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TEORIA

A volta dos que não foram: os Tribalistas e a captação do fator subjetivo do momento histórico contraditório brasileiro

Por: Marcelo Nascimento

INTRODUÇÃO

No último mês de agosto, o projeto paralelo Tribalistas composto por Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes e Marisa Monte, lançou seu novo álbum após quinze anos de intervalo. A indústria cultural, sobretudo a “crítica” dos jornais da grande burguesia do Sudeste (O globo, Estadão e Folha), ficou, para variar, em uma análise superficial, tratando de tentar responder perguntas como “a forma de composição das letras”, “porque demoraram tanto para gravar um novo disco” e coisas do tipo sem, no entanto, falar sobre o conteúdo das letras que, em certa medida, capta a consciência média dos brasileiros no último período.

O problema da crítica de tabloide é que sua análise normativa pressupôs que a arte tem um valor em si, isto é, depende mais do “gosto” particular do “crítico” especialista do que dos interesses e dos conflitos que regem a vida cotidiana das classes sociais. O juízo estético em si, na melhor das hipóteses, serve como mecanismo de crítica da indústria cultura de massa sem, no entanto, propor qualquer tipo de solução ao impasse.

Uma das consequências dessa “cultura” apartada do mundo material, é sua disposição de se furtar de intervir e na realidade, se colocando sempre acima das condições objetivas, em uma posição abstrata e idealizada que acaba ratificando o status quo e se livrando de um efetivo engajamento com a construção social de significados e valores. Assim, a concepção da crítica liberal vê um contraste com o mundo de sua produção que “eleva o espírito” que seria um repositório de valores elevados. Ela se propõe “neutra” e “apolítica”, como arte pela arte.

Por outro lado, parte da esquerda resolveu ficar na “crítica” superficial e unilateral. Parecem ter virado o disco de cabo a rabo, procurando “declarações contrarrevolucionárias” e anti-socialista para no final condenar todo o conjunto do álbum devido sua “mensagem pacifista”, “hipócrita”, “de conciliação de classes” que, principalmente a letra de Um só sugere. No entanto, desde o século XIX, Engels explica que “O poeta não é obrigado a dar pronta aos leitores a futura solução histórica do conflito que descreve […] creio que a tendência deva surgir da própria situação e da própria ação, sem que seja explicitamente formulada.”[1]

Focado apenas na “polarização ideológica” criada pelas oligarquias políticas do Brasil, este tipo de crítica deixa de levar em conta o que a arte de fato pode nos ensinar em relação a realidade objetiva a qual estamos inseridos. Como ensina Trotsky, “Shakespeare retratou o homem e a sociedade de seu tempo, a agonia de uma classe e a ascensão de outra. As tendências de seus dramas são aquelas do próprio desenvolvimento social de que brotaram.”[2]

Mesmo que superficiais ou unilaterais, quando um artista publica sua obra ele está sujeito a crítica. A apropriação da obra pode ser de diversos tipos: para consumo, para entretenimento, para gerar lucro, para provocar ódio na política passional, entre outras coisas. Minha proposta nesta breve análise é fazer uma crítica dialética. Assim, minha crítica não será uma análise descritiva nem a interpretação hermenêutica acadêmica. Como afirma Eagleton, “A tarefa do crítico não é interpretar e sim explicar.”[3] Seguindo esta recomendação tentarei explicar porque esta obra (já que até agora não surgiram nenhuma outra do tipo) tem o potencial artístico de decifrar o momento sócio-histórico atual do país em seu conjunto. Ou seja, como esta obra pode servir para explicar a realidade contemporânea, na medida em que as questões que ela levanta são de extrema importância. Minha tese é que este álbum conseguiu captar o momento histórico, organizando o caos do mundo, se tornando assim, uma obra autêntica, digna de crítica, por ser uma totalidade fechada, que explora os grandes temas do mundo contemporâneo[4].

Se minha explicação partirá do ponto de vista das classes, a obra servirá como representação da totalidade do país e suas contradições, como uma metáfora política, que pretende sugerir algumas reflexões, que mesmo que num primeiro momento não seja levada em conta, ficará como uma mensagem em uma garrafa, boiando, com a esperança que em um futuro próximo, alguém a resgate para se entender o que se passou, já que o calor do momento, não permitiu a crítica de esquerda dar importância a um esclarecimento adequado e sereno que pode contribuir com as tarefas preliminares para se organizar o fator subjetivo para uma ação transformadora da classe trabalhadora em um momento tão contraditório.

PARTE I

A PRODUÇÃO ARTÍSTICA NA PÓS-MODERNIDADE

Como sabemos, o capitalismo passou por processo de crise estrutural na década de 1970 que gerou uma grande transformação em sua forma de acumulação que passou a ser flexível, tendo o capital financeiro como alicerce[5]. Os ataques a classe operária dirigida pelas burocracias sindicais foi a saída encontrada pela burguesia para implantar o neoliberalismo. As consequências no mundo do trabalho foi a dispersão espacial do setor de serviços que, apesar de ligado a produção, o novo regime de trabalho – toyotismo – dificultava ainda mais a organização da classe trabalhadora. Houve também uma fusão da tecnociência que se tornaram parte das forças produtivas e os serviços por elas realizados ou delas dependentes estão diretamente articulados à acumulação e a reprodução do capital.

A ampliação e diversificação do proletariado fragmentou de sua consciência de classe. A subjetividade contemporânea à deriva, está marcada pelo esmaecimento dos afetos e a potencialização da alienação, gerando um sentimento de angústia e impotência do sujeito moderno que para se livrar do peso da opressão, fragmenta sua identidade, para administrar sua vida particular como a de uma empresa[6], tendo como consequência política, a indiferença pelas grandes questões que comprometem as conquistas históricas da classe trabalhadora.

Os efeitos culturais desta nova quadra histórica podem ser sintetizados no fenômeno ideológico da pós-modernidade que, em síntese, declara o fim da modernidade, instalando uma crise da razão histórica que tem como características: a negação do sentido imanente do processo histórico que é, gradativamente substituída por temporalidades descontínuas, locais e fragmentadas; negação da totalidade que é substituída por uma lógica particularista, pela dispersão, diferença, alteridade, particularidades sem conexão, imperando um subjetivismo que faz da cultura uma nova natureza imanente. Sinteticamente, ocorre uma compressão do tempo-espaço, fruto da combinação da tecnologia e seu uso intensivo na vida cotidiana do capitalismo tardio[7].

Em uma época de ilusionismo pós-moderno, há impressão geral é que o tempo se detém no presente eterno da mercadoria, perdendo o sentido da historicidade, a superficialidade impera tendo como consequência a perca de referência histórica do próprio indivíduo que não se localiza no fluxo constante de mutações, impressões reproduzidas, pela indústria do entretenimento. A consequência social da lógica do capital é, portanto, um processo devastador que separa, compartimentaliza, especializa e dispensa uma força que opera sob todas as coisas e que tem que ser entendida e combinada em suas mais diferentes manifestações.

AS CONDIÇÕES OBJETIVAS E O FATOR SUBJETIVO NAS OBRAS ARTÍSTICAS

A arte é um produto da divisão do trabalho, que em determinado estágio da sociedade resulta na separação do trabalho material do intelectual, e assim traz a existência de um grupo de artística e intelectuais relativamente separados dos meios materiais de produção. Neste contexto caótico, onde a arte foi mercantilizada por completo, a finalidade do artista, dentro do processo contraditório da luta de classes, em sua profissão de comunicação subjetiva, é tentar captar os grandes temas, campo onde nenhuma neutralidade é possível. Sua dificuldade de ofício é conseguir agradar a crítica especializada e, ao mesmo tempo, ser aprovado pelo grande público.

A dialética que rege a relação sujeito-objeto na obra artística deve levar em conta a forma pela qual o artista capta a realidade em sua obra. Para tanto, é necessário considerar sua classe social bem como a forma pela qual esta concepção de mundo reflete sua obra diretamente. No entanto, a realidade não é algo passivo, o processo dinâmico da luta de classes, faz com que os artistas e suas obras, sejam envolvido neste processo contraditório.

Engels explica que para um artista obter relevância ele deve representar objetivamente em suas obras as contradições da realidade e não sua concepção de mundo. Ou seja, o movimento histórico objetivo e sua captação subjetivas nas obras populares, servem como chave explicativa para entender as condições sócio-históricas que são uteis na elaboração da práxis política[8]. Para Lukács, a especificidade da obra de arte está justamente em sua intensificação subjetiva que se conecta com as percepções das massas no mundo objetivo. Assim, a peculiaridade do artista como memória cultural da humanidade em determinada conjuntura histórica é a peculiaridade do estético[9].

É evidente que toda arte carrega consigo as marcas da conjuntura histórica a qual está inserida. No entanto, o fator distintivo da grande arte é sua capacidade de se conectar com a especificidade social daquele período, decifrando, em certa medida os grandes dilemas gerais daquele momento. Assim foi, por exemplo, com os movimentos musicais de contracultura que o rock promoveu nos seus “trinta anos gloriosos” (1967-1997), do final dos anos 1960 (Velvet Underground, The Doors, Jefferson Airplane, The Beatles, Pink Floyd, The Who, etc.), o movimento punk na década de 1970 (MC5, Television, Sham 69, The Clash, Sex Pistols, Ramones, etc.) ou o movimento grunge do início da década de 1990 (Mudhoney, Nirvana, Pearl Jam, Soundgaden, Alice in chains, Stone Temple Pilots, Silverchair, Radiohead, etc.)) que se espalhou de Seattle para o mundo. Todas estas tendências “latentes” sem dúvida representaram na cultura de massas ocidental, as mudanças estruturais pelas quais o capitalismo vinha passando.

A superestrutura não tem uma história autônoma, ou seja, ela é produto de transformações na base social da vida material e das novas formas de comunicação advinda deste processo. Em síntese, as grandes obras conseguem decifrar as tendências latentes das contradições objetivas de uma determinada conjuntura ao mesmo tempo que capta as condições subjetivas.

CULTURA E DECADÊNCIA IDEOLÓGICA

A crítica cultural marxista sempre vinculou dialeticamente arte e sociedade. Para captarmos o fator subjetivo, precisamos compreender as condições objetivas da realidade sócio histórica que condicionou tal estágio. Para tanto é que a crítica cultural marxista evidencia o custo humano de se viver sob um modo de produção baseado na exploração e na primazia do lucro sob a vida. Neste sentido, há uma ligação estruturalmente articulada entre cultura e sociedade.

Como sabemos, o capitalismo é o sistema econômico da supremacia da quantidade em relação a qualidade, o que resulta na produção em massa de mercadorias descartáveis. Os produtos estandardizados fabricados pela indústria cultural têm como objetivo administrar o lazer e torná-lo uma forma de resignação e adestramento na formação de consumidores passivos. O modo como o trabalho aliena e reifica o ser social fora da esfera da produção, resulta em um lazer alienado, isto é, como forma de extensão do mundo do trabalho para fora da produção[10].

Essa alienação é garantida pela ideologia e suas falsas representações da realidade social. Na sociedade de classes essas explicações serão produzidas e difundidas pela classe dominante para legitimar e assegurar seu poder econômico, social e político ocultando o modo real como dão as relações sociais de exploração econômica e dominação política. É este ocultamento da realidade social que caracteriza a ideologia.

A ideologia, portanto, não é um conjunto de doutrinas, ela representa a maneira como a média dos seres humanos se enxergam na sociedade de classes, os valores, as ideias e as imagens que os envolvem, evitando que conheçam as contradições da realidade social em sua totalidade. A ideologia oculta o caráter contraditório do padrão cultural fabricado, concentrando o foco na maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente. Com efeito, enquanto as classes subalternas, por força de suas limitadas condições materiais, são incapazes de resolver essas contradições na prática, tendem a projetá-las nas formas ideológicas de consciência, isto é, em soluções puramente espirituais ou discursivas que ocultam efetivamente a existência e o caráter dessas contradições.

Assim, o dogmatismo é a marca da concepção de mun­do burguesa no período da sua decadência ideológica. Concebe o movimento real da história dentro do limitado espaço de uma essên­cia humana eterna, a-histórica e burguesa. Esta concepção de mundo será difundida por seus intelectuais e irá produzir um conjunto de ideias que confirmem esta alienação, fazendo, por exemplo, com que o conjunto da sociedade creia que são desiguais por natureza e por talento, ou que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente enriquecem, e os preguiçosos empobrecem.

Este conjunto coerente, articulado e sistemático de ideias, valores e normas de conduta prática se estrutura sobre os seguintes núcleos ideológicos: naturalização da hierarquia social fundamentada nas classes, negação da mudança a procura sempre pela conservação em vez da transformação, a resignação perante os problemas sociais e a justificação das desigualdades e suas consequentes desgraças por meio da difusão de uma concepção teológico-mística da realidade[11].

As obras também explicam a crise ideológica da burguesia em sua fase de decadência histórica, mas ele não exibe uma correspondência simples com essa crise ou com as condições políticas e econômicas que a produziram. A obra precisa traduzir a crise em termos universais para compreendê-la como parte da condição humana[12]. Se na épica antiga, por exemplo, a história dos grandes heróis eram histórias do conjunto da sociedade, na medida em que o protagonista tinha um inimigo público; com o advento do capitalismo, o romance histórico passou a contar as desventuras do indivíduo burguês, impotente perante a realidade que cerca[13]. Com o processo contínuo de decadência ideológica da burguesia, a vida cotidiana ganhou status de temática principal nas obras em geral. Neste processo, a música se destacou, após a Segunda Guerra Mundial, como a forma de produção artística mais popular.

A INDUSTRIA CULTURAL COMO MEDIAÇÃO ENTRE O ARTÍSTA E O PÚBLICO

Há também o problema de os meios de produção da comunicação está concentrado nos grandes monopólios da indústria cultural. Como explica Williams, “Como uma questão de teoria geral, é útil reconhecermos que os meios de comunicação são, eles mesmos, meios de produção. É verdade que os meios de comunicação, das formas físicas mais simples da linguagem às formas mais avançadas da tecnologia da comunicação, são sempre social e materialmente produzidos e, obviamente, reproduzidos. Contudo, eles não são as apenas formas, mas meios de produção, uma vez que a comunicação e os seus meios materiais são intrínsecos a todas as formas distintamente humanas de trabalho e organização social, constituindo-se assim em elementos indispensáveis tanto para as forças produtivas quanto para as relações sociais de produção.[14]” Os gêneros musicais, ou as formas de criação e composição, são produtos das técnicas desenvolvidas pelas forças produtivas para a distribuição e difusão das obras. A padronização do gosto médio de um país, monopolizada pelas grandes corporações que detém os meios de comunicação de massa, bem como sua expressão artística, está nas mãos de grandes monopólios.

Se por um lado a exploração comercial massiva de um “estilo” musical gera esgotamento, e com o tempo certa repulsa a determinadas formas de enredo, por outro, o compartilhamento massivo foge do controle dos monopólios sobretudo com o advento do download. Assim, a massificação, dialeticamente, gera uma socialização dos meios de comunicação de massa. No entanto, na maior parte das vezes, o conteúdo “compartilhado” deriva do centro do capitalismo. A indústria fonográfica é uma das mais concentradas do mundo. Os quatro maiores monopólios do planeta – a Universal (que absorveu a PolyGram em 1988), a Time Warner, a Sony BMG e a EMI – controlam 90% das vendas de músicas internacionalmente e impõem o gosto musical da maioria absoluta da humanidade.

A música é amplamente reproduzida em vários locais públicos e privado em uma repetição massiva que tem como objetivo homogeneizar o gosto público. Este é um reflexo da sociedade industrial que tende a produzir produtos uniformes e mercantilizar qualquer forma de expressão cultural. Novas plataformas online – spotify entre outras – estão transformando rapidamente este mercado e tentando controlar o fluxo de troca que a internet proporciona. Isso coloca como dilema para os artistas contemporâneos não como produzir e distribuir seu material, mas por que meios. São nestas condições gerais, que os artistas contemporâneos produzem suas obras.

PARTE II

O PROJETO TRIBALISTA

O trio é formado por três cantores consagrados da música popular brasileira: Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes e Marisa Monte. Brown (nome em homenagem a de H. Rap Brown ativista) percussionista nato, é de Salvador, onde organizou uma orquestra de timbal (O Timbalada) com mais de cem percussionistas. O álbum de 1993 foi considerado o melhor produzido na América Latina daquele ano. Em 1996 lançou seu principal disco Alfagamabetizado. Criou uma banda para mulheres (Bolacha Maria), uma escola de música (Pracatum) e um projeto de moradia (Tá Rebocado).

Arnaldo Antunes é um dos artistas de vanguarda mais destacados dos anos 1980. Fez parte dos Titãs de álbum antológicos como Televisão (1985) e Cabeça Dinossauro (1986) com canções como Comida, Homem primata, Polícia e Igreja. É seguramente, o maior poeta da geração de músicos brasileiros advindos do rock dos anos 1980. A multilinguagem de sua obra (poesia, música, cinema, etc.) traz novas possibilidades para um fazer coletivo na arte de vanguarda. Autor de frases como “o impossível é dever de todos” (que lembra muito a sentença de Trotsky “As revoluções são impossíveis até que se tornam inevitáveis”), na sua carreira solo estreou com o lançamento de livro, vídeo e disco sendo pioneiro nesta empreitada. Com diversas parcerias (como Paulo Leminski), foi ao lado de Marisa Monte, que encontrou a parceira mais duradoura em sua carreira nos palcos.

Ela, por sua vez, tornou-se uma celebridade instantânea desde seu primeiro show produzido por Nelson Motta. O resultado foi seu primeiro álbum MM (1989) estreia ousada somente com covers de diversos gêneros musicias. Desde quando surgiu no cenário musical Marisa foi comparada a Billie Holiday, Gal Costa e Carmem Miranda. Seu álbum mais impostante é Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-rosa e Carvão (1994). É também considerada a segunda maior intérprete da música popular (somente atrás de Elis Regina). Abriu seu próprio selo (Phnomotor) resgatando por meio dele, a canção popular carioca, da Velha Guarda da Portela. É dona de toda sua obra e dos fonogramas originais. Mesclou tradição e modernidade em suas interpretações ao recuperar clássicos de Paulinho da viola, Pixinguinha, Candeia, Cartola, Moraes Moreira entre muitos outros. Mostrou como funciona a indústria do disco em seu DVD documentário Infinito ao meu redor (2006).

O projeto Tribalistas (três tribos) saiu de uma reunião em Salvador do supergrupo que resultou no primeiro disco de 2002. O álbum homônimo lançado pela gravadora de Marisa rapidamente estourou. Vendeu mais de 2,1 milhões de cópias (em plena crise da indústria fonográfica) emplacando ritmos leves e ingênuos como Velha infância, já sei namorar, entre outros. Eles jamais fizeram um show juntos, o que evidencia que o projeto foi algo autêntico, em uma época em que bandas caça níquel fazem revival para ganhar uma grana de fãs nostálgicos.

Em 2013, eles fizeram uma breve aparição com a canção inédita joga arroz para apoiar publicamente a defesa da união homoafetiva no Brasil. Depois de 15 anos um novo álbum finalmente apareceu em 2017. Ele foi gravado longe dos holofotes no Rio, em seções “secretas”. Foi anunciado repentinamente e lançado em seguida 4 faixas em um show ao vivo de uma hora pelas redes sociais. Duas semanas depois, estava disponível em todas as plataformas.

UM NOVO BRASIL A SER DESBRAVADO

A época escolhida para a nova reunião guarda algumas particularidades históricas interessantes. Os quinze anos de intervalo entre os dois discos do grupo, coincidiu com o tempo de abertura e encerramento dos governos petistas (2003-2016). Nesta nova conjuntura, a banda parece ter perdido a inocência de 2002. As músicas do primeiro disco, podemos dizer que em certa medida, refletia o clima do país na época. A expectativa de transformações sociais criava uma atmosfera de mudança em todo o país com a eleição de Lula a presidente da república.

Já em 2017, o peso e a tensão destes tempos difíceis aparecem nas formas de tocar os instrumentos em algumas faixas. Repletos de “barulhinhos bons”, o álbum traz diversas sensações com a captação de áudios inusitados. O espírito coletivo das produções, bem como a atmosfera de camaradagem entre os músicos demostram uma relação intima com a produção musical.

A gravação ao vivo (como no primeiro), mostra as formas de composição e de montagem dos arranjos. Indo contrário a lógica das grandes produções do show business, onde o espetáculo se manifesta como a forma final do fetichismo, eles revelam o “segredo” dos arranjos, em imagens que lembram uma grande fábrica de fazer música com o uso de diversos instrumentos. Assim, em vez de o sujeito passar a ser consumido pelo bombardeamento de imagens arbitrarias para a contemplação do homem alienado, onde a noção de tempo se congela no presente eterno do espaço, o processo de produção pode ser acompanhado atentamente, eliminando a ilusão e o impacto mágico que as formas causam no ouvinte que, devido a sua estrutura peculiar e surpreendente, levariam o público a identificação intensa que cria um transe emocional que induz a uma descarga de emoções catárticas. Parece que seguindo os conselhos de Brecht, os tribalistas elevam a emoção ao raciocínio, ao mostrar o processo de produção, canalizam a experiência de sua música em sentido inteligente e lúcido não permitindo a mera efusão irracional sentimental.

Como este disco provavelmente será divulgado e difundido pelos quatro cantos do país podendo se tornar produto de nossa memória cultural-histórica contemporânea (como na época da ditadura foram as obras de Chico Buarque, Secos e molhados, Caetano Veloso, Clube da esquina e Nara Leão), criticá-lo, do ponto de vista da crítica cultural marxista, significa avaliar objetivamente, os motivos pelos quais tanto o público quanto a crítica o acolheram como produto distinto, que pode marcar época.

ANÁLISE DO ALBUM: FAIXA A FAIXA

O disco já abre em um clima tenso com a canção Diáspora, uma alegoria cheia de referências históricas. O vocal soprano de Marisa lembra as canções árabes e na introdução a poesia O Guesa de Joaquim de Sousândrade na voz poética de Arnaldo estabelecerá a atmosfera que se segue. As primeiras estrofes cantam: “Atravessamos o mar egeu / o barco cheio de fariseus / como os cubanos, sírios, ciganos / como romanos sem Coliseu / atravessamos pro outro lado / no rio vermelho no mar sagrado / os center shoppings, superlotados, de retirantes, refugiados.” Aqui fica nítida a preocupação com um dos maiores dramas do mundo contemporâneo: a diáspora moderna. Os casos utilizados para serem retratados como exemplos são polêmicos.

No entanto, não se trata de uma comparação simplista entre Cuba (rio vermelho / center shoppings) e Síria (mar sagrado / superlotados), pois a ação se centra nos desencontros e na separação de pessoas promovida por forças externas aos que sentem a necessidade de fugir. Segue-se os lamentos de procura “You where are you? / You where are you?” que reforça a ideia de perca, de separação. “Onde está meu irmão sem irmã / o meu filho sem pai / minha mãe sem avó dando a mão pra ninguém / sem lugar pra ficar, os meninos sem paz, ondes estás meu senhor? / Onde estás onde estás?” Em um mundo onde o indivíduo é abandonado a própria sorte, a conexão com o universal (Deus) é a forma de busca de conforto existencial em uma situação limite. Assim, alienação religiosa, expressa uma realidade invertida.

Se algumas ideias deformavam ou “invertiam” a realidade, é porque a própria realidade está de cabeça para baixo. Mas essa relação aparece de maneira direta, não mediada. Como explica Engels, “com a religião, o homem perdeu sua própria essência, alienou-se de sua humanidade e só agora, depois que a religião se tornou vacilante devido ao progresso da história, ele perdeu seu vazio e sua insustentabilidade. ”[15] No refrão Antunes cita um trecho Vozes d´Africa de Castro Alves que dá maior historicidade para o drama dos refugiados ao trazer a própria realidade brasileira para este contexto: “Oh Deus ó Deus, onde estas que não responde em que mundo, que estrela tu t´escondes, embuçado nos céus, Há dois mil anos te mandei meu grito, que embalde desde então corre o infinito, ondes estás senhor Deus?” Assim, eles sintetizam o que entendem por diáspora, ampliando seu significado restrito, mostrando a contradição de um mundo com fronteiras.

A partir da crítica inicial da religião, até o desmascaramento das aparências econômicas mistificadas e dos princípios aparentemente liberais e igualitários do capitalismo a dupla inversão – na consciência e na realidade – é conservada em todos os momentos. Neste sentido, a letra demonstra a contradição imanente que existe na prece por um Deus, da qual os refugiados estão fugindo (no caso da Síria), já que toda a finalidade do ISIS é justamente implantar um Estado teocrático. Há, portanto, uma defasagem entre as representações de que o ser humano genérico realiza do mundo e sua realidade última, que por inúmeras circunstâncias (sobretudo materiais) está impossibilitado de compreender a realidade que o rodeia, buscando consolo, na universalidade que dá algum sentido as suas vidas.

A segunda faixa é Um só, canção que já abre de maneira explicita: “Somos comunistas e capitalistas, somos anarquistas, somos o patrão / somos a justiça, somos o ladrão, somos da quadrilha, viva São João / Somos todos eles da ralé, da realeza somos um só. Um só. / 1,2,3 somos muito quando juntos somos um só / Somos democratas, somos os primatas, somos vira-latas, temos pedigree / somos da sucata e você ai, somos os piratas guarani-tupi.” Quem somos portanto? Evidentemente o Brasil. Para as análises mais apressadas parece ser uma simples mensagem pacifista ou de conciliação de classes mas, analisemos mais de perto.

A própria ideia de sermos um só está em contradição quando a letra contrapõe o que seria esta identidade única. Em vez de se mostrar como uma totalidade que sugere que toda ação está inexoravelmente determinada desde o princípio, a canção apresenta sua temática de forma descontínua, abertamente e internamente contraditória, provocando no ouvinte, atenção redobrada ao desenvolvimento do argumento poético, dando margem as diversas possibilidades conflitantes, a cada estrofe trocada, que pode (ou não) trocar o sentido da mensagem.

No refrão, eles afirmam: “Maré me fere, maré banha, maré me leve, maré me ganha.” Aqui a referência é ao aderimento em massa as posições políticas devido a polarização do último período entre as posições petistas e tucanas. Foi muito comum entre os “navegantes” da internet, serem levados pela maré do momento, isto é, trocar de posições constantemente e contraditoriamente.

Há uma outra sugestão que também pode ser explorada. Na última parte da canção quando Marisa repete o refrão a ordem se altera trocando o sentido da mensagem: “maré me leve, maré me banha, maré me fere.” Evidente que não é por acaso. Aqui podemos ter a metáfora da própria trajetória do PT. “Maré me leve”, me parece mais uma referência ao PT vencedor que as massas aderiram levando Lula a maior popularidade que um presidente já teve. “Maré me banha”, pode sugerir o auge deste governo, da conciliação de classes que trouxe uma distribuição incipiente da renda nacional. “Maré me fere”, parece falar sobre o encerramento abrupto deste processo com o golpe parlamentar sofrido por Dilma e a crise econômica que se seguiu. Mas ainda há uma outra possibilidade.

Se trocarmos a classe trabalhadora pelo próprio PT e sua relação com o Parlamento burguês como sujeito da ação temos: “maré me leve” o PT sendo corrompido de seus ideais, “maré me banha” como o auge da incorporação do PT ao regime de corrupção sistêmica e “maré me fere” como a forma pela qual os dirigentes do partido terminaram sua trajetória política: a condenação de Dirceu e Lula e o impeachment de Dilma. Em qualquer dos casos, a análise está voltada as contradições destes acontecimentos. Neste sentido, a canção acerta em não criar uma falsa harmonia, em um Brasil atenuado de contradições, onde a esquerda revolucionária não é uma alternativa da ala majoritária da classe trabalhadora, que ainda deposita suas esperanças nas recentes conquistas incipientes dos governos petistas.

Assim, a tomada de partido na obra do artista não está diretamente ligada com suas concepções de mundo e até pode contradizê-la. Isto é, a mediação do discurso das letras nem sempre é uma narrativa em primeira pessoa. Não há, portanto, uma proposta de reconciliação das contradições capitalistas (entre a essência e aparência, o concreto e o abstrato, o individual e a totalidade), mas sim uma tentativa fracassada de exaltar os sentimentos patrióticos acima das questões envolvidas na atual conjuntura de retrocesso sem precedentes na história do Brasil moderno. Se os Tribalistas unificam o Brasil (São Paulo, Rio e Bahia) o possível tom “conciliatório e conformado” que duvido que sua mensagem contenha, é inviável para o momento em que o país passa. Só seremos um, se excluirmos principalmente os capitalistas e os patrões. Seremos ainda, seguramente, mais de fato, 99% da população.

A parit deste ponto, o álbum vira para um som mais intimista, apresentado inicialmente por Fora da memória. O nome da canção já sugere a relação de distanciamento com o mundo exterior. A letra abre declarando: “Fora da memória têm uma recompensa / um presente pra você / você que não pensa / no que foi e no que será / no que foi e no que viria” Qual seria a recompensa? Não precisar entender nada, porque não há o que entender? A letra segue: “Fora da memória tem uma regalia / para quando você acordar todo dia / Fora da memória tem uma fantasia / para recordar todo dia / de esquecer, de esquecer, de esquecer.” Os elementos de contradição ficam evidente. As relações entre “Acordar, recordar e esquecer” envolvem os indivíduos em uma relação cotidiana alienante, num labirinto que demostra a total falta de sentido da sociabilidade capitalista.

A vida cotidiana é um permanente fluxo, dentro do qual tudo se movimenta, se transforma, se espalha e retorna ao seu lugar. Como afirma Lukács, “do cotidiano se desprendem, em formas superiores de recepção e reprodução da realidade, a ciência e a arte; diferenciam-se, constituem-se de acordo com suas finalidades específicas, alcançam sua forma pura nessa especificidade – que nasce das necessidades da vida social –, para logo, em consequência de seus efeitos, de sua influência na vida dos homens, desembocar de novo na corrente da vida cotidiana.”[16] A própria alienação da vida cotidiana da sociabilidade capitalista, que dispersa a reflexão crítica em ocupações que reproduzem as relações de produção, torna a realidade incompreensível. Assim, o indivíduo, incapaz de apreender a totalidade, se refugia em devaneios. Enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da pratica imediata do ser humano-genérico, enquanto a experiência comum da vida cotidiana for mantida sem crítica e sem reflexão, as formas de dominação ideológica se manterão.

A próxima canção é Aliança que fala de um tema muito recorrente nas letras de Marisa: o amor. Ela que costuma focar no amor de longa espera e breve encontro, trata nesta canção do casamento. Em um dueto com Brown ela canta “Se um dia eu te encontrar / do jeito que sonhei / quem sabe seu par perfeito / e te amar, do jeito que eu imaginei.” Aqui pode parecer apenas uma canção para tocar em casamentos da classe média, onde o público reage emocionado ao caráter apelativo da canção, dos vocais estridentes, do amor como redenção em um mundo onde “todas as causas estão perdidas”. Mas se trata da busca desse amor idealizado na cabeça de quem o projeta. Um sonho. Um devaneio de felicidade que é buscada no casamento: “ninguém mais feliz que eu e você”. É a promessa de uma amor possível, porém não realizado.

Trabalivre é uma narrativa realista da atual conjuntura e do nível de consciência de classe. “Um dia minha mãe me disse você já é grande tem que trabalhar / naquele instante vi que eu era livre para me virar / fiz minha mala comprei a passagem o tempo passou depressa e eu aqui cheguei / passei por tudo que é dificuldade, me perdi pela cidade mas já me encontrei”, aqui a uma parada. E o retorno: “domingo boto meu pijama, deito lá na cama para não cansar / segunda feira eu já to de novo atolado de trabalho para entregar / na terça não tem brincadeira, quarta-feira tem serviço para terminar / na quinta já tem hora extra e na sexta expediente termina no bar” [parada com tambores] “mas tem o sábado inteiro pra mim mesmo fora do emprego pra me aprimorar, sou easy eu não entro em crise, tenho tempo livre pra me trabalhar” No final desta estrofe, aparece elementos de histeria e esquizofrenia nos grunhidos de Antunes.

A música também guarda semelhanças com O patrão nosso de cada dia dos Secos e molhados no uso da forma. A estrutura é parecida com a de um romance de formação, a história do personagem é contada de maneira realista, buscando uma tipicidade. Podemos imaginar jovens negros da classe trabalhadora, tentando vender sua força de trabalho em um país com 14 milhões de desempregados. O próprio nome da canção Trabalivre parece sugerir que o “livre” aqui é de regulação, o que precariza ainda mais as condições de trabalho no Brasil.

Em um momento onde a contra-reforma trabalhista foi imposta pelo congresso nacional é importante lembrarmos que a medida passou, sem nem mesmo uma manifestação de massas promovidas pelas maiores centrais sindicais do país. Após a primeira mobilização no final de abril, a segunda foi parcial. Nesta conjuntura o governo golpista elaborou diversas propagandas na televisão, com o apoio de empresários do ramo como Silvio Santos, para convencer as massas que de que “não há outro caminho”.

A chave interpretativa parece estar em: “segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira pra me sustentar, mas tenho o sábado inteiro pra mim mesmo fora do emprego pra me aprimorar” para recomeçar a semana? Para vender sua força de trabalho? Não. Toda a semana é diminuída apenas com a citação dos dias da semana e o alargamento do sábado como possibilidade de aprimoramento pessoal. Assim, o trabalho humano, qualitativo, único, sob o capital é encarado como força de trabalho, quantidade que pode ser somada, diminuída, trocada, substituída por equivalente inclusive, e sobretudo, em dinheiro. Assim, a venda da força de trabalhado é racionalizada, naturalizada, como algo necessário e, em épocas de crise, nada melhor como exaltar as “qualidades” do brasileiro que não desiste nunca de sua alegria de viver.

Aqui é demostrada a contradição moral do personagem da música que aprendeu como funcionam as regras. A ironia está evidente na declaração de Marisa: “sou easy eu não tenho crise, tenho tempo livre pra me trabalhar.” Ao mesmo tempo que Arnaldo repete incessantemente até o fim da música “fora do emprego pra me aprimorar, fora do emprego pra comemorar, fora do emprego para aproveitar, fora do emprego para trabalhar, para me trabalhar.”

A bela canção festiva Baião do mundo, tem um tom lírico e seu tema lembra o de Segue o seco de Marisa. No entanto, aqui não é o Nordeste que é retratado e sim o Sudeste. O que a primeira impressão pode parecer aquelas músicas educativas dos programas infantis da Tv cultura com belíssimas referencias geográficas da paisagem natural do Brasil, com um olhar mais atento se percebe que ela trata da crise hídrica de São Paulo. Ela começa com “A chuva trouxe a água para encher o pote” o que sugere que não há água nas torneiras. Depois vem o apelo do refrão: “Agua pra mim um pingo d´água / traga pra mim um pingo d´água.” A citação mais direta vem com a feliz expressão poética em “vem Cantareira, canta na calha / abre a torneira e chora / vem bebedouro purificador / me dê um gole agora”. Por fim, exalta a importância da água de forma alegórica: “preciosa, miligrosa vem regai por nós

Ânima (alma ou vida espiritual) é uma canção existencial. Com um começo tenso, e uma atmosfera cósmica, esta é a canção mais metafísica do disco, “Numa outra dimensão / não tinha teto nem chão / Não havia início nem final / Eu cai numa placenta / no fim dos anos 60 / no hemisfério sul ocidental”. Ela parece tratar de Marisa, que nasceu em 1967. A canção lembra o “ser para a morte” heiddegeriano e a ideia do ser autêntico que só pode enfrentar a morte refletindo sobre ela. “De onde eu vim / eu não trouxe mala / não trouxe nada / não trouxe cor / eu não trouxe massa / só trouxe alma.” Figuras de linguagem como “cor, massa e alma” e os arranjos perturbadores parece sugerir uma reflexão sobre a condição humana e a falta de sentido desta.

Da reflexão profunda e existencialista de Ânima para a efêmera canção Feliz e saudável a quebra na harmonia interna da obra é completa. A forma rítmica dita o caminho para a última virada do álbum. Com ritmo alegre a canção declara “Eu vou sumir vou desaparecer / vou me encontrar você vai me perder / eu vou me desapaixonar de vez / mas se você me procurar talvez / eu posso me arrepender e até topar namorar com você / pois sou feliz e saudável / muito feliz e saudável.” Essa dissociação da ação e do pensamento, que guarda uma tensão contraditória, gerando uma histeria, é um típico sentimento pós-moderno. Como afirma Anderson, “Convencionalmente esta histeria denota um exagero da emoção, um fingimento meio inconsciente de intensidade para melhor encobrir alguma insensibilidade interior (ou, do ponto de vista psicanalítico, exatamente o contrário) […]. Esta é uma condição geral da experiência pós-moderna, marcada por uma ‘diminuição do afeto’ que ocorre quando o velho eu amarrado começa a se desgastar. O resultado é uma nova superficialidade do sujeito, não mais seguro dentro de parâmetros estáveis nos quais os registros de alto e baixo são equívocos. Mas, em compensação, a vida psíquica torna-se debilitantemente acidentada e espasmódica, marcada por súbitas depressões e mudanças de humor que lembram algo da fragmentação esquizofrênica.”[17]

O empobrecimento da experiência em um sistema que se apresenta como provedor da abundância serve de suporte para a incrementarão do irracionalismo pós-moderno. Nos momentos de incerteza, a canção desacelera seu ritmo frenético: “As vezes acho que chegou ao fim / que você nunca vai gostar de mim / às vezes sim / às vezes não / já perguntei para o meu coração / mas ele só aumenta a confusão / as vezes não / as vezes sim.” A imagem da esquizofrenia impera neste fluxo oscilante e hesitante de descontinuidade, como resposta administrativa do fluxo sentimental, onde o sujeito não deve demonstrar suas fragilidades. As risadas histéricas de Brown no final da canção, reforçam ainda mais esta explicação.

Como vimos, a velocidade da criação e da distribuição de novos produtos nos mercados mundial intensificou e acelerou, no sistema produtivo e passou a impulsionar em um espaço de tempo cada vez mais curto a substituição dos bens existentes no mercado por novos bens, tornando-se estratégico produzi-los em qualquer parte do mundo. Estes novos significados podem simular uma nova realidade através do poder da comunicação e retroagir com mais intensidade na vida privada. Assim, através de diferentes tipos de comunicação, os significados atribuídos podem ser destacados do conceito original e outros novos significados podem ser atribuídos: “as polaridades típicas do sujeito vão da exaltação da ‘corrida às mercadorias’, do eufórico entusiasmo do espectador ou consumidor, para a depressão no vazio niilístico mais profundo do nosso ser, como prisioneiros de uma ordem que resiste a qualquer outro controle ou significado.[18]

Assim, impera o individualismo mercantil na esfera privada: “Pode ligar que não vou atender / vou me vingar vou te fazer sofrer / você vai ver vou te enlouquecer / te maltratar pra você aprender / mas posso me arrepender e até topar namorar com você / pois sou feliz e saudável / super feliz e saudável.” Os impulsos de fragmentação e dispersão gerados pelo capitalismo que reproduz indivíduos egocentrados dificulta a organização da emancipação. Em uma sociedade onde até mesmo a sexualidade se tornou uma forma de consumo, nada mais óbvio do que isso refletir na produção cultural. Um último ponto importante é o recurso irônico do refrão, repetido até a exaustão, como autoconvencimento da necessidade deste desequilíbrio constante “pois sou feliz e saudável / super feliz e saudável.” Mais um vez, o elemento contraditório, aparece como chave interpretativa.

O auge do disco está em sua música mais objetiva. Desde o nome Lutar e vencer se mostra engajada em um mondo onde “as ilusões estão todas perdidas.” Ela narra, do ponto de vista dos estudantes, as ocupações das escolas em São Paulo e no Rio de Janeiro (onde Arnaldo e Marisa apoiaram e participaram em suas cidades). “Temos suprimento, temos provisão / nesse acampamento, nossa ocupação / nós temos víveris, víveris, víveris / material humano com potencial / de uma natureza sobrenatural / nós temos líderes, lideres, líderes.” A música decifra os fatos ocorridos em um clima de grande festa onde convida: “Venha logo não demore estamos esperando você, venha chegue junto somos fortes pra lutar e vencer.

Aqui, a captação do momento histórico em São Paulo e no Rio expressou ao mesmo tempo, a singularidade daquele grande acontecimento, com a universalidade da crise revolucionária: “Estamos dando aula de organização / reformando a sala dormindo no chão / Não temos ídolos, ídolos, ídolos / os velhos ídolos, ídolos, ídolos”. Quem seria os velhos ídolos? A esquerda evidentemente. Mas qual esquerda? Aqui cabe duas interpretações: pode ser tanto o PT (de velhos ídolos como Lula) quanto o Partido Comunista (entenda-se stalinista). A crise de direção revolucionária fica mais evidente quando a letra declara: “Somos emergência de revolução / temos consciência e educação / Não temos símbolos, símbolos, símbolos / os velhos símbolos, símbolos, símbolos.” Aqui, mais uma vez, os símbolos podem ser tanto a estrela vermelha quanto a foice e o martelo.

Ter líderes e não ter símbolos. Eis a contradição. Aqui, de fato, não cabe nenhuma crítica a letra. O fato é que, quando Marisa canta a emergência revolucionária, ela invoca a necessidade de mudança latente, que emerge do Brasil profundo, inventando um novo mundo possível no chão histórico concreto. Como afirma Trotsky e Breton a arte, “naquilo que ela conserva de individualidade em sua gênese, naquilo que aciona qualidades subjetivas para extrair um certo fato que leva a um enriquecimento objetivo […] aparece como o fruto de um acesso precioso, quer dizer, como uma manifestação mais ou menos espontânea de necessidade […]. Mais particularmente, não seria possível desinteressar-se das condições mentais que nas quais essa contribuição continua a produzir-se e, para isso, zelar para que seja garantido o respeito às leis específicas a que está sujeita a criação intelectual.”[19] Esta música, em síntese, evoca lapsos de esperança abertamente revolucionária, que está impotente de indicar o caminho, mesmo sabendo que ele é necessário. Um salto para fora de um mundo inerte, uma possibilidade de engajamento organizado nas bases, como os inesquecíveis sovietes de 1917 na Rússia.

A faixa que fecha o disco, Os peixinhos, é uma bela canção infantil que destoa bastante do começo do disco. Aqui a forma está em seu auge. Os efeitos são de todos os tipos (instrumentos, toques com a boca, respirações) e a própria letra e melodia parecem se fundir convergindo para a forma. Sua letra com bases na poesia concretista, são cheias de imagens marítimas ao retratar os peixinhos que “nadam, boiam, fazem bolhas, espirrandos gotas, mascaras de aquários, mergulhadores, escama, cardume”. As cores também tentam descrever as impressões do reflexo sobre a água.

Por se tratar de uma canção infantil, ela pode estar fazendo referência a “infância do Brasil” e sua ligação indissociável com os lusitanos. As referências ao mar e o sugestivo e belo canto da fadista portuguesa Carminho, parece fazer referência as poesias de Camões. A parceria Brasil-Portugal também está presente nos instrumentos utilizados (a guitarra portuguesa, o violino) que dão uma sonoridade única a música. A canção brasileira e a portuguesa se sintetizam na parceria de Marisa e Carminho (que não é inédita).

A junção do fado com a MPB aqui é um elemento importante de recuperação de uma memória histórica perdida no eterno presente pós-moderno. É uma forma de conexão sem nostalgia reacionária, mas de vinculação de tradição com a modernidade para a construção de uma identidade nacional-popular, fundamental para a construção de uma mentalidade voltada a realidade local que tem o potencial de romper com a padrão subjetivo imposto pelo centro do imperialismo mundial e suas representações simbólicas estardartizadas para todo o planeta permitidas pelo processo de mundialização do capital.

Neste sentido, todo ato de resistência a padronização (entenda-se americanização) da cultural mundial sem pastiche são bem-vindos. Isso não significa, no entanto, a perca do referencial internacionalista da classe que é central, mas a organização de uma subjetividade nacional-popular que se articule dialeticamente com a resistência dos povos subjugados econômica e culturalmente pelo centro do capitalismo mundial. Portanto, o caminho para a construção de um universalismo proletário, passa pela identificação classista no interior de um país, que possibilite o resgate de elementos tradicionais de resistência dos povos, que lhes possibilite uma memória histórica autêntica.

CONCLUSÃO

Como sabemos, a ideologia pós-moderna teve seus efeitos mais devastadores nas artes contemporâneas, especialmente na arquitetura, mas com efeitos na pintura, na literatura, no cinema e na música. Em tempos em que impera o irracionalismo, o ultrasubjetivismo na canção popular reproduzida incessantemente pela indústria cultural, o álbum dos Tribalhistas é bem-vindo, na medida em que nos faz refletir sobre temas fundamentais da existência em sua totalidade.

Temas como a crise humanitária (Diáposra); as relações afetivas idealizadas (Aliança); a necessidade de resolução do impasse político do país (Um só); a falta de compreensão objetiva do que se passa no mundo (Fora da memória); a crise hídrica e a necessidade de racionamento de um bem vital para a vida humana, (Baião do mundo); o aprofundamento da precarização do mundo no mundo do trabalho (Trabalivre); pensar a existência em si, em um mundo sem sentido (Ânima); as relações efêmeras da pós-modernidade (Feliz e saudável); as possibilidades de mudar o mundo (Lutar e vencer) e; a ligação cultural que recupera a história (Os peixinhos) foram tratados de forma singular.

Para alguns camaradas, pode parecer “perca de tempo” se empenhar em decifrar as mensagens subjacentes em uma obra, que consegue agradar público e crítica. No entanto, como tentei demostrar, se trata de entender “o espírito do tempo” em que nossas lutas estão sendo travadas. Em carta a Tânia de 27 de fevereiro de 1928, Gramsci comenta que a música é “a linguagem mais universal hoje existente [comunica] imagens e impressões totais”. Por ser uma arte cosmopolita, ele afirma que nas canções “existe uma profunda substancia cultural, mais restrita, mais nacional-popular[20]”. Nos Cadernos do Cárcere, ele retoma este tema afirmando que “as palavras musicadas são mais lembradas e formam como que matrizes que fixam o fluir do pensamento”[21].

Surge ainda uma outra questão fundamental: Será que a classe trabalhadora compreende os temas levantados por essas obras? Em seu consumo elas refletem sobre a temática mesmo que repita as músicas constantemente? Maikovsky respondeu o seguinte:

Chega

de chuchotar

versos para os pobres.

A classe condutora,

Também ela pode

Compreender a arte.

Logo:

Que se eleve

A cultura do povo!

Uma só,

Para todos.

O livro bom

É claro

E necessário

A vós,

A mim,

Ao camponês

E ao operário[22].

A negação da história é a premissa pós-moderna para negar as transformações que nos trouxeram até aqui. Para eternizar o presente e negar um futuro. A maior tarefa contemporânea do crítico dialético é fazer com que a história emerge novamente no real e seja reconhecida por todos. “A função do crítico contemporâneo é resistir a essa dominação, engajando-se tanto através do discurso quanto da pratica do processo pelo qual as necessidades, os interesses e os desejos reprimidos possam assumir as formas culturais que poderiam ligá-los a uma força política coletiva […]. A crítica moderna nasceu de uma luta contra o Estado absolutista; a menos que seu futuro se defina agora como uma luta contra o Estado burguês, é possível que não lhe esteja reservado futuro algum.”[23]

A sensibilidade do impacto nos impede de traduzir simplesmente os acontecimentos como um processo encadeado de eventos, que a distância histórica configurará uma lógica mais rígida, porém menos sensível aos acontecimentos. Só assim, poderemos notar como as condições históricas criam uma subjetividade específica na vida cotidiana que os grandes artistas conseguem captar em suas obras.

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[1] ENGELS, Friedrich. Revolution und Konternrrevolution in Deutschland. Em Karl Marx e Friedrich Engels, Werke, v.8 (Brrlim, Dietz, 1976) p. 547.) [Ed. Brás. ENGELS, Friedrich. Revolução e contrarrevolução na Alemamha In: A revolução antes da revolução volume I. São Paulo, Expressão popular, 2008.

[2] TROTSKY, Leon. O marxismo e a questão cultural In: Literatura e revolução. Rio de Janeiro, Zahar, 2016.] p.29

[3] EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. São Paulo, Unesp, 2011.

[4] LUKÁCS, György. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro, civilização brasileira, 1970.

[5] HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo, Loyola, 2013.

[6] DARDOT, Pierre. e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, boitempo, 2016.

[7] JAMESON, Frederick. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, ática, 1995.

[8] ENGELS, Friedrich. Revolution und Konternrrevolution in Deutschland. Em Karl Marx e Friedrich Engels, Werke, v.8 (Berlim, Dietz, 1976) p. 547.) [Ed. Brás. ENGELS, Friedrich. Revolução e contrarrevolução na Alemanha In: A revolução antes da revolução volume I. São Paulo, Expressão popular, 2008.

[9] LUKÁCS, György. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro, civilização brasileira, 1970.

[10] ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas In: Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, Zahar, 2006.

[11] CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 2006.

[12] LUKÁCS, György. Marx e o problema da decadência ideológica In: Marx e Engels como historiadores da literatura. São Paulo, boitempo, 2016.

[13] LUKÁCS, György. O romance como epopeia burguesa In: Marxismo e teoria da literatura. São Paulo, Expressão popular, 2010.

[14] WILLIAMS, Raymond. Meios de comunicação como meios de produção In: Cultura e materialismo, São Paulo, Unesp, 2011.

[15] ENGELS, Friedrich. Revolution und Konternrrevolution in Deutschland. Em Karl Marx e Friedrich Engels, Werke, v.8 (Brrlim, Dietz, 1976) p. 547.) [Ed. Brás. ENGELS, Friedrich. Revolução e contrarrevolução na Alemamha In: A revolução antes da revolução volume I. São Paulo, Expressão popular, 2008.

[16] LUKÁCS, György. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro, civilização brasileira, 1970.

[17] ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1999.

[18] ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1999.

[19] BRETON, André e TROTSKY, Leon. Por uma arte revolucionária e independente. Patrícia Galvão (Org.) São Paulo, Paz e terra, CEMPAP, 1985. p.36

[20] GRAMSCI, Antônio. Cartas do cárcere volume I. Rio de Janeiro, civilização brasileira, 2 vs., 2004.

[21] GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere volume VI: Literatura. Folclore. Gramática. Apêndices, variantes e índices. Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 2003.

[22] MAIAKOVSKI, Vladmir. Poemas. São Paulo, perspectiva, 2002.

[23] EAGLETON, Terry. A função da crítica. São Paulo, Martins Fontes, 1991. p.116

Foto: Concerto da Marisa Monte na ocupação da escola Mourois, no dia 4 de maio de 2016, no Rio de Janeiro.