Por: Henrique Oliveira, de Salvador, BA
Na tarde da segunda-feira (23), a turista espanhola Maria Esperanza Jimenez, 67 anos, foi baleada no pescoço e morreu dentro de um carro que fazia turismo na favela da Rocinha, quando o veículo supostamente furou um bloqueio policial. No carro ainda estavam o irmão e a cunhada da turista. O motorista disse que não viu nenhum bloqueio no momento em que passou pelos PMs. Nesse mesmo dia, pela manhã, um confronto entre Policiais Militares e Traficantes tinha deixado dois policiais e um suspeito feridos.
E como estamos acompanhando, desde o mês de setembro, se abriu uma disputa pelo controle do tráfico de drogas e pela exploração de serviços na favela da Rocinha, após um racha dentro do grupo Amigos Dos Amigos – ADA – entre os bandos liderados pelo traficante Nem, que se encontra em um presídio federal e o seu ex-segurança, Rogério 157. O ponto alto da disputa aconteceu no dia 17 de Setembro, quando traficantes do ADA de outras favelas do Rio de Janeirose uniram para expulsar Rogério 157 da Rocinha e retomar o controle que estava sendo perdido.
O Tenente da Polícia Militar que efetuou o disparo que atingiu a turista disse à Corregedoria da PM que não queria acertar o carro. No relato do policial, o carro furou o bloqueio e que para alertar os ocupantes do carro, o mesmo teria atirado para o chão. Só que o tiro acertou o vidro traseiro do carro e pegou no pescoço de Maria Esperanza, o que demonstra que dificilmente esse tiro foi para o chão.
A Corregedoria da Polícia Militar determinou a prisão em flagrante dos dois soldados que efetuaram os disparos, o Tenente que atirou e matou a espanhola, e de outro soldado que atirou a esmo. A nota divulgada dizia que casos como esses ocorridos na Rocinha ferem os procedimentos estabelecidos pelo Manual de Abordagem, e que o Manual ensina aos policiais que a recusa de um veículo em obedecer a ordem de parada não autoriza o disparo de arma de fogo, mas sim uma perseguição com o objetivo de, se possível, fazer um bloqueio e forçar o carro a parar.
Mas não adianta apenas a Polícia e os especialistas em segurança pública dizerem que houve um erro do PMs, porque o que esse fato indica para nós, é que os policiais atiram sim em situações em que o uso da força não é necessário, e em um furo de bloqueio não é a primeira vez.
No ano passado, no estado de São Paulo, o jovem Júlio César Espinoza voltava de um bico que fazia de garçom em um Buffet e, às 3h da madrugada, desviou de um bloqueio policial, foi perseguido e assassinado. O carro foi atingido por 16 tiros, nove disparados por Policiais Militares e setes por Guardas Civis Metropolitanos. No boletim de ocorrência registrado pelos PMs foi dito que o jovem atirou nos policiais, e que dentro do carro foi encontrado uma arma e um pó branco, o que foi contestado por parentes e amigos. Segundo os pais da vítima, o que teria motivado a furar uma blitz da polícia era o fato de o jovem estar com os documentos do carro em condição irregular.
Os policiais atiram em carros que furam bloqueios, não porque a situação oferece perigo à vida dos policiais e a terceiros, mas sim porque os policiais veem a sua autoridade abalada. Como uma pessoa não obedece uma ordem de parada? Então, leva bala. E outro ponto, nós não estamos falando de um desvio de conduta, mas sim de uma prática sistemática da Polícia mais violenta do mundo. Em 2013, a maioria da 7ª Turma do Tribunal Federal da 4ª Região negou o pedido de apelação de um policial rodoviário federal condenado a três anos de prisão após atirar contra um carro que furou a barreira de fiscalização numa rodovia do Rio Grande do Sul. Os desembargadores entenderam que não era legítimo o uso da arma de fogo contra um veículo que desrespeitasse o bloqueio policial em via pública, a não ser que este representasse um risco imediato de morte ou lesão grave aos agentes de segurança pública e a terceiros. Então, não configura legítima defesa.
É preciso atentarmos para a questão territorial nesse fato na Rocinha, pois o carro no qual estava a turista era um Fiat Fremont, que não é considerado popular, o que poderia indicar uma determinada condição social dos seus ocupantes, mas mesmo assim o PM atirou. E atirou porque estava num território em que o poder policial é praticamente ilimitado, e atirar e matar pessoas a esmo nesses locais é autorizado aos policiais brasileiros. Quantos não são os casos de pessoas desarmadas que são executadas por Policiais Militares, de crianças como Eduardo de Jesus de 10 anos, no Complexo do Alemão, atingido na cabeça enquanto brincava na porta de casa, cujos PMs estavam a 5 metros de distância, e as investigações concluíram que os policiais não foram responsáveis pela sua morte, pois teriam agido em legítima defesa? Ou, então, o adolescente Jhonata Dalber, do Morro do Borel, que foi morto por estar com um saco de pipoca nas mãos e este teria sido confundido com um saco com drogas? As favelas são espaços sociais de exceção, lá dentro nenhum tipo de direito básico é garantido. Saúde, educação, moradia e a vida são negados, violados constantemente e sistematicamente.
A morte da turista espanhola repercutiu na imprensa internacional, o jornal espanhol EL País relatou que a vítima era natural de El Puerto de Santa Maria, e que o consulado espanhol no Rio de Janeiro já tinha dado recomendações aos turistas sobre o aumento da violência nas favelas da cidade. O El Mundo destacou que a área do ocorrido era perigosa, com tiroteios diários, mas que mesmo assim os turistas se arriscam em conhecer o local. O jornal inglês The Guardian destacou que a morte da espanhola coloca em evidência a situação deteriorante da violência no Rio de Janeiro, mesmo após um mês que o exército foi enviado para a favela da Rocinha.
A imprensa internacional, então, ficou sabendo que a polícia brasileira atira nas pessoas em situações que não oferecem real perigo à vida dos seus agentes, mas imagina quando eles souberem que em 2015 os Policiais Militares do Rio de Janeiro dispararam mais de cem tiros em um carro com cinco jovens negros dentro na região de Costa Barros, e que Cláudia Ferreira da Silva foi baleada por PMs, colocada na mala da viatura e não no banco de trás, e no meio do caminho a mala se abriu e ela foi arrastada por metros no asfalto. Ou que, de uma vez só, a PM baiana matou 12 jovens negros na chacina do Cabula, com claros indícios de execução como tiros de cima para baixo de curta distância, nas palmas das mãos e antebraço, indicando defesa, e que foram absolvidos por uma juíza de forma sumária. E que a PM sequestrou e desapareceu com Amarildo no Rio de Janeiro e o adolescente Davi Fiúza aqui em Salvador. Ou que, ainda em Salvador, a cidade que não salva a dor, Policiais Militares sequestraram Geovane Mascarenhas e o decapitou dentro da sede do batalhão da Rondesp, mutilaram seus órgãos genitais e tatuagem para dificultar o reconhecimento, esquartejaram e carbonizaram partes do seu corpo. Imagina quando essa imprensa descobrir e acompanhar o que faz a nossa polícia, que repercussão isso pode ter?
A delegada da Delegacia Especial de Apoio ao Turismo afirmou que os sócios da agência de turismo responsável por passeios nas favelas serão indiciados por omissão de informação de segurança ao consumidor. A delegada Valéria Aragão diz que os turistas não foram informados pela situação de violência na Rocinha. Quer dizer, o policial atira e mata, e os donos da agência de turismo também são responsáveis, piada.
O turismo nas favelas do Rio de Janeiro começou a existir quando os investimentos em segurança pública aumentaram a sensação de segurança em algumas partes da cidade, com a realização dos grandes eventos como Olimpíadas e Copa do Mundo, a partir da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora – UPP – em favelas próximas a zonas turísticas da cidade. Em 2015, o jornal O Dia publicou uma matéria sobre uma tese de pós doutorado de um norte americano na London School of Economics, argumentando que o Rio de Janeiro era a cidade que mais aproveitava o turismo nas favelas.
Em 2011, no jornal O Globo saiu outra matéria sobre como a implantação de Unidades de Polícia Pacificadora estavam estimulando o potencial turístico na região do Leme, que após seis meses de existência da UPP, os moradores das favelas do Chapéu Mangueira e Babilônia organizaram um polo turístico comunitário por meio de uma trilha em região de mata atlântica. O turismo na favela atrai visitantes por causa da sua localização geográfica, permitindo uma ampla visão de paisagens da cidade carioca.
Só que diferentemente da delegada que quer culpar os donos da agência de turismo pela morte da espanhola, devemos fazer outra crítica a esse tipo de turismo, que parece romantizar e tratar as favelas como um lugar exótico para os gringos. Nos lembra a exposição dos “Zoológicos Humanos” que os europeus fizeram com os africanos negros durante o Colonialismo no século XIX. Os turistas vão à favela para ter contato com o outro e sua forma de viver, como se estivessem nas savanas africanas, quando deveriam ficar espantados e inquietos com como essa população sobrevive naquelas condições, nesse país brutalmente desigual.
A grande questão envolvendo o assassinato de Maria Esperanza, que mobilizou o debate público sobre os procedimentos legais de abordagem policial, é que dessa vez a Polícia Militar não teve como construir um cenário para sustentar a tese da legítima defesa, apresentando armas e drogas, o que fez com que a Corregedoria da PM os prendesse em flagrante, diferentemente de outros casos, em que a Polícia manda as pessoas irem registrar queixa e denúncia formal, que nós sabemos, muitas vezes não é feito, pois a população tem medo de represália, além do próprio desinteresse das Corregedorias em fazer o controle da atividade policial. E nem a Polícia Civil teve tempo de consultar os arquivos criminais, e buscar a ficha criminal da vítima, para assim produzir o criminoso, alegando que a mesma já tinha ‘passagem’, sendo assim, uma vida matável. E que muitas vezes nem precisa ter antecedentes, para ser descartável. O que fica de recado é que os PMs precisam atirar e matar as ‘pessoas certas’, pobres e negras, que cuja mortes não causam repercussão nacional, quanto mais mundial!
Henrique Oliveira é graduado em História, mestrando em História Social pela UFBA, colaborador da Revista Rever e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/Bahia.
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