A mais relevante e amada cantautora da cultura chilena nasceu no dia 4 de outubro de 1917. No Chile, multiplicam-se as iniciativas para comemorar o centenário do seu nascimento. Artigo de Sofia Roque.
“Violeta Parra está gravada na memória de um país que reconhece na sua obra um universo no qual convivem, com a mesma força, o lamento mapuche e o silêncio do deserto de Atacama, a raiva contra a injustiça e a gratidão da existência, a mais profunda saudade e a plenitude do amor”. É assim que a Presidente do Chile, Michelle Bachelet, inicia o anúncio de um ano de comemorações e eventos, para a “celebração nacional” do centenário do nascimento da mais relevante e amada cantautora da cultura chilena.
Seguindo a hashtag #VioletaParra100, por exemplo, ou o site oficial das comemorações, percebe-se que o Chile tem vindo a festejar o legado artístico e incontornavelmente político de Violeta Parra, a propósito deste centenário. Com concertos e múltiplas homenagens, claro, mas também com debates, documentários, teatro, dança e até a elaboração de uma grande tapeçaria por mais de 30 bordadeiras, oriundas de sete regiões do país.
Não é por acaso que o Dia Nacional da Música Chilena passou a comemorar-se no dia 4 de outubro e, este ano, pela primeira vez, as varandas do Palácio La Moneda servirão de palco para um concerto gratuito, em honra de Violeta Parra e promovido pelo Conselho Nacional de Cultura e Artes chileno.
No site da Fundação Violeta Parra, encontra-se a sua biografia detalhada, que inclui muita informação sobre o seu percurso artístico (como cantautora e também como artista plástica). O Museu Violeta Parra, inaugurado em outubro de 2015, em Santiago do Chile, tem também um site que reúne informação sobre a sua obra e percurso, bem como sobre as comemorações do centenário do seu nascimento.
Violeta compilou três mil canções populares e revitalizou o folclore chileno, que difundiu na Europa e no resto da América Latina, e fixou em livro, para que nunca mais estivesse oculto. Nos anos 1950, viveu em Paris e foi a primeira artista latino-americana a expor individualmente no Museu de Artes Decorativas do Palácio do Louvre. Este ano, assinalam-se também os 50 anos da sua morte, por suicídio (fevereiro de 1967), pouco depois de editar um disco que fez questão de intitular “As última composições de Violeta Parra”, cuja subtileza premonitória ninguém percebeu.
Esta quarta-feira, em Lisboa, A Voz do Operário recebe um concerto de homenagem, pelos El Sur, onde cantará também Vitorino, entre muitos outros. Ver evento.
Sensível, forte, luminosa e criadora
No passado mês de Setembro, Isabel e Tita Parra, respetivamente, filha e neta de Violeta, trouxeram ao CCB, em Lisboa, “Yo Soy La Feliz Violeta”, um espetáculo integrado na programação de Lisboa 2017 – Capital Ibero-americana de Cultura. Para além de revisitarem o reportório de Violeta Parra, Tita e Isabel cantaram também músicas da sua autoria.
“Violeta contribuiu muito para o nascimento da canção popular chilena e latino-americana, abordando conteúdos nunca antes abordados”, contou ao Público a neta, Tita. “Foi a primeira a compor músicas com conteúdo social e revolucionárias, que falavam da guerra, da injustiça, da pobreza, da exploração, da dor da mulher, da do trabalhador”, disse ainda.
“Cantar Violeta faz parte da nossa vida”, disse Isabel Parra, que utilizou quatro palavras para descrever a mãe: “sensível, forte, luminosa e criadora”. Contou ainda que desde muito cedo começou a cantá-la, com o seu irmão Ángel Parra, que morreu em Março deste ano. “E com a minha filha [Tita] sucedeu o mesmo: cantava com a sua avó, acompanhava-a”.
Porém, Violeta Parra não foi apenas cantora ou compositora, lembrou ainda a filha Isabel: foi também pesquisadora, folclorista, radialista, escritora, pintora, escultora, serapilheirista. “O importante do legado de Violeta está na magnitude da sua obra, que não é somente musical; tem uma obra visual, poética; é uma artista absolutamente multifacetada”, concluiu.
“Doce vizinha da selva verde/ Anfitriã eterna do abril florido”, são os dois primeiros versos do longo poema “Defensa de Violeta Parra”, escrito e dito pelo seu irmão, Nicanor Parra, um reconhecido poeta chileno.
O som contagioso da revolta
Num artigo publicado na Revista Vírus, em 2008, intitulado “O Tempo das Cerejas – Algumas Anotações sobre Música e Revolução”, os musicólogos Manuel Deniz Silva e Pedro Rodrigues escreveram sobre Violeta Parra, exemplo do “som contagioso da revolta”:
A música pode vir antes da revolução. Porque pode ser ferramenta da revolta futura. Violeta Parra, cantora, compositora, pintora, ligou a sua música à revolução de uma forma particular – com a sua voz e a sua guitarra mergulhou a canção-testemunho e a canção popular da América do Sul num caldo de revolta. Em 1973, ela já se tinha suicidado, mas as suas canções participaram (pela voz de outros) na denúncia do terror do golpe de estado e da ditadura de Pinochet no Chile. Inspirou muitos músicos e combatentes da América Latina, deu ânimo a outras vozes para se exprimirem em liberdade e se revoltarem também, gritarem a urgência de outra sociedade. A canção-revolta é contagiante. E Violeta Parra contagiou directa ou indirectamente a música de Milton Nascimento, Chico Buarque, José Mário Branco, José Afonso. E até a de um Tino Flores, quando este canta “um rio de revolta”, que nunca secou ao longo da história, na sua canção Coração Vermelho. Estes contagiaram bandas como os Peste e Sida, os Censurados ou o hip hop político de Chullage. E por aí fora… Todos partilharam, nalgum momento, a urgência presente numa das últimas canções de Zeca Afonso: “a revolução é p’ra já!“.
Artigo de Sofia Roque, para esquerda.net
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