Por: Lucas Fogaça, de Porto Alegre, RS.
Algumas semanas atrás um colega aqui da fábrica me entregou o Manifesto Comunista sugerindo que eu lesse. Conversamos sobre capitalismo, comunismo, União Soviética e outros assuntos. Ao final ele me disse que o comunismo era uma ideia muito bonita, mas que não podia dar certo. Que Karl Marx era um pensador genial, mas que ele não tinha previsto que o ser humano era ruim por natureza, que Marx se iludia com o caráter do ser humano. Em resumo esse amigo disse que o comunismo não era possível porque o ser humano é egoísta e individualista por natureza. Que só pensa em si mesmo e que ninguém quer se sacrificar pelo coletivo. A natureza humana individualista se chocaria com as ideias coletivistas do comunismo de Marx. E que por isso ele apostava em Deus e Jesus Cristo. Que a redenção e a felicidade é com eles. E não com os seres humanos.
Achei muito interessante esta visão. E decidi ler um livro chamado O Marxismo e o Indivíduo de Adam Schaff para conhecer mais o assunto. É pensando neste colega que decidi escrever este texto. Quero desafiar a ideia de que o ser humano é individualista por natureza, ou mesmo que haja uma essência humana absoluta, atemporal.
Todos contra todos e cada um por si
Os inimigos do socialismo defendem uma ideia poderosíssima. A de que a natureza humana é individualista. Que o ser humano, que a essência humana é egoísta. Querem dizer que a sociedade é uma selva. E que como na natureza, na sociedade vence aquele que é o mais forte. Que é todos contra todos e cada um por si. A esmagadora maioria da população está convencida desta ideia. Mesmo gente de esquerda está contagiado por ela. Não se acredita mesmo nos mais elementares projetos coletivos como um movimento social ou grupo político porque o ser humano se corromperia.
Alguns vão ainda mais longe e atacam as ideias comunistas exaltando o individualismo como virtude inerente à iniciativa individual e o livre pensamento. Ou no mínimo consideram um pequeno preço a pagar diante dos horrores que seria uma sociedade construída a partir do coletivismo, invariavelmente destinada à tirania e à servidão. Será? O que é o indivíduo humano? Do que é feito?
O ser humano e a natureza
Assim como as abelhas e os golfinhos, a espécie homo sapiens sapiens (ser humano) é uma espécie que vive coletivamente. Ao contrário dos tubarões ou de algumas serpentes que instintivamente tendem a viver solitariamente em razão de sua própria sobrevivência, seja porque são autossuficientes ou porque são predadores que não necessitam de sócios e não querem dividir a caça, os animais que vivem em grupos se associam, cooperam, porque é uma forma mais útil de sobreviver.
Biologicamente a espécie humana se associa a outros da mesma espécie para em atividade cooperativa sobreviver na natureza. Na busca por encontrar uma “essência” humana, poderíamos portanto no máximo dizer que é do instinto da espécie humana a vida coletiva com outros da mesma espécie. Que isso faz parte das propriedades biológicas essenciais da espécie.
O ser humano é produto da sociedade
Querendo enfrentar a ideia de que o ser humano é individualista, é ruim por natureza, muitos acreditam o contrário: o ser humano é bom por natureza e a sociedade que o corrompe. Usam inclusive como exemplo as propriedades biológicas coletivistas da espécie para fomentar a ideia de que o ser humano em seu estado “puro” é bom. Mas não é bem assim. Em primeiro lugar porque além das propriedades biológicas, a espécie humana possui propriedades sociais que não são imutáveis. Ele não vem ao mundo com ideias inatas, e muito menos ideias morais inatas. Além de que o ser humano não pode ser bom por natureza se o que é bom ou ruim muda.
Depois, porque o ser humano nasce numa determinada sociedade, sob determinadas condições sociais e inter humanas, que ele próprio não escolhe. São elas o resultado de gerações anteriores. Pela língua que possui adquire um determinado sistema de pensar. Pela educação ganha determinados hábitos, costumes, noções de moral etc. E isso acontece ao ser humano de modo tão orgânico que mais tarde não terá sequer consciência de sua gênese e do seu condicionamento. Não conseguindo na maioria das vezes se libertar de tais influências a vida inteira. Nesse condicionamento histórico social é até possível afirmar que há características nacionais do ser humano e mesmo personalidade individual (como ideia de originalidade). Mas não uma essência inata, quase mística, ao indivíduo.
Se na sociedade em que vivemos o individualismo é um dos alicerces ideológicos principais da ordem social, mesmo assim não significa que esta é a natureza humana. Porque o ser humano não é um reflexo automático do meio em que vive. O ser humano é produto da sociedade, é condicionado pela sociedade, mas não um espelho dela. Mesmo na vida coletiva num meio hostil preserva-se algum grau de autonomia individual. Rema-se contra a maré. E fazer isto coletivamente, com quantos mais remadores for, melhor. Porque as ideias são mais fortes se abraçadas por milhões.
O ser humano é criador da sociedade
O ser humano pode virar o jogo e mudar os valores, as ideias que ele mesmo criou. Porque ele é produto da sociedade e também seu criador. Um ser coletivo realmente individual. Se ele criou valores como o individualismo, ele mesmo pode desfazer estes e criar outros. Enquanto transforma a realidade objetiva – natureza e sociedade – cria as suas condições de existência e transforma a si próprio. Um verdadeiro processo de autocriação baseado na atividade consciente. O ser humano faz da sua atividade o objeto de sua vontade.
Um por todos e todos por um
Estupro coletivo, bombas químicas e armas nucleares. Destruição de alimentos diante da fome de milhares. Assassinatos e violência à mulher. Trapaça e intriga entre semelhantes. Guerras, tortura e ódio entre as pessoas. São fatos que parecem colaborar com esta versão da natureza humana individualista e cruel. Desse ponto de vista poderia ser correto dizer que a sociedade corrompida corrompe o ser humano.
Mas todos esses fatos são na verdade expressões de uma sociedade humana doente e decadente. É isso que o capitalismo está fazendo com a humanidade. Para preservar a ordem social existente e seus privilégios como classe dominante, os capitalistas estão dispostos a tudo. Inclusive levar a existência humana ao colapso. Dizem que o ser humano é individualista por natureza quando na verdade são eles mesmo que difundem o individualismo para semear a discórdia e a desconfiança e impedir a formação de uma consciência de classe entre os trabalhadores. Além de que há milhares de bons exemplos também: em 2010 33 mineiros chilenos ficaram 70 dias presos em função de um desabamento. Mesmo confinados em péssimas condições, a escolha de quem sairia primeiro da mina de San José atendia a critérios nada individualistas: primeiro os mais debilitados, em piores condições de saúde.
Não, nada disso. O ser humano não é individualista, egoísta e corrupto por natureza. Se os capitalistas dizem todos contra todos e cada um por si, nós comunistas devemos dizer à classe trabalhadora e ao povo: um por todos e todos por um.
Os comunistas apostam até a última gota no ser humano
O ser humano criou todos os valores e ideologias e tudo pode mudar. O ser humano é senhor e não servo. Devemos enfrentar todas ideias que humilham, subjugam e desprezam o ser humano e a sua existência. Os comunistas depositam até a última gota de sua esperança de transformação no ser humano, a partir do ser humano e para o ser humano.
Quando porém um ser humano explora outra ser humano, oprime outro ser humano, tortura e humilha, nós tomamos lado. Responsabilizamos a classe burguesa, seus líderes e indivíduos pelo rumo trágico que a existência humana está tomando. Mas desafiamos a ordem social com a mais profunda convicção na humanidade. Libertos da propriedade privada, do Estado e das instituições capitalistas, recomeçaremos.
Quando pela primeira vez na história, cem anos atrás, os trabalhadores da Rússia começaram a construir uma nova sociedade, esta experiência foi interrompida, traída e degenerada por ideologias burguesas. E o stalinismo, chefe da contrarrevolução dentro da União Soviética, contaminado inclusive pelo individualismo, passou a defender seus próprios privilégios individuais em detrimento da coletividade.
Admitimos portanto que numa fase inicial da sociedade socialista permanecerão muitos hábitos individualistas, egoístas e violentos. Por isso existe o estado e o controle social do coletivo sobre o individual. Somente com um longo desenvolvimento humano, que durará um tempo impossível de prever, é que o controle estatal poderá ser retirado e a sociedade poderá ser realmente livre. Ou seja, comunista.
É porém inquestionável para nós que derrubar o capitalismo será o primeiro grande passo para nos livrar da dominação do ser humano pelo ser humano que tem sua expressão concreta hoje na dominação dos capitalistas sobre os trabalhadores.
E nesse processo de construção de uma nova sociedade construiremos a nós mesmos, novos seres humanos. A existência será fundada numa ordem social superior com novos valores. Que primem pela verdadeira realização do ser humano. A promessa comunista que os nossos inimigos não podem e nem se atrevem a fazer é que é possível acabar com a guerra, a fome, a miséria, a traição e a opressão. Que o individualismo ficará para trás e haverá individualidade em abundância. Que é possível um reino de paz e felicidade aqui na terra e não no ceu. Digo à este colega da fábrica, vamos juntos companheiro. Vamos remar juntos contra a maré!
Imagem: mural de Diego Rivera chamado “o Homem controlando o universo”.
* Muitas frases, exemplos e ideias são de autoria de Marx, Engels ou de Adam Schaff. Pelo caráter e público do trabalho, optei por não usar do recurso de citação.
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