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EDITORIAL

A rebelião catalã

Por Miguel Salas, Sindicalista e membro do conselho editorial de Sin Permiso

Publicado originalmente no site Sin Permiso

Tradução: Rodrigo Claudio

Há uma longa história de lutas sociais e políticas na Catalunha. No século 19, Barcelona era conhecida como a cidade que havia erguido mais barricadas na Europa. Durante o século XX, deu inúmeras provas de seu espírito rebelde, republicano e revolucionário contra a arbitrariedade, as desigualdades sociais e, em geral, contra toda opressão. Foi central na luta contra o franquismo e conseguiu que uma candidatura municipalista surgida dos movimentos sociais ocupe a prefeitura. Esse fluxo acumulado e por muito tempo contido agora convergiu nesta rebelião democrática e cidadã que não está disposta a aceitar a repressão do Estado nem que se destruam suas instituições, que olha para o futuro porque quer exercer sua soberania, decidir o que quer ser, e não que outros o imponham, venha de fora ou de dentro. E a rebelião não se limitou a Barcelona, foi toda a Catalunha que reagiu à repressão e também teve a solidariedade de muitas cidades na Espanha.

Desde que se convocou o referendo para 1 de outubro e o governo do PP entrou na justiça para impedi-lo, a tensão aumentou e na quarta-feira, 20 de setembro, deu um salto qualitativo. A Guarda Civil organizou uma ofensiva impressionante para investigar diferentes centros oficiais da Generalitat( governo da Catalunha) e as pessoas disseram “basta!”. O alerta funcionou rapidamente, não demorou muito tempo do momento em que os guardas civis entraram nas instalações oficiais até que centenas de pessoas começassem a se concentrar nos portões. O Ministério da Economia, localizado na confluência entre Rambla de Catalunya e Gran Vía, tornou-se o centro de concentração. À medida que as horas passavam, mais pessoas se reuniam. Quando alguns tiveram que deixar a concentração outros apareceram. As pessoas vieram dos bairros mais remotos e em torno de Barcelona para expressar sua indignação, alimentados com tanta injustiça. Se cantava  Els Segadors ( hino oficial da Catalunha), e parecia que todos gritavam mais alto quando o hino diz “bon cop de falç, bon cop de falç” (bom golpe de foice), eles gritaram “votar, votar”, porque o protesto também significava a vontade de não ceder, continuar; a “independência” foi cantada, a maneira mais popular de exigir uma república na Catalunha e, acima de tudo, crescia a confiança na força do povo mobilizado. A guarda municipal estimou que havia cerca de 40.000 pessoas no momento de maior presença e muitos outros milhares que passaram o dia todo. Porque o que começou às 9 da manhã terminou na madrugada, com as pessoas fazendo um corredor para que os esquadrões pudessem ajudar os guardas civis a sair do prédio. Mais de 12 horas foram cercadas por milhares de pessoas, foi a vontade de um povo defender suas instituições e protestar contra a injusta repressão do governo Rajoy.

O protesto também ocorreu em outras partes da cidade. Na Via Laietana, a Guarda Civil penetrou nos escritórios do Ministérios dos negócios exteriores. Depois de algumas dúzias de pessoas cercaram a entrada. Um fato foi muito significativo, é que, desde a CCOO( central sindical), a sede da central está bem ao lado, organizou a presença de sindicalistas que se juntaram ao protesto. A prefeita, Ada Colau, fez uma declaração pedindo mobilização e denunciando a repressão. Espontaneamente, muitas pessoas chegaram à Plaza Sant Jaume, mas a maior parte dos manifestantes concentrou-se na Rambla Catalunya com a Gran Vía. O dia passou em uma atmosfera festiva, de exigências, muita irritação, mas pacífica, “nem um cristal foi quebrado”, diziam, mas também com a convicção de que houve um ponto de viragem, de onde não haverá volta.

Ilegalidades

O dia terminou com 41 registros de ocorrência e 14 detidos, altos cargos de diferentes ministérios da Generalitat ( Governo da Catalunha) e a diretoria da empresa TSystems. O objetivo da Guarda Civil consistiu em deter daqueles que consideraram que estavam por trás da organização do referendo no campo econômico, gestão das comunicações, censos, etc. e não se importou em ignorar sua própria legalidade para fazê-lo. Algumas pessoas foram detidas no meio da rua, cercadas por vários carros da polícia ou camuflados, outras pessoas já eram esperadas na porta de suas casas, como se fossem delinquentes. Houve clara intenção de humilhá-las, por exemplo, o juiz tomou seus depoimentos mantendo-os algemados. E, como foi denunciado, até o início da operação, o Tribunal de Instrução nº 13 foi preparado, provavelmente em colaboração entre o Ministério do Interior e da Justiça ou o Judiciário. Viva a independência da justiça!

Uma das ilegalidades mais flagrantes consistiu na tentativa policial de entrar nas instalações do CUP( Candidaturas da Unidade Popular – Partido de esquerda e independentista). Eles apareceram, sem uma ordem judicial, como se o estado de exceção fosse a normalidade, não foi permitido a sua entrada e, como em outros lugares, apareceram milhares de pessoas que evitaram a ação policial. Não sabemos até onde pretendia chegar a repressão policial e judicial, mas sabemos que a mobilização cidadã impediu que fossem mais longe.

Outras decisões, que não faz muito tempo havíamos dito serem ilegais, o PP as tornava legais, como a multa de 12.000 euros por dia (diariamente!) imposto aos membros da união eleitoral (que serviu de conselho eleitoral) Toda uma série de medidas legais e judiciais que transformaram a legalidade em uma pantomima para proteger as políticas e decisões do Partido Popular.

Na disputa sobre a história dos acontecimentos, o PP e o poder do Estado tentam apresentar suas decisões como defesa da democracia e, além disso, como se estivessem defendendo as liberdades do conjunto dos espanhóis. A experiência desses dias demonstra que sua hipocrisia não tem limite. Suspensão de fato da autonomia catalã, controle econômico de suas finanças, que os esquadrões são dirigidos pelo Ministério do Interior, etc, etc. Mas essas decisões não afetam apenas a Catalunha, proibições de atos por quase toda a Espanha e a decisão ridícula e antidemocrática da Câmara de Deputados de Zaragoza de não permitir o ato convocado por Unidos Podemos. Você não pode colocar as portas no campo, os eventos são chamados, com dificuldades, mas acontecem, as concentrações são realizadas e o que cresce é a sensação de que, em torno do que acontece na Catalunha, está em questão os direitos e as liberdades de todas e todos. Isso foi entendido pelos milhares de pessoas que se concentraram nos mais de 80 atos de protesto ocorridos em toda a Espanha.

O conjunto dessas medidas repressivas põe ainda mais em questão o regime de 78. Se a atual constituição já estava invalidada desde o ponto de vista dos direitos sociais, faz já algum tempo que ninguém acredita que ela possa dar resposta ao que ela mesma diz sobre o direito a um salário digno, a uma moradia digna, a uma saúde e educação dignas; ela foi gravemente ferida quando Zapatero e Rajoy a modificaram para pagar os bancos antes de atender as pessoas, a crise catalã, a suspensão prática da autonomia, o uso partidário da justiça e as forças policiais a deixaram moribunda. Porque todas essas medidas estão sendo tomadas sem nenhum debate parlamentar, sem que a suposta representação popular tenha a oportunidade de dizer alguma coisa. A impunidade foi estabelecida como mecanismo de governo. Por esta razão, a demanda de uma república na Catalunha é uma ajuda para que o conjunto do Estado Espanhol seja empurrado para acabar com o atual regime monárquico.

Votaremos

Na quinta-feira 21, e nos dias seguintes, a mobilização aumentou. Era necessário libertar os detidos e as detidas, mantendo a pressão e estendendo os protestos a toda a Catalunha. A partir das 12 horas, milhares de pessoas se reuniram em frente ao Superior Tribunal de Justiça da Catalunha, no Paseo Lluís Companys, para exigir a libertação dos detidos e não abandoná-lo até que estivessem livres nas ruas. Assim foi. À tarde, em praticamente todas as cidades da Catalunha, houve impressionantes concentrações na Praça da Câmara Municipal. Basta ver algumas fotos para perceber a mudança produzida. Não eram apenas os independentistas e os soberanistas, uma ampla maioria sentia-se preocupada, sentia-se chamada a sair para mostrar seu repúdio. Muitos alunos deixaram as salas de aula, os estudantes universitários reuniram-se em assembleias de massa, a Universidade Central teve a reitoria ocupada e a Praça da Universidade tornou-se um lugar de ação e debate permanente. Como no 15-M, mais uma vez as praças voltaram a estar cheias, a confluência dos esforços de vários movimentos mostra sua capacidade de mudar as coisas. Desta vez queremos decidir!

O Estado já não esconde suas intenções. Pretende-se acusar os líderes das manifestações de motim contra o Estado Espanhol, os diretores das escolas são ameaçados quando colaboram permitindo o uso das instalações em 1º de outubro. Todos os que pretendem votar serão julgados? Milhares de policiais foram deslocados para a Catalunha, vários barcos atracaram em Barcelona e Tarragona para acomodá-los, não podiam suportar a pressão de estar em hotéis perto da população, e os estivadores deram uma lição de solidariedade: decidiram em assembleia que não dariam serviço aos navios ou aos policiais que iriam alojar-se. Viva os estivadores! Os agricultores reuniram em Lleida cerca de 1.000 tratores. Há resposta de todos os setores sociais. O sindicalismo operário também se colocou em movimento. Foram realizadas várias reuniões entre praticamente todos os sindicatos e nelas foram avaliadas diversas possibilidades de resposta à repressão. Omnium e a ANC (Assembléia Nacional da Catalunha) e os sindicatos CCOO e UGT estabeleceram mecanismos de coordenação para responder com ações de cidadãos e trabalhadores para uma nova escalada repressiva. Vão prender os conselheiros da Generalitat (Governo da Catalunha) ou o Presidente? Será que eles se atrevem a suspender a autonomia? A polícia ocupará todas as cidades e povoados? Vão Colocar um policial em cada urna que será colocada em 1 de outubro?

No domingo, 24 de setembro, a mobilização continuou. Um milhão de cédulas foram distribuídas em todo o país, foram criados cartazes, muitos deles impressos em casas particulares e foram pendurados. As praças voltaram a encher, centenas de comícios foram chamados e continuaram durante toda a semana e, apesar das enormes dificuldades, as pessoas estão convencidas de que no dia 1º de outubro se votará. É a conversa habitual entre vizinhos ou bares e lojas: “Você vai votar? Você sabe onde se vota? Você tem a cédula?” Será uma semana intensa e apaixonante.