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EDITORIAL

A esquerda depois de Charlottesville

Robert Greene II*  – originalmente publicado na Jacobin Mag em 09/09/2017.

Tradução: Gleice Barros

 

A esquerda não pode se deixar consumir pelo debate sobre antifascistas. Precisamos de um programa proativo e de uma organização paciente.

 

Os acontecimentos de Charlottesville permaneceram nas manchetes nas últimas semanas por diversas razões. Surpresa pela audácia da procissão de tochas dos neonazistas, simpatizantes da Ku Klux Klan e ultradireitistas em uma cidade americana, somada ao assassinato da ativista Heather Heyer durante um contraprotesto, incendiaram a cobertura inicial. A resposta abominável do Presidente Trump à tragédia e às lutas locais contra estátuas dos Confederados a manteve efervescente. E os frequentes debates obtusos sobre os méritos dos antifascistas têm jogado ainda mais oxigênio.

 

Mas seria um erro para a esquerda americana ver isso como um ponto decisivo de mudança histórica ou confundir os portadores de tochas fascistas com uma força de massas. Ao contrário: ser consumida por debates sobre o apoio aos antifascistas em confrontos de rua contra neonazistas faz perder-se no panorama político mais geral.

 

Os momentos pós-Charlottesville exigem mobilizações antirracistas e é encorajador que as organizações de esquerda tenham entrado em ação e visto seus números crescerem. Enfrentando-se contra a ultradireita – particularmente quando feito de forma eficaz e em massa, como em Boston – pode incentivar as pessoas que estão frustradas e desencantadas devido à administração Trump. Mas é preciso se vincular a uma organização política tangível que vá além da defesa e do simbolismo.

 

As discussões sobre o antifascismo também são importantes. Entrevistas feitas com contra-protestantes nas ruas de Charlotterville deixaram claro que estes eram mais do que alegres antifascistas que estavam ali para ajudar. Na verdade, Cornel West lhes agradeceu por terem salvo sua vida.

 

Mas o debate sobre o antifascismo não pode estar no centro da discussão política de esquerda. Estou menos preocupado em ser assassinado por neonazistas do que com a falta de acesso a um sistema de saúde de qualidade. Estou mais preocupado com a restrição dos direitos políticos e o perigo que isso causa à democracia hoje e no futuro do que com a simples dano representado por uma estátua confederada. Isso não é ignorar o esforço em derrubar estátuas confederadas. O que está nos espaços públicos comuns, afinal, precisa representar o tipo de país que queremos que os Estados Unidos sejam. Mas não podemos permitir que este conflito obscureça nossa visão.

 

Resumindo, as lições pós-Charlottesville são as lições que deveríamos ter aprendido mais cedo neste ano. Não podemos simplesmente reagir a Trump e à alt-right. Ser proativos, avançar em um programa claro que possa mobilizar e galvanizar uma faixa ampla do povo – esta deve ser a característica da esquerda americana. Caso contrário, a raiva genuína contra Trump e o partido republicano será perdida e desperdiçaríamos nossa chance de construir um tipo de esquerda com bases amplas que, ao final, é o melhor bastião contra a ultradireita.

 

A política que precisamos

 

A maioria da base da plataforma da esquerda que precisamos já está pronta, esperando para ser usada para estimular debates e ações genuínos na sociedade americana. Dois pontos em particular deveriam encabeçar a agenda da esquerda.

 

O primeiro é a assistência de saúde universal: Medicare para todos. A oferta arbitrária dos republicanos em eliminar a Affordable Care Act [Lei de Saúde Acessível – em tradução livre] mostrou que mesmo uma versão extremamente defeituosa de cobertura “universal” ainda é popular suficiente para evitar tentativas de revogação. Agora, de acordo com recente pesquisa, o apoio popular ao sistema de cobertura dos gastos de saúde pelo governo, financiado pelos impostos (o chamado sistema single-payer – NT) está crescendo. Mesmo democratas centristas, como Kamala Harris, estão declarando apoio. Depois de décadas de luta, a cobertura universal está, senão na esquina, pelo menos em um horizonte próximo.

 

Crucialmente, a demanda pelo Medicare para todos também oferece um sentido para construir laços de solidariedade. Como o escritor de Atlantic, Vann R. Newkirk, recentemente apontou, Martin Luther King Jr. e outros ativistas dos direitos civis viram a cobertura de saúde universal como um componente crítico para sua luta por uma sociedade justa e igualitária. O mesmo é verdade hoje. Entre os movimentos – seja pelas vidas negras ou pelo salário mínimo de quinze dólares [por hora] ou pelo direito dos imigrantes – a assistência médica universal é uma demanda que unifica.

 

Existe outra razão para priorizar o impulsionamento por assistência médica universal. Organizações de ultradireita, como o partido dos trabalhadores tradicionalistas, começaram a fazer propostas a brancos pobres em locais como Appalachia com conversas sobre empregos e acesso à saúde de qualidade. Não podemos permitir que uma tendência a favor da saúde de qualidade ou um argumento a favor de bons empregos, sejam usados como uma porta o fascismo.

 

Direitos eleitorais universais deveriam ser a segunda demanda para qualquer plataforma imediata de esquerda. Nosso sistema político e econômico não pode ser mudado, radicalmente e no longo-prazo, por meio de eleições. Mas um número incontável de pessoas está sendo atingido pelo sistema que existe hoje e um aumento substancial na participação de eleitores é um pré-requisito para vencer em reformas que irão melhorar a vida dessas pessoas em curto prazo.

 

Os conservadores entendem a importância de direitos eleitorais. Em anos recentes, diversos estados controlados pelo partido republicano têm aprovado leis que restringem direitos políticos, seja por meio de requisitos de identificação ou prazos mais curtos para registro de eleitores.  Eles sabem que uma menor e desmoralizada base eleitoral torna mais difícil eleger candidatos de esquerda.

 

No passado, a era Populista dos anos 1890 parou em parte por conta das Leis Jim Crow e as novas constituições estaduais no Sul que limitaram severamente os direitos eleitorais para afro-americanos (e muitos brancos pobres também). Pelo contrário, o surgimento de uma forte base eleitoral no Norte urbanizado, que incluiu sindicalistas e afro-americanos, impulsionada pelo avanço do New Deal,  deu à social democracia na América algumas de suas mais antigas e importantes vitórias – apesar da oposição dos republicanos conservadores e democratas sulistas.

 

Mais recentemente, resultados em nível local comprovaram o poder duradouro de um eleitorado mobilizado. As vitórias de Chokwe Lumumba em Jackson, no pleito de prefeito do Mississipi e Khalid Kamau em South Fulton, na eleição da Câmara de Vereadores, foram possíveis pela presença de ativistas políticos de esquerda em campo. O fato que estas vitórias ocorreram no interior sulista e com larga participação política de afro-americanos também desmente concepções comuns sobre o que a Esquerda aparenta ser e onde pode competir.

 

Lumumba e Kamau reuniram pessoas onde estavam, enquanto também esboçaram uma visão reflexiva. O que me traz a outra parte importante das ferramentas da esquerda pós-Charlottesville: educação política.

 

O debate sobre monumentos e bandeiras confederadas é a oportunidade perfeita para mudar o pensamento americano não apenas sobre o mundo em que vivemos, mas em que tipo de mundo podemos viver se a esquerda tiver a oportunidade de governar. Além de considerar quais estátuas derrubar, poderíamos discutir quais estátuas colocar em seus lugares. Porque não ter mais monumentos, por todo o país, dos batalhões compostos majoritariamente por negros (e também povos indígenas) dos Estados Unidos ou de Harriet Tubman? Mas não devemos apenas falar sobre estátuas e história pública, por mais importantes que sejam para moldar os debates futuros sobre o destino do país.

 

A educação política deve atingir um número superior de americanos, para expandir sua concepção do que é possível e aprender como enxergar o mundo. Educação de esquerda, acima de tudo, deveria ser uma via de mão dupla. Pode ter várias formas – desde um estande em um evento comunitário ou organizar um seminário em uma sede de um sindicato para simplesmente assegurar que organizações socialistas estão abertas ao público, o quanto for possível.

 

Exemplos de educação política, como as que descrevi, já existem. Em meu estado adotivo, Carolina do Sul, o SC Progressive Network oferece anualmente a Escola Modjeska Simkins” para ativistas iniciantes. Nomeado em homenagem a um dos maiores defensores dos direitos humanos, o seminário ensina história assim como táticas de protesto e ativismo. Outro esforço educacional como esse pelo país, são os netos espirituais da Escola Highlander Folk nos anos 1930, 40 e 50.

 

Finalmente, protestos massivos contra a supremacia branca continuarão a ser táticas cruciais para avanço. O ato em Boston no último mês, onde um punhado de neonazistas se depararam com trinta mil contra-protestantes, foi uma enorme vitória para os progressistas e a esquerda e demonstrou o poder da solidariedade profunda e publicamente.

 

Mas tais ações devem também ser atreladas a tipos de programas e táticas políticas acima – usando-as como oportunidade não somente para reunir todos aqueles que se opõem à supremacia branca, mas para falar com as pessoas sobre as formas que a guerra de classes vinda dos poderosos, a de gênero, a discriminação racial e o revanchismo político, atingem virtualmente todos diariamente.

 

Não podemos deixar que narrativas sobre “brancos pobres” determinem o discurso sobre o racismo na sociedade americana. Os supremacistas brancos que marcharam em defesa da estátua de Robert E. Lee incluem muitos brancos ricos e com ensino superior que não teriam escrúpulos ao destruir as vidas dos brancos americanos pobres. Eles também destroem as vidas e aspirações de afro-americanos, judeus, latinos, imigrantes e da comunidade LGBT.

 

Ao desafiar estas narrativas e vinculá-las a demandas concretas para um futuro melhor, podemos alcançar pessoas que se uniram por Charlottesvile mas não sabem o que fazer a seguir.

 

Freando a supremacia branca

 

Estas recomendações não são politicamente populares. Não parecem ser o material da revolução. Mas são materiais que, necessariamente, melhoram as condições políticas para um futuro próximo – que devem ser feitas antes de podermos trabalhar para mudanças mais transformadoras. Educação política, por exemplo, será crucial para ressuscitar o movimento trabalhista, para evitar mais derrotas como as sofridas pelas campanhas de sindicalização do sindicatos dos motoristas da planta da Boeing em Charleston, Carolina do Sul ou da planta da Nissan em Canton, Mississipi.

 

Uma esquerda forte expande a esfera pública, oferece uma concepção mais ampla do que é possível atingir politicamente. Oferece às pessoas uma política não de bode expiatório ou de austeridade, mas uma saúde pública universal e uma atuação democrática. Historicamente, é o antídoto mais poderoso para combater a ultradireita.

 

Mas também devemos lembrar que a vitória nas batalhas de rua não é igual a uma vitória política duradoura.  Nem, por outro lado, ver um parlamento democrata em 2018 ou um democrata na Casa Branca em 2020 é a medida final da vitória. Os problemas da América de Trump são, sem surpresa alguma, bem parecidos com os problemas da América de Obama. E da América de Bush. E da América de Clinton.

 

Uma esquerda efetiva pós-Charlottesville terá que se preocupar, como sempre, com um plano a longo prazo e uma organização paciente. Esta é a única forma que finalmente interromperá o retorno de políticas de ideologia branca – a única ideologia política que sempre esteve realmente no poder na América.

 

* Robert Green II é estudante em PhD na Universidade da Carolina do Sul e editor-revisor para o blog da Sociedade de Historiadores Intelectuais dos Estados Unidos.