Por: PH Albuquerque, mestre em Psicologia pela UFC
Na Bruzundanga dos absurdos diários, digo Brasil, um dos últimos absurdos aconteceu em Brasília-DF (o que mais esperar de lá?), com a decisão liminar do juiz federal Waldemar Candido de Carvalho, na ação que tornou réu o Conselho Federal de Psicologia (CFP).
A ação visou suspender os efeitos da resolução 01/1999 do CFP, na qual Rosangela Alves Justino e outros autores alegavam que tal resolução constitui um ato de censura, impedindo os psicólogos de desenvolverem estudos, atendimentos e pesquisas relacionadas às práticas homoeróticas.
Entretanto, qualquer pessoa com mínimo de bom senso (algo que está em falta), ao ler tal resolução, perceberá que a mesma não constitui nenhum ato de censura, mas sim uma normativa acerca da atuação dos psicólogos no que diz respeito a questões relacionadas à orientação sexual. De um modo geral, a resolução contraria qualquer prática profissional que corrobore com discriminação, preconceito, patologização de práticas homoeróticas e proposição de tratamento de suposta cura das homossexualidades. Algo tão óbvio que faz até sentido questionar porque é necessária uma resolução para isso.
Entretanto, quando um grupo de psicólogos (oi?) busca suspender os efeitos dessa resolução é que fica mais clara a necessidade da mesma. O que é objetivado em suspender os efeitos de tal resolução? Acerca de quais práticas efetuadas tal grupo alega censura do CFP? Quais seus interesses? A quem se coadunam?
Por mais que a liminar, inclusive, rejeite a ideia de “cura gay”, atentar para tais perguntas nos faz pensar que a intenção de tal grupo em suspender os efeitos da resolução 01/1999-CFP se baseia justamente na desqualificação da homossexualidade. Mas isso não é feito de forma tão direta. Eles sabem usar as armas ao seu favor.
Um fato curioso ao se deparar com o texto da liminar do referido juiz é que alguns argumentos utilizados pela resolução do CFP também são utilizados para embasar a decisão. Um exemplo é o fato de ambos recorrerem ao posicionamento da Organização Mundial de Saúde, que, desde 1990, nega a possibilidade da homossexualidade ser considerada condição patológica. Ambos recorrem a um determinado status de cientificidade de um órgão da saúde para legislar uma atuação profissional.
A resolução, inclusive, permanece, tanto que é afirmado textualmente na liminar que “a norma em questão [resolução 01/1999], em linhas gerais, não ofende os princípios maiores da Constituição”.
Então, tanto a resolução quanto a decisão limitar falam da mesma coisa? Não. Categoricamente, não! E não se pode ser ingênuo ao pensar que a tal liminar tem efeitos restritos e está bem intencionada ao inviabilizar possíveis censuras na atuação profissional do psicólogo. É necessário atentar para as sutilezas e os precedentes que se abrem em tal limitar. O que ela aponta é que uma má interpretação da resolução 01/1999 pode levar ao impedimento do psicólogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionado a questões de orientação sexual ou (re)orientação sexual, fazendo com que a resolução possa ser considerada uma ato normativo infraconstitucional.
E são nos momentos finais do texto da decisão liminar que aparece o termo (re)orientação sexual, algo que, numa estratégia retórica, soa como irrelevante. Mas, o que seria uma reorientação sexual, até agora, eu não sei. Tenho até algumas suspeitas. O que está pressuposto quando se admite a possibilidade de uma (re)orientação sexual? Quando se intenciona reorientar algo, também não está alocada uma ideia de que algo está desorientado? Que discursos legitimam uma suposta prática de reorientação sexual? Que critérios são utilizados para definir que algo está desorientado no que diz respeito às práticas homoeróticas?
Penso que todas essas questões não conseguem ser respondidas somente através do recurso jurídico, mas é através dele que o preconceito, a LGBTfobia e a intolerância se perpetuam, travestidos de “liberdade de expressão”. Supostamente, é em nome da lei e da constituição que tudo isso está sendo feito. Poderíamos passar horas até pensando em quais interesses tem um juiz em legislar a profissão do psicólogo muito mais do que o próprio CFP.
Mas, não acho que deva ser por uma análise isolada figurada em tais grupos que o debate deva prosseguir, pois não se trata de um contexto isolado e restrito à atuação da Psicologia. Não penso que essa discussão esteja muito distante, por exemplo, de uma análise da decisão de um outro juiz, Leandro Jorge Biteencourt Cano, de São Paulo, que absolveu um pai que espancou a filha quando descobriu que a mesma havia perdido a virgindade, embasando tal decisão afirmando que o espancamento foi apenas de uma medida corretiva.
Esses fatos não são pontuais. Eles se inserem numa conjuntura muito maior, que é a do avanço do neoconservadorismo no Brasil, conservadorismo esse que se utiliza de vários meios para se propagar, que se utiliza das brechas da constituição, que aciona a tal “liberdade de expressão”, que aciona o discurso científico como forma de legitimar o preconceito e manutenção de privilégios, tudo “dentro da lei e da ciência”.
Nesses últimos dias, muito tem se batido na tecla de que não há cura para o que não é doença. Mas, penso que é necessário avançar na luta e mudar as armas em alguns momentos, por mais que, às vezes, ainda seja necessário afirmar o óbvio. É necessário confrontar a ideia de uma suposta doença quando ela for acionada na suposta “cura gay” e derivados, podendo-se até se utilizar do status de legitimidade do discurso científico. Mas, somente isso não basta. Esse status de legitimidade fora inclusive acionado na decisão liminar da ação contra o CFP para justificar de que não é “cura gay” que se trata. É necessário ser atento e cuidadoso com a munição que se usa.
É necessário combater a intolerância, mas sem a fé ingênua na “iluminação” de que a informação e o conhecimento farão com que alguns grupos, ou pessoas deixem de ser intolerantes e preconceituosos. Um neofascista não necessariamente vai deixar de ser após assistir “aulas de história”. É necessário estar atento às novas configurações, práticas e discursos de LGBTfobia para que se possa recorrer também ao discurso jurídico, a fim de criminalizar tais práticas e discursos. O uso do direito deve ser feito de forma estratégica, e não pra cristalizar uma suposta identidade sexual, corroborando com binarismos homem x mulher, homossexual x heterossexual, natural x cultural, dentre tantos outros. Mas esse uso estratégico também não garante um lugar seguro por onde transitar. Insistir totalmente no viés legalista da criminalização de certas práticas e discursos também pode ser outra forma de judicializar a vida e corroborar com essa ditadura do judiciário.
É necessário pensar todos esses confrontos através de estratégias políticas de enfrentamento. E, como disse Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”. E numa guerra, penso que é necessário assumir lado. Não para polarizar ou estratificar as disputas – embora esses sejam alguns dos possíveis efeitos-, mas para fazer valer algumas lutas e bandeiras, para posicionar melhor o jogo de interesses e saber jogar com eles, até que algumas armas se tornem descartáveis e seja necessária a invenção de outras. Parafraseando Marcelino Freire, “eu não sou da paz”. Não sou tão otimista e não me inclino a pensar que a tal guerra cessará. Algumas disputas, talvez sim, mas a guerra política certamente assumirá outras feições. Por isso, penso que é necessário lutar, mas, antes de tudo, saber perspectivar essa luta, atentar para o que se luta, contra o que e junto a quem. E, por hora, eu fico com as minorias.
Comentários