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TEORIA

Concepções pedagógicas e neoliberalismo no Brasil

Por Helena Maria Martins, Professora da rede municipal de São Paulo e militante do MAIS

Em História das ideias pedagógicas no Brasil, Dermeval Saviani retoma o processo que caracterizou um período relativamente fértil no surgimento de ideias inovadoras para uma educação mais democrática, num Brasil que vivenciava o fim da ditadura militar. Essa profusão de propostas terminou por refluir, durante o período de ascenso do neoliberalismo na década de 1990.

As correntes pedagógicas contra-hegemônicas mais marcantes dos anos 1980, foram: A proposta de Paulo Freire, baseada no saber popular e na autonomia, que possuía também influências anarquistas (pedagogia da prática); A pedagogia crítico-social (Antonio Carlos Libâneo), que realizava uma crítica às desigualdades sociais, embora com uma visão essencialmente liberal; E, também, a pedagogia histórico-crítica com Saviani, de influência marxista e, como o próprio autor afirma, voltada para o aprofundamento da compreensão do materialismo histórico (SAVIANI, 2010).

As pedagogias contra-hegemônicas não conseguiram alcançar os resultados esperados. A hegemonia do neoliberalismo e pós-modernismo na década de 1990 fez refluir a adesão a essas pedagogias. Mais que isso, houve uma transmutação daquelas propostas pedagógicas ditas críticas, que passaram a alinhar-se com o quadro hegemônico político e cultural. Exemplos disso são: a formulação da Escola Cidadã pelo Instituto Paulo Freire (articulando o Relatório Jacques Delors, Edgar Morin e Paulo Freire), a proposta de Esther Pilar Grossi denominada “pós-construtivismo” (aliando Piaget, Wallon, Vigotski e Paulo Freire) e a Escola Plural, descendente das “pedagogias da prática” (referendando os quatro pilares da educação do Relatório Jacques Delors) [MARSIGLIA, sem data, ver referências bibliográficas ao final do artigo]

Essa reinvenção das ideias pedagógicas no cenário de consolidação neoliberal no Brasil, firmou-se como a expressão do pensamento pós-moderno na educação, encontrando sua expressão mais bem acabada na pedagogia construtivista e demais pedagogias, as quais Duarte (2001) tem chamado de lemas do aprender a aprender.

A importância de se retomar essa discussão dentro das correntes de esquerda é fundamental (algumas já o fazem há algum tempo) na medida em que se pode avançar na  existência de grupos de resistência na educação, que apontem para alternativas pedagógicas coerentes com um programa marxista para a classe trabalhadora.

Digo grupos de resistência no sentido de resistir ao construtivismo e à desvalorização da escola e dos conteúdos de ensino, apontando outra saída pedagógica, que não seja também a da pedagogia tradicional, que se mostrou equivocada para a formação sólida dos conceitos científicos.

Hoje pode-se afirmar que a pedagogia hegemônica, antes representada pelo modelo jesuítico da pedagogia tradicional, que Saviani (1988) caracteriza como intelectualista e enciclopédica, veio sendo substituída, com o desenvolvimento do neoliberalismo e do pensamento pós-moderno, pelo construtivismo, que tem se consolidado como a proposta mais difundida em todo o Brasil.

Na esquerda, muitos defendem o construtivismo, ou alguns aspectos dele. A proposta deste artigo, entretanto, é justamente iniciar o debate no interior do MAIS, sobre qual seria a concepção pedagógica a ser defendida no Brasil pelos socialistas.

Para Duarte (2008), formular a crítica ao construtivismo é parte de um trabalho muito mais amplo, o de realizar a análise crítica da ideologia burguesa no campo educacional. Isso porque, segundo Saviani, desde o movimento escolanovista, há uma tendência em se negar o papel da escola e do professor.

As teorias agregadas ao caldo que constituiu a gênese do construtivismo no Brasil foram a da Escola Nova e a da pedagogia das competências, que, dentre outros pontos, enfatizam um sujeito empreendedor, em alguma medida pragmático e self-employed, desvalorizando implicitamente o conhecimento que o professor ensina aos alunos. Essas ideias são incrementadas a elementos neoliberais quase nunca admitidos como tal (DUARTE, 2001).

[…] a superação das concepções burguesas de educação, tanto na vertente da escola tradicional como na vertente escola-novista, na qual está enraizado o “aprender a aprender”, atualizado e revitalizado pelo construtivismo. O lema “aprender a aprender” é a forma alienada e esvaziada pela qual é captada, no interior do universo ideológico capitalista, a necessidade de superação do caráter estático e unilateral da educação escolar tradicional, com seu verbalismo, seu autoritarismo e seu intelectualismo. A necessidade de superação das formas unilaterais de educação é real, objetivamente criada pelo processo social, mas é preciso distinguir entre a necessidade real e as formas alienadas de proposição de soluções para o problema. O lema “aprender a aprender”, ao contrário de ser um caminho para a superação do problema, isto é, um caminho para uma formação plena dos indivíduos, é um instrumento ideológico da classe dominante para esvaziar a educação escolar destinada à maioria da população enquanto por outro lado, são buscadas formas de aprimoramento da educação das elites (DUARTE, 2001, p. 28)

O construtivismo se constituiu, em sua gênese, a partir de concepções piagetianas(1) sobre o desenvolvimento humano. A proposta de alfabetização da Psicogênese da lingua escrita, de Emília Ferreiro, já é há muito tempo parte do discurso oficial das secretarias de educação brasileiras, sendo um dos pilares das propostas construtivistas e possui sua essência na teoria de Piaget e sua Epistemologia genética.

As questões que se apresentam neste artigo nos colocam alguns desafios: 1) A necessidade de se retomar o debate que Saviani aprofunda já na década de 1980, quando critica as ideias de Althusser sobre educação, para quem a escola tão somente reproduziria os interesses do capital. Esse é um dum debate importante porque, se não se compreende a educação como um espaço de contradição do capitalismo, em que é possível disputa, não faz diferença se discutir concepções pedagógicas; 2) Se sim, ou seja, se a educação é um espaço em disputa, há que se aprofundar o debate acerca de qual a concepção pedagógica que os socialistas revolucionários devem defender rumo a um programa marxista para a educação; 3Em se optando pela realização da crítica radical ao construtivismo como a versão pós-moderna e neoliberal do escolanovismo, é necessário ampliar a discussão com professores e ativistas de esquerda, que, não raro, fazem a defesa do construtivismo e de concepções piagetianas do desenvolvimento infantil.

É um debate nada óbvio, complexo e difícil. Complexo, da mesma forma que analisar fenômenos da realidade sob o neoliberalismo, à luz do materialismo histórico-dialético. Nada óbvio, haja visto que, na década de 1970, também um grande dirigente socialista revolucionário, defensor incondicional do marxismo, Nahuel Moreno, em sua publicação Lógica marxista e ciências modernas, de 1973, reivindicou que o autor de Epistemologia genética (Jean Piaget) pudesse ser comparado a Trotski e suas elaborações sobre a lei do desenvolvimento desigual e combinado.

Sería interesante trazar un paralelo entre esos dos gigantes del pensamiento, que son Trotsky y Piaget. Encontraríamos muchos puntos en común. […] Uno tenía como campo de experimentación nada menos que el mundo, después de haber dirigido, junto con Lenin, el cambio más radical que había conocido la humanidad. El otro, el hombre y todo el conocimiento, desde su nacimiento hasta su madurez. Ignorándose llegaron a la misma teoría (MORENO, 2001).

Nessa mesma obra, Moreno afirma que Piaget era marxista sem o saber. Disse isso a partir de sua leitura sobre a obra do biólogo suíço, concluindo serem as premissas de Piaget as seguintes:

[…] 1) la explicación de todos los fenómenos, incluido el conocimiento, hay que buscarla esencialmente en la praxis, o actividad considerada genética o históricamente como relación entre un todo organizado social e individual, el hombre, con el medio ambiente; 2) el hombre es la continuación, en un nuevo plano y en un cierto sentido, de la vida biológica; por lo tanto tiene muchos elementos, categorías y leyes comunes con ésta, aunque mucho más desarrolladas y modificadas sus formas, como sus resultados […] (MORENO, 2001)

Piaget não considerava o desenvolvimento humano no processo histórico, e sim que a criança se desenvolvia a partir de suas experiências com o meio, considerando suas bases genéticas hereditárias. Em outras palavras, ainda que o desenvolvimento dependesse da experiência interacionista, a inteligência, segundo o autor suíço, era um processo endógeno a priori.

Sua concepção de mente humana era essencialmente estruturalista e baseada nos fundamentos kantianos (SARTÓRIO, 2010), uma visão muito distinta do materialismo histórico-dialético, presente na explicação de Trotsky sobre a lei do desenvolvimento desigual e combinado.

Outro grande problema, que consiste numa contradição para uma compreensão marxista dos fenômenos da realidade, é que a concepção piagetiana de inteligência, com bases biológicas e hereditárias, lhe rendeu o apoio da Fundação Rockefeller(2), conhecida pela promoção de pesquisas que serviam a políticas eugenistas. Foi com esse apoio que Piaget fundou, inclusive, o Centro Internacional de Epistemologia genética em Genebra, na Suíça.

É necessário contextualizar historicamente, entretanto, o enorme prejuízo à ciência e à história causado pelo stalinismo. Certamente, Moreno não tomou conhecimento da obra do psicólogo russo Lev Semeónovich Vigotski(3), que, como muitos autores, tiveram sua obra cerceada pelo regime stalinista.

Vigotski escreve A construção do pensamento e da linguagem, obra em que polemiza com Piaget, à luz do método materialista histórico-dialético, colocando em xeque o modelo biológico de explicação do desenvolvimento humano.

Um dos grandes objetivos de Vigotski foi justamente o de superar o modelo biológico de desenvolvimento humano, e construir uma psicologia fundada na concepção marxista, portanto histórico-social do homem. Na psicologia marxista de Vigotski e seus seguidores está explícita a concepção de que a ontogênese humana não pode ser explicada através da relação biológica entre organismo e meio (DUARTE, 2001)

Para Vigotski, o caráter dialético e sócio-histórico-cultural que possui o desenvolvimento psíquico é um processo muito mais complexo do que supôs Piaget e sua teoria cognitivo-estruturalista.

Não é o objetivo deste artigo, entretanto, se estender nas críticas à epistemologia de Piaget. Contudo, uma vez que a concepção pedagógica de educação brasileira é fortemente influenciada pelo construtivismo, que compreende o desenvolvimento infantil e sua relação com o conhecimento, fundamentalmente pela epistemologia genética piagetiana, isso interfere significativamente para uma concepção distorcida do desenvolvimento humano, que perpetua teorias que de fundo reafirmam a hereditariedade das capacidades intelectuais, desconsiderando, por exemplo, questões de classe. Inclui-se aí, todas as implicações relacionadas a raça, gênero, etnia… Outro grave problema é a desvalorização dos conteúdos de ensino, ou seja, do conhecimento produzido, acumulado e sistematizado ao longo da história da humanidade, que encontra-se nas mãos de uma classe social, a burguesia. Com relação a isso, Saviani há muito vem alertando para a necessidade de que a escola pública deve formar os filhos dos trabalhadores com conceitos científicos. O autor sai em defesa do ensino dos clássicos da filosofia, das ciências e das artes, a fim de propor dominar o que os dominantes dominam, democratizando assim, verdadeiramente, o conhecimento.

O anti-historicismo, outro fundamental ingrediente educacional pós-moderno, tira dos alunos e dos professores as condições de compreender as relações históricas por de trás dos fenômenos que se apresentam na realidade. Outro ponto basilar na atividade da educação, que vem sendo escandalosamente desvalorizada pelas pedagogias do aprender a aprender é a principal força de trabalho que está em jogo: a do professor. Isso significa que também a luta por salários, redução de jornadas, por melhores condições de trabalho, enfim, a luta sindical, só pode ser coerente se atrelada à defesa de uma pedagogia desalienante, tanto para o aluno, quanto para o professor.

Por fim, na tentativa de se contrapor à visão pós-moderna impregnada ao conteúdo de cursos de formação docente e na publicação de materiais didáticos, destaco um trecho de Derisso (2010):

O pensamento pós-moderno (ou agenda pós-moderna) implica uma revisão na concepção de ciência cunhada pela modernidade, na negação de que a razão se constitua no instrumento eficaz para a apreensão da realidade e de que por seu intermédio possamos aspirar ao conhecimento da verdade. Sendo assim, a possibilidade de interferência sobre a realidade humana e social no sentido de transformá-la conscientemente, ou seja, fazer uma revolução, fica praticamente descartada, possibilitando apenas pequenas interferências ou pequenos arranjos (p.52)

O próximo artigo deverá melhor aprofundar a proposta da Pedagogia histórico-crítica para a educação brasileira. Iniciemos as discussões.

Referências bibliográficas para consulta:

DERISSO, J. L. Construtivismo, pós-modernidade e decadência ideológica. In: Formação de professores limites contemporâneos e alternativas necessárias. São Paulo: UNESP, 2010.

DUARTE, N. O debate contemporâneo das teorias pedagógicas. In: Formação de professores limites contemporâneos e alternativas necessárias. São Paulo: UNESP, 2010.

DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da Teoria Vigotskiana. Campinas: Autores Associados, 2001.

MARSIGLIA, A. C. G. Disponível em:

www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe6/anais_vi_cbhe/conteudo/file/367.pdf

MORENO, N. Lógica marxista e ciências modernas. Disponível em https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/08_nm.htm

NOVACK, G. A lei do desenvolvimento desigual e combinado. Disponível em: https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/08_nm.htm

SARTÓRIO, L. A. V. Apontamentos críticos às bases teóricas de Jean Piaget e a sua concepção de educação. Disponível em: http://www.armadacritica.ufc.br/phocadownload/artigo_12_especial.pdf

SAVIANI, D. Escola e Democracia.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2011.

VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

VIGOTSKI, L. S. Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Notas:

(1) -Jean Piaget (1896 – 1980), biólogo suíço, dedicou-se ao estudo do desenvolvimento humano buscando a gênese do conhecimento.  Fundou em Genebra o Centro Internacional de Epistemologia Genética (1955), dedicado a assuntos interdisciplinares. Sua tese para explicar a evolução da conduta cognitiva da infância à idade adulta era de que a evolução mental passaria por quatro estágios, determinados por um modelo genético universal: o estágio sensório-motor, do nascimento a cerca de dois anos de idade; o pré operacional, até os seis ou sete anos; o operacional concreto, até os 12 anos; e o das operações formais prolongando-se até a maturidade. Seus principais trabalhos foram Le Langage et la pensée chez l’enfant (1923), Le Jugement et la raisonnement chez l’enfant (1924) e Études d’Épistemologie Génétique (1957-1973).

(2) – Fundação Rockefeller é uma fundação criada em 1913 nos Estados Unidos da América, que define sua missão como sendo a de promover, no exterior, o estímulo à saúde pública, o ensino, a pesquisa e a filantropia. É caracterizada como associação beneficente e não-governamental, sendo o braço filantrópico dos proprietários da maior fortuna petroleira do mundo, a família Rockefeller.

(3) – Lev Semeónovich Vigotski (1896-1934): psicólogo do desenvolvimento russo, marxista.