Por Lucas Reis da Silva, historiador e bacharel em Direito, Auditor-Fiscal do Trabalho.
Durante dois anos e meio fiz parte do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho. As cenas que caracterizam o trabalho escravo no campo brasileiro são muito parecidas. Mas essa que vou narrar aqui se trata de uma operação realizada em 2014 no sudoeste do Estado do Maranhão, da qual participei.
Eram 11 mulheres e homens, trabalhadores rurais, que em sua maioria chegavam a trabalhar 14, 16 e alguns deles até 18 horas por dia. Isso mesmo. Dezoito horas por dia. Não tinham descanso semanal remunerado, nem os intervalos legalmente previstos para repouso e alimentação ou o intervalo obrigatório entre duas jornadas de trabalho (chamado de intervalo interjornada). Não recebiam salário. Trabalhavam pela parca comida que lhes era entregue para cozinharem em um fogareiro improvisado ao chão de terra, movido à lenha recolhida por eles ali mesmo no pasto onde foram colocados para morar. Antes de cozida, a carne ficava exposta ao sol rodeada de moscas e o restante do alimento ao chão do barraco de lona que mal os abrigava ao dormir. Deixava-os expostos às intempéries, a animais peçonhentos e expunha completamente sua individualidade.
Dormiam todos juntos, mulheres e homens, famílias, casados e solteiros. Ao lado desse barracão onde dormiam, um córrego, utilizado para retirar água para beber e cozinhar e, nesse mesmo mesmo córrego, satisfaziam suas necessidades pessoais. Vacas e cavalos da Fazenda também bebiam dessa mesma água barrenta.Como Auditores-Fiscais do Trabalho, constatamos situação de trabalho escravo contemporâneo com previsão no artigo 149 do Código Penal Brasileiro, por dois motivos: jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho. Isso porque o fato se deu antes da Portaria 1129/2017, publicada essa semana pelo Ministro do Trabalho. Pasmem! Se o Estado Brasileiro se deparasse com essa mesma situação narrada depois da publicação dessa Portaria, não se trataria mais de situação “análoga à de escravo”. O Governo Temer excluiu, com a referida portaria, duas hipóteses de caracterização de escravo no Brasil, justamente aquelas que foram utilizadas para caracterizá-lo na situação narrada acima.
Agora, portanto, com a portaria, só será considerado “trabalho escravo contemporâneo” as situações em que houver trabalho forçado ou restrição à liberdade de locomoção. Para que um trabalhador seja considerado escravo, a partir da Portaria, ele deve ser forçado a trabalhar ou ter seu direito de locomoção restringidos.
O atual estágio do capitalismo periférico brasileiro dá aos patrões o luxo de escravizar sem precisar amarrar os trabalhadores. Com um desemprego que bate as cifras dos 14 milhões, o empregador se dá ao luxo de escolher entre uma massa de miseráveis que esperam à sua porteira para trabalhar para ele e enriquecê-lo em troca de favores e de suas migalhas. Mas não é porque o atual estágio do sistema capitalista empresta ao empregador mais esse privilégio (o de escravizar sem chicotear) que o trabalho em condições degradantes ou em jornada exaustiva deva deixar de ser considerado trabalho escravo. Não! Muito pelo contrário. É nesse momento que as leis e as normas devem servir para proteger ainda mais os trabalhadores que perdem empregos, salário e condições dignas de trabalho e de vida. O que essa portaria faz é estimular a utilização de trabalho degradante no Brasil ao retirar a “degradância” e a “jornada exaustiva” dos elementos caracterizadores do “trabalho escravo contemporâneo”.
E o governo o faz de forma autoritária, como lhe é de praxe. Por portaria, altera previsão expressa na letra da lei, no artigo 149 do Código Penal. Em 20 anos, mais de 55 mil trabalhadores foram resgatados de condições de trabalho escravo contemporâneo no campo e nas cidades brasileiras com fundamento no artigo a cima.
Mas ela não para por aí. A portaria também introduz outros requisitos para a caracterização do trabalho escravo que funcionam no sentido de dificultá-la. Por exemplo, exige a lavratura de Boletim de Ocorrência por autoria da policial que tenha participado da fiscalização. Acontece que, na maioria das vezes, a caracterização do trabalho escravo se dá em inspeções de rotina dos auditores fiscais em que não há acompanhamento policial. Nesse caso, a exigência de lavratura de Boletim de Ocorrência introduz mais um requisito que a dificultar o processo de caracterização do trabalho escravo já que ela só poderá se dar na minoria delas, ou seja, naquelas fiscalizações em que há acompanhamento policial.
Além disso, há alteração no Processo de divulgação da “Lista Suja” do Trabalho Escravo. Trata-se de um cadastro de empregadores flagrados utilizando mao-de-obra escrava. Atualmente, a lista suja é minuciosamente elaborada por uma equipe técnica de auditores-fiscais do trabalho. A Portaria altera a competência de divulgação da Lista Suja e passa a atribuir à pessoa do Ministro do Trabalho a competência para divulga-la e para incluir empregadores na lista. Isso é um absurdo pois submete um importante instrumento do combate ao trabalho escravo à pessoa às inclinações políticas do Ministro do Trabalho.
Estímulo à utilização de mão-de-obra escrava ao eliminar a “jornada exaustiva” e a “degradância” do rol dos elementos caracterizados do trabalho escravo contemporâneo, o Ministro do Trabalho, através dessa Portaria, realiza o maior ataque à fiscalização do Trabalho Escravo que o Brasil já experimentou. É o governo temer mostrando a que veio!
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