hoje todos votam contra a ditadura”.

[12] O PCV denunciou a norma como puntofijista e fez uma campanha pública pela sua não aplicação.

[13] A lei exige o apoio de 1% dos eleitores por estado em pelo menos 12 estados para ser um partido de âmbito nacional. Em julho de 2016, a MUD organizou a campanha de coleta de assinaturas para sua legalização. A imprensa nacional e internacional apontou que a coleta de assinaturas era para o referendo revogatório, o que era correto. A coleta de assinaturas para o referendo revogatório estava prevista para outubro de 2016, que foi quando os tribunais civis ordenaram parar o processo por denúncia de falsificação de assinaturas e pela utilização de pessoas falecidas, o que era correto. A MUD acusou o chavismo de ter incorporado essas assinaturas para sabotar o processo.

Posteriormente, a MUD decidiu não continuar impulsionando o referendo revogatório e, ainda que não tenha havido explicação pública do porquê, se soube que na reunião com o Departamento de Estado norte-americano lhes disseram que essa via era contraproducente porque não havia certeza de conseguir revogar Maduro eleitoralmente.

[14] Em vários momentos destes 17 anos houve mesas de negociação entre o chavismo e MUD. Durante a sabotagem petrolífera houve uma mesa de negociação impulsionada por Cesar Gaviria, à época Secretário Geral da OEA. No ano passado, o mediador foi um representante do Papa Francisco, e a negociação foi rompida pela MUD para se lançar na guarimba. A atual é composta pelos ex-presidentes Zapatero (Espanha), Torrijos (Panamá) e Fernández (República Dominicana), tendo como sede este último país.

[15] Durante todos esses anos surgiram grupos de auto-organização das pessoas, a grande maioria por fora do PSUV. A direita sempre se referiu a esses grupos como bandos armados do chavismo, aos que lhes atribuíam todo tipo de ação, inclusive as que eles próprios fazem. Quando houve o golpe de estado e a sabotagem petrolífera, eram famosos os círculos bolivarianos. Hoje em dia, são os coletivos. Os coletivos – e antes deles os círculos bolivarianos – são de todos os tipos, há núcleos de moradores ou de artistas, outros se dedicam à produção no nível comunal e, nos últimos dois anos, há muitos coletivos dedicados à organização de feiras de venda de alimentos nos bairros. Um pequeno percentual são coletivos de autodefesa, alguns dos quais estão armados, e que em geral atuam como vigilantes do bairro contra a delinquência, mas também houve casos em que os coletivos foram acusados de estar formados por bandos de delinquentes.

Alguns coletivos são de ultraesquerda, muito críticos ao chavismo e protagonizaram enfrentamentos com grupos de choque da direita. Dirigentes dos coletivos foram vítimas de pistoleiros, ações que foram atribuídas à MUD. Um dos coletivos mais conhecidos, “Alexis Vive”, está localizado no bairro popular 23 de Janeiro, em Caracas. Possuem centros de produção e venda de alimentos além de uma estação de rádio. Em 2008, ocuparam por um dia uma estação de TV para protestar por falsas denúncias. Uma semana depois, seu principal dirigente foi assassinado por um pistoleiro, daí que assumiram o nome de “Alexis Vive”.

[16] A Diana, é um toque de corneta que anuncia a alvorada nos acampamentos militares. Na mitologia romana, a deusa Diana estava relacionada com o planeta Vênus, que anuncia um novo dia. A Diana que usa o chavismo é o “toque de ataque” (som de corneta) do exército de Bolívar, que dava a ordem de avançar para a cavalaria. Hoje, salvo nas forças armadas, já não se usam cornetas, mas sons gravados. São usadas, junto com fogos de artifício, para as eleições, início de uma marcha ou para anunciar a chegada de uma coluna de manifestantes.

[17] A eleição de governadores se iniciou depois do “Caracazo”, como parte das medidas para recuperar o puntofijismo em crise. Até esse momento, prefeitos e governadores eram designados pelo Presidente da República. Mas já nesse momento o sistema eleitoral vigente estava em crise por causa do “Caracazo”, tendo uma participação de 40%. Promulgada a Constituição de 1999, a participação subiu, mas para apenas 50%. A última eleição para governadores foi duas semanas depois da última aparição pública de Chávez, quando então se anunciou que o câncer havia reaparecido, devendo submeter-se a uma operação. Nesse momento se chamou a votar pelos candidatos a governadores do Polo Patriótico, e, no caso de não poder voltar à presidência, deveriam eleger Nicolás Maduro para Presidente. Nessas eleições, a participação foi de 54%, sendo que foi superada somente agora, com 61%.

[18] Dolartoday é uma página web, publicada desde Miami e vinculada ao mercado negro em Cúcuta, cidade colombiana na fronteira com Venezuela que estabelece o valor do dólar paralelo. Os donos da página são ex-militares que fugiram durante o golpe de 2002 e lobistas vinculados ao sistema bancário instalados em Miami. Ainda que afirmem que a fixação do dólar esteja relacionada com as transações em Cúcuta, muitos economistas têm demonstrado com gráficos comparativos que a fixação do dólar por essa página está associada a eventos políticos e não a regras econométricas. Dólartoday influi diretamente na fixação do preço pelos comerciantes.

[19] Na fronteira, o papel-moeda venezuelano é comprado a 170% de seu valor nominal. Recentemente, no Paraguai, que não tem fronteira com Venezuela, um acidente com um caminhão de carga revelou que o mesmo transportava mais de 30 toneladas de papel moeda venezuelano.

[20] Um exemplo é a lei que restabeleceria a propriedade sobre as habitações entregues à população de forma subsidiada ou gratuita através da Missão Vivenda, cuja venda é proibida. A Missão Vivenda constrói em terrenos disponíveis, sem importar de quem é a propriedade, e estabelece o valor em base ao custo de produção. A ideia era que o mercado imobiliário assumisse as habitações – teriam um alto valor, já que ao eliminar a proibição da construção muitos venderiam para retornar aos seus bairros – e que o novo valor indenizasse os proprietários das terras expropriadas para construir habitações.

Outra lei esteve destinada a eliminar as emissoras comunitárias. Outra devolvia a seus legítimos donos as terras e empresas expropriadas, etc.

[21] As eleições parlamentares no estado do Amazonas, que se encontra mais ao sul do país e com uma maior população indígena, foram questionadas porque era evidente a compra de votos pelo governador que pertencia à MUD. O TSJ ordenou a suspensão dos deputados eleitos, ou seja, três da MUD e um chavista. Apesar disso, o parlamento decidiu desconhecer o TSJ e dar posse aos deputados, o que resultou num ato de desacato. Esse estado foi um dos que a MUD perdeu nas últimas eleições.

 

[22] Em seu artigo a UST afirma que a ANC é ilegítima e a votação de 30 de julho, 8 milhões, foi falsa. A ilegitimidade da ANC, a falsidade dos 8 milhões de votos à ANC e o termo “ditadura” para definir o governo, são o discurso da MUD e não corresponde ao movimento revolucionário.

Quando a MUD chamou à renúncia de Maduro e convocou eleições gerais, Maduro respondeu durante a marcha do Primero de Maio ao dizer que o povo deveria decidir entre capitalismo ou socialismo, entre paz e a guarimba, convocando para isso as eleições para a ANC que decidiria sobre uma nova Constituição.

A MUD argumentou que uma convocação das eleições para a ANC que incorporavam a eleição de deputados por setores – trabalhadores, estudantes, pescadores, camponeses, empresários, os bairros, etc. – devia ser consultada através de um referendo que, por sua vez, não estava previsto na Constituição. O critério utilizado foi que como Maduro era rechaçado pela população não poderia convocá-la, ainda que a Constituição lhe desse essa atribuição. Esse foi o argumento de ilegitimidade utilizado pela MUD sobre a ANC, no qual se baseou também a OEA.

Qual o critério em que se baseia a UST-LIT (QI)? Sobre os votantes da ANC. O processo foi submetido à auditoria na qual participa a MUD, de forma que se houvesse alguma inconsistência numérica já teria sido denunciada através de provas pela MUD. Como estratégia para a deslegitimação se utilizou desde Londres o presidente da Smartmatic – empresa encarregada da elaboração do software –, cuja gerência se retirou do país na sexta, antes das eleições. O tema é que ainda que essa empresa elabore o software, nunca teve ingerência alguma sobre o processo eleitoral. Ela se limita a entregar o software e participar de sua auditoria previamente ao processo eleitoral.

Sobre a definição de ditadura, em termos da democracia burguesia, Maduro foi eleito por eleições diretas para um período de 6 anos que venceria em abril de 2019. Só para citar a América Latina, existem presidentes que não foram eleitos diretamente por ninguém – como Temer no Brasil – ou que surgiram de eleições questionadas e não auditadas – Peru e México – e o artigo da UST não se refere a eles como uma ditadura como fazem com Maduro.  Do ponto de vista político, para a burguesia o que existe na Venezuela é uma “ditadura socialista”, coisa que a UST não coincide porque considera o chavismo uma direção burguesa. Tampouco é uma ditadura da burguesia porque senão não existiria a MUD e não haveria como sobreviver contra o império gringo. Em qual conceito marxista, marxólogo ou marxiano, a UST-LIT (QI) considera o governo de Maduro uma ditadura?

[23] O governo chavista decidiu não prender os guarimbeiros nas ruas, nem sequer durante as guarimbas, e portanto era normal encontrá-los nos transportes, tomando o café da manhã ou almoçando perto do local onde se desenvolvia uma guarimba ou nas noites em algum bar ou restaurante. Era fácil identificá-los porque quase sempre levavam algum pano que dizia “Sou um Libertador” ou levavam uma mochila onde guardavam um capacete, uma máscara e as câmeras digitais que completavam o uniforme do guarimbeiro.

Todos os presos foram produto de mandado de busca (operação “tum-tum” que era conhecida por ser semelhante ao ruído ao se bater numa porta) realizados nas residências ou centros de apoio à guarimba, não nas ruas nem nos choques com a polícia.

 

 

[24]  Nota do Tradutor: Algo parecido ao projeto “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil.

[25] Os primeiros cinco mortos foram em circunstâncias estranhas. O primeiro foi um rapaz de 19 anos alheio à guarimba e ao chavismo, assassinado por um policial que fazia parte do controle do tráfego e não da ordem pública. Estranhamente as redes sociais da guarimba publicaram a foto do rapaz morto no chão imediatamente.

O segundo, foi um garoto de 14 anos assassinado por guarimbeiros que passavam em frente a um edifício da Misión Vivienda. O terceiro foi uma mulher de 48 anos que recebeu um golpe na cabeça por uma garrafa plástica de água congelada lançada do alto de um edifício contra uma manifestação chavista.

O quarto foi um garoto de 17 anos atingido por um disparo sem explicação de uns policiais que fugiram numa moto. O garoto estava perto de uma guarimba e um mês depois foram detidos três funcionários de segurança da prefeitura de Chacao, da MUD, que se demonstrou que os mesmos haviam se disfarçados de policiais para cometer o assassinato.

O quinto, foi uma ativista da MUD assassinada quando passava um grupo de chavistas motorizados. O responsável foi um franco atirador, dirigente da MUD. Ele reconheceu que disparou sobre a mulher para atiçar as pessoas a atacar os chavistas motorizados, responsabilizando-os pelo assassinato.

[26] O bachaquerismo e, por extensão, o bachaqueo, é a revenda de produtos taxados, a preços especulativos. Teve início com o contrabando de extração na fronteira da Venezuela com a Colômbia, onde uma pessoa comprava no lado venezuelano os artigos a preços controlados e os vendia no lado colombiano a preços livres e em dólares. Logo, com o agravamento da situação económica, essa atividade se estendeu ao interior do país com as mesmas características: a revenda de artigos de primeira necessidade com preços controlados pelo governo a preços livres. Se chama bachaqueo, porque no imaginário popular se faz um paralelo com uma formiga chamada “bachaco” e que tem uma grande capacidade de carga.