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TEORIA

Da Rússia czarista à revolução de 1917 e ao repúdio das dívidas

Por Eric Toussaint

Publicado originalmente no site . Mantivemos o português de Portugal.

Tradução: Rui Viana Pereira

Parte 1 da série: Rússia: O repúdio das dívidas no cerne das revoluções de 1905 e 1917

A Rússia emergiu das guerras napoleónicas como uma grande potência europeia e participou na formação da Santa Aliança. A Santa Aliança, constituída a 26 de Setembro de 1815 em Paris, por iniciativa do czar Alexandre I, por três monarcas europeus vitoriosos sobre o império napoleónico, tinha objectivo assegurar as suas posições e precaver-se contra revoluções. Constituída inicialmente pelo Império russo, pelo Império austríaco e pelo Reino da Prússia, a ela se juntariam a França (onde a monarquia tinha sido restaurada) em 1818 e na prática foi apoiada por Londres.

A Rússia czarista: uma grande potência europeia

O Império russo fez parte da troika que colocou no trono grego um príncipe bávaro em 1830 e sujeitou o país a uma dívida simultaneamente odiosa e insustentável. Para Moscovo, o desmantelamento progressivo do Império Otomano era muito importante, pois estavam em jogo os interesses russos nos Balcãs, assim como o acesso ao mar Negro e ao Mediterrâneo.

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A Europa em 1815, após o Congresso de Viena (clicar para aumentar)

Até à década de 1870, os banqueiros londrinos foram os principais financiadores do czar. Após a constituição do Império Alemão e da sua vitória sobre a França em 1871, os banqueiros alemães tomaram o lugar dos londrinos. A partir desse momento a Alemanha tornou-se o principal parceiro comercial da Rússia. Em vésperas da I Guerra Mundial, 53 % das importações russas provinham da Alemanha e 32 % das suas exportações destinavam a ela. Em finais do século XIX, os banqueiros franceses suplantaram os alemães. À boca da I Guerra Mundial, 80 % da dívida externa russa era detida por «investidores» franceses e a maioria dos empréstimos russos em curso foi emitida na bolsa de Paris.

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Em suma, os capitalistas franceses emprestavam à Rússia e aí realizavam investimentos (os capitalistas belgas, em particular os «industriais», investiam igualmente somas consideráveis na Rússia  |1|), enquanto os capitalistas alemães escoavam na Rússia uma parte da sua produção e iam lá buscar matérias-primas.

Quando o soviete de Petrogrado aprovou o manifesto financeiro que apelava ao repúdio da dívida czarista, a Rússia preparava-se para emitir, com o auxílio dos banqueiros e do Governo franceses, um novo empréstimo vultoso. O aviso lançado pelo soviete não foi escutado pelos agentes financeiros de Paris e o empréstimo seguiu para a frente. Doze anos mais tarde seria repudiado.

Um título russo de 1906

Um título russo de 1906

Primeira Guerra Mundial

Na I Guerra Mundial opunham-se dois grupos de potências capitalistas: dum lado o Império Alemão e os seus aliados do Império Áustro-Húngaro, a Bulgária e o Império Otomano; do outro lado a Grã-Bretanha, a França, o Império Russo, a Bélgica, a Roménia, a Itália, o Japão e, a partir de Fevereiro de 1917, os Estados Unidos da América.

Havia anos que a Alemanha, a França, a Grã-Bretanha e a Rússia czarista se preparavam para a guerra. A Alemanha, em plena progressão económica, procurava alargar o seu território, tanto na Europa como nas regiões coloniais.
A França ansiava por se vingar da Alemanha e nomeadamente obter a Alsácia e a Lorena, anexadas pela Alemanha na sequência da derrota francesa de 1871. A Grã-Bretanha, a França e a Rússia pretendiam também alargar os seus domínios coloniais, nomeadamente sobre as ruínas do Império Otomano.
A esquerda, nos diversos países beligerantes, tinha denunciado alguns anos antes os preparativos desta guerra.

O Congresso de Estugarda (1907) da Internacional Socialista votou por unanimidade uma resolução que dizia: «Caso a guerra, apesar de tudo, venha a estalar, [os partidos socialistas] têm o dever de actuar para lhe pôr fim rapidamente e utilizar, com todas as suas forças, a crise económica e política criada pela guerra para agitarem as camadas populares mais profundas e precipitar a queda do domínio capitalista».

Em 1913, no Congresso extraordinário de Basileia, a Internacional enviou um aviso solene aos governantes: «Saibam os governantes que no estado actual da Europa e com o estado de espírito da classe operária, não podem, sem incorrer em risco, desencadear a guerra»  |2|

Jean Jaurés, grande figura do socialismo francês, resumiu esta mensagem, em termos sucintos, na frase final do seu discurso ao Congresso de Basileia: «Ao acentuar o perigo de guerra, os governantes deveriam ver que os povos poderão facilmente acertar contas: a sua própria revolução custar-lhes-ia menos mortos que a guerra dos outros».

No momento decisivo, em Agosto de 1914, vários grandes partidos socialistas (o partido social-democrata alemão, bem como os da Áustria, Bélgica, França e Grã-Bretanha) votaram com a burguesia os créditos para financiar a guerra. O custo em vidas humanas foi extremamente elevado. O total de mortos no conflito mundial elevou-se a 18,6 milhões – 9,7 milhões de militares e 8,9 milhões de civis. Entre 1914 e Fevereiro de 1917, o número de mortes russas provocadas pela participação do czar na I Guerra Mundial elevou-se a 3 300 000, das quais 1 800 000 militares e 1 500 000 civis  |3|.

Da Revolução de Fevereiro de 1917 à de Outubro

Quando rebentou a revolução de Fevereiro 1917, com uma grande greve das mulheres (que teve início em 23-Fevereiro-1917 |4|, dia internacional dos direitos das mulheres  |5|), a população russa queria ver-se livre do regime autocrático czarista; queria pão; queria o fim da guerra; queria o acesso à terra para dezenas de milhões de camponeses que dela estavam privados e que eram forçados a arriscar a vida numa guerra cujos objectivos lhe eram completamente alheios.

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Alexandre Fedorovitch Kerensky (1881-1970)

O novo regime, dirigido pelo socialista moderado Kerensky  |6|, que sucedeu ao czar, recusou-se a distribuir terras aos camponeses; prosseguiu a política de guerra e foi incapaz de alimentar a população. Empenhou-se também em reembolsar as dívidas contraídas pelo regime czarista junto de credores estrangeiros e contraiu novos empréstimos para prosseguir a guerra.

Dan, um dos principais dirigentes mencheviques oponentes do partido bolchevique, descreve a efervescência revolucionária nos meses que precederam o Outubro de 1917: as massas «começaram com frequência cada vez maior a exprimir o seu descontentamento e a sua impaciência com movimentos impetuosos, e acabaram […] por se virarem para o comunismo […]. As greves sucederam-se. Os operários procuravam responder à rápida subida do custo de vida com aumentos dos salários. Mas todos os seus esforços fracassaram perante a desvalorização contínua da moeda em papel. Os comunistas lançaram nas suas fileiras a palavra de ordem «controlo operário», e aconselharam-nos a tomar a direcção das empresas, a fim de impedir a “sabotagem” dos capitalistas. Por outro lado, os camponeses começaram a apoderar-se das terras, a correr com os latifundiários e a pegar-lhes fogo às mansões…»  |7|.


A Revolução de Outubro de 1917

A insatisfação provocada pela política de Kerensky deu origem a uma segunda revolução em Outubro de 1917 (7-11-1917, segundo o novo calendário adoptado mais tarde). O novo governo |8|, apoiado pelo congresso dos sovietes, comprometeu-se a estabelecer a paz, a distribuir as terras e, para arranjar meios para relançar a economia do país, a repudiar a dívida e nacionalizar o sector bancário  |9|.


O repúdio das dívidas

No início de Janeiro de 1918 o governo soviético suspendeu o pagamento da dívida externa e no início de Fevereiro de 1918 decretou o repúdio de todas as dívidas czaristas, assim como das dívidas contraídas pelo governo provisório destinadas à continuação da guerra entre Fevereiro e Novembro de 1917. Ao mesmo tempo decidiu expropriar todos os haveres dos capitalistas estrangeiros na Rússia, para os restituir ao património nacional. A dívida pública russa em 1913 elevava-se a 930 milhões de £ (grosso modo 50 % do PIB). Entre o início da guerra e o momento em que os Bolcheviques chegaram ao poder com os seus aliados Socialistas Revolucionários de esquerda, a dívida multiplicou-se por 3,5, ascendendo a 3385 milhões de £.

Ao repudiar as dívidas, o governo soviético pôs em prática a decisão tomada em 1905 pelo soviete de Petrogrado e pelos partidos que o apoiavam. Este acto suscitou os protestos unânimes das grandes potências aliadas.


Decreto sobre a paz

O governo soviético propôs a paz sem anexações e sem indemnizações/reparações de guerra. A isto acrescentou a aplicação prática do direito à autodeterminação dos povos. Tratava-se de aplicar princípios totalmente inovadores ou revolucionários na relação entre Estados.

Notas

|1| Em 1914, os carros eléctricos eram explorados por empresas belgas em 26 cidades russas. Segundo o ministro belga, Henri Jaspar, que recordou ao parlamento belga os interesses da Bélgica na Rússia antes da guerra: «o ferro fundido que fabricámos na Rússia representam 1/3 da produção total de ferro fundido da Rússia; vigas, laminados, barras, foram 42 % da produção total russa; produtos químicos fabricados pelos belgas na Rússia representam 75 % dos produtos químicos produzidos em toda a Rússia; as lentes representaram 50 % da produção russa, os copos de vidro 30 %». Segundo este ministro, 161 empresas belgas estavam presentes na Rússia antes da guerra. Fontes: Anais parlamentares, Câmara, 1921-1922, p. 883-884; sessão de 23 de Maio de 1922. Ver também Documentos parlamentares, Senado, 1928-1929, n° 88, «Rapport de la Commission des Affaires étrangères», p. 37-38. Estes documentos são citados por Jean Stengers, «Belgique et Russie, 1917-1924: gouvernement et opinion publique», Revue belge de philologie et d’histoire, Année 1988, Volume 66, Numéro 2, pp. 296-328, http://www.persee.fr/doc/rbph_0035-…

|2| J. Longuet, Le mouvement socialiste international, Paris, 1931, p. 58.

|3| Os países mais afectados, além da Rússia, foram o Império Alemão (com 2 milhões de mortos entre os militares e 420 000 civis), a França (incluindo as colónias, 1,4 milhões de militares e 300 000 civis), a Áustria-Hungria (com 1,1 milhões de militares e 470 000 civis), o Reino Unido (incluindo as colónias, 885 000 militares e 110 000 civis), o Império Otomano (800 000 militares e 4,2 milhões de civis) e o Reino da Sérvia (1 250 000 vítimes, das quais 800 000 civis, ou seja, um terço da população). Fonte: https://fr.wikipedia.org/wiki/Perte…

|4| Em 1917, a Rússia ainda utilizava o calendário juliano, que «atrasa» cerca de 13 dias em relação ao calendário gregoriano que foi adoptado em 1918 e que corresponde ao calendário ocidental. Assim a Revolução de Fevereiro de 1917 ocorreu durante a jornada internacional de luta pelos direitos das mulheres, 8 de Março no calendário actual. Da mesma forma, a Revolução de Outubro teve lugar a 7 de Novembro. Daqui para a frente este texto adopta o calendário actual (ou seja, o gregoriano).

|5| Ver Léon Trotsky. 1930. História da Revolução Russa, cap. 7. https://www.marxists.org/portugues/…

|6| Alexandre Fedorovitch Kerensky (1881-1970), advogado, trabalhista (do partido: Troudovik) foi chefe do Governo provisório em 1917.

|7| Dan, em Martov-Dan: Geschichte der russischen Sozialdemokratie, Berlin 1926, pp. 300-301. Citado por Ernest Mandel, Octobre 1917 : Coup d’État ou révolution sociale, IIRF, Cahiers d’étude et de recherche numéro 17/18, Amsterdam, 1992, p. 9. http://www.ernestmandel.org/fr/ecri…

|8| O Governo era composto por uma aliança entre o partido bolchevique e os Socialistas Revolucionários de Esquerda.

|9| Edward H. Carr. 1952. La révolution bolchevique, Tome 2. L’ordre économique, Édition de Minuit, Paris, 1974, cap. 16.

Autor

Eric Toussaintdocente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional. É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011. Coordenou o trabalho da [Comissão para a Verdade sobre a dívida pública> 11511], criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015. Após a sua dissolução, anunciada a 12/11/2015 pelo novo presidente do Parlamento grego, a ex-Comissão prosseguiu o trabalho sob o estatuto legal de associação sem fins lucrativos.