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OPRESSÕES

Quatro inconsistências jurídicas da decisão do juiz do DF sobre a ‘cura gay’

Brasília – Acontece a 19ª Parada do Orgulho LGBTS em Brasília, cujo o tema é: Respeito é ouro (Elza Fiuza/Agência Brasil)

Por: Gabriel Ferreira, do Rio de Janeiro, RJ

Em decisão liminar, o juiz Waldemar Claudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal de Brasília, determinou ao Conselho Federal de Psicologia que interprete a resolução 01/1999 a fim de “não impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional pertinente à reorientação sexual”. A decisão foi proferida em ação movida por Rozangela Justino, psicóloga, missionária e assessora parlamentar do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM/RJ), apadrinhado por Silas Malafaia.

Sobre essa decisão, pretende-se tecer alguns comentários jurídicos.

1) Não é cabível Ação Popular:

A decisão judicial foi nos autos da Ação Popular, garantida pelo art. 5, LXXIII da CF e regida pela lei nº 4.717/65, que permite a qualquer cidadão acessar a justiça visando a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

A ideia da ação é garantir a todos os cidadãos o zelo pelo patrimônio público, como foi no caso da Ação Popular que suspendeu os aumentos salariais aos vereadores de São Paulo ou, por exemplo, no caso da preservação do patrimônio histórico que seja ameaçado pelo próprio Estado. Não é o caso da resolução 01/1999 do CFP.

A decisão judicial faz um malabarismo para fundamentar o cabimento da decisão, alegando que a resolução pode lesar o patrimônio científico. Considera que a resolução não pode proibir o aprofundamento de estudos científicos relacionados à reorientação sexual, afetando a liberdade científica e, assim, seu patrimônio cultural. Acontece que o objetivo não é produção de artigos ou de estudos, mas do tratamento que não possui comprovação científica. O único patrimônio cultural que pode ser considerado é o fato do Brasil ser um dos primeiros países a proibir essa prática há 18 anos. Isso é um pequeno orgulho no meio de tantas barbaridades.

2) A decisão liminar não cumpre os requisitos legais

A decisão do Juiz foi liminar, que é um tipo de decisão proferida antes do final do processo excepcional à regra da sentença. Para que haja decisão liminar é preciso cumprir dois requisitos: o fumus boni iuris e o periculum in mora. O primeiro é a necessidade de que os fatos e o direito alegado pelo autor sejam verossímeis, ou seja, tenha indícios de que tem direito ao que pede. Já o segundo, é quando há receio de que a demora da decisão judicial cause um dano grave ou de difícil reparação.

É preciso forçar o entendimento para que o pedido liminar cumpra os requisitos. Em primeiro lugar, não há probabilidade de direito no momento em que a resolução obedece o disposto no código de ética dos psicólogos no qual veda que os profissionais induzam a convicções de orientação sexual, exatamente o que é praticado no momento da terapia de reorientação sexual. Segundo, porque não há como pensar um perigo na demora quando a ação visa anular uma resolução de 1999. Obviamente, não há um risco imediato para uma pessoa que já esperou 18 anos, sendo correto que o juiz analise profundamente a questão para proferir a melhor decisão.

3) A Justiça Federal já considerou a resolução constitucional

O tema já foi debatido pela Justiça Federal do Rio de Janeiro na Ação Civil Pública nº 0018794-17.2011.4.02.5101, movida pelo Ministério Público Federal contra o Conselho Federal de Psicologia. Em 2016, o Tribunal julgou improcedente a ação considerando que a homossexualidade não configura como uma doença, não cabendo o seu tratamento. Levou em consideração ainda a rejeição pela Câmara dos Deputados do Projeto de Lei nº 2.177-A de 2003 e do Projeto de Decreto Legislativo nº 1.640/2009 que visavam permitir a terapia de reorientação sexual. A Ação Civil Pública, tipo de ação adequada para este caso, tem efeitos “erga omnes”, não se limita as partes envolvidas e tem consequências para toda a sociedade. Em que pese exista divergências sobre a eficácia nacional, deve-se, no mínimo, considerar esta decisão como precedente.

Segue o trecho do acórdão do Tribunal:

“ A Resolução nº 01/99, do Conselho Federal de Psicologia não promove inovação da ordem jurídico-legal, realizando, tão somente, um balizamento de atuação profissional, impedindo a promoção de quaisquer tipos de ações que impliquem, direta ou indiretamente, o reforço de uma pecha culturalmente sedimentada na sociedade no sentido de que a homossexualidade consiste em doença, distúrbio, transtorno ou perversão. Cabe ao psicólogo prestar auxílio profissional ao indivíduo que a ele se dirige, seja ele homossexual ou não. Propalar a realização de tratamento e cura da homossexualidade contribui com a patologização da orientação sexual do indivíduo, o que não se coaduna com o teor da nota constante na CID-10 F.66, segundo a qual “A orientação sexual por si não deve ser vista como um transtorno”

4) A terapia de reorientação sexual viola a dignidade da pessoa humana

A decisão judicial pretende proteger o direito à liberdade científica e confunde esta com a proteção à dignidade da pessoa humana e, conclui determinando que a resolução seja entendida a fim de não privar os psicólogos de oferecer orientação sexual para os que voluntariamente o procurarem.

Poderíamos pensar que caso alguém voluntariamente procure tratamento não há porque o Estado impedir esse fato, afinal a liberdade individual é um princípio. Entretanto, a liberdade individual e a manifestação de vontade não são absolutas. Por exemplo, no caso dos direitos trabalhistas, a maioria é considerada indisponível, ou seja, mesmo que o trabalhador queira abrir mão, não é possível em razão da proteção que o Estado o confere.

É assim porque a manifestação de vontade pode ser viciada pela realidade social. No caso do trabalhador, por estar em uma relação de desigualdade estrutural em relação ao patrão, a sua vontade pode ser fruto de uma pressão do desemprego e a busca por uma fonte de renda. Para impedir que essa realidade social desigual crie situações onde seres humanos se submetam a relações de trabalho degradantes, o Estado limita essa manifestação de vontade.

Para as LGBTs, a situação é análoga. A manifestação de vontade para modificar sua orientação sexual decorre de uma realidade social LGBTfóbica, na qual a sociedade considera um comportamento desviante e errado. Muitas crianças e adolescentes são forçados a procurar ajuda para superar essa “fase”, provocando traumas que irão acompanhá-los por toda vida. Nesses casos, não há livre manifestação de vontade.

Em razão disso, considerando que a homossexualidade não é uma doença e que o tratamento de reorientação sexual é ineficaz e traumatizante, a permissão para a sua prática é a condenação de milhares de jovens LGBTs a métodos que irão afetar sua afirmação sexual e sua identidade social, violando a sua dignidade enquanto ser humano.

Para além de apresentar inconsistências jurídicas, a decisão do juiz Waldemar expressa uma ideologia LGBTfóbica, compartilhada também pelo Juiz de Jundiaí que impediu a apresentação da peça protagonizada por uma atriz trans e por todos os defensores dos ideais conservadores e preconceituosos. Em tempos de atuação política do poder judiciário, o movimento LGBT tem também como inimigos os conservadores de toga.

Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil