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OPRESSÕES

Violência contra mulher é regra nas cidades brasileiras

Rio de Janeiro – Protesto no Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher, pelo fim da violência contra as mulheres e contra o PL 5069/13, em frente à Câmara de Vereadores (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Por: Juliana Bimbi, de Porto Alegre, RS

Nessa última semana, teve repercussão uma caso de assédio sexual dentro de um ônibus na capital do estado de São Paulo. Um homem foi preso em flagrante por ejacular no pescoço de uma mulher no transporte público enquanto ela se deslocava para o trabalho. Após ser detido, foi solto pela Justiça de São Paulo e novamente apreendido na manhã deste sábado, dia 2 de setembro, ao assediar outra passageira na região da Avenida Paulista. O agressor já tinha diversas passagens pela polícia por casos similares.

Apesar da repercussão, o relato não choca imediatamente a consciência das mulheres que utilizam algum tipo de transporte nas cidades do país. Segundo levantamento feito pelo Datafolha em 2015, 35% das mulheres dizem já ter sido alvo de algum tipo de assédio sexual ou verbal em locais públicos, sendo o transporte coletivo o principal palco dessa violência. Em 2016, também na capital paulista, foram mais de quatro casos registrados por semana de abuso no transporte público. Considerando os números dos últimos quatro anos, constata-se que essa violência aumentou em 850%. As denúncias ocorrem em qualquer tipo de transporte: metrôs, trens, ônibus de todo o tipo.

Essa realidade não é restrita aos veículos de uso coletivo, também ocorrem em abundância nos meios de transporte particular, como táxis ou os novos aplicativos. Na segunda-feira passada, também veio a público o relato da escritora Clara Averbuck, que contou ter sido estuprada dentro de um carro do serviço Uber, o que desencadeou uma série de outros depoimentos sobre motoristas assediadores nas redes sociais, chegando a viralizar uma hashtag: #MeuMotoristaAssediador. Apesar dessas empresas fornecerem o nome, número de telefone, placa do carro e outras informações sobre os motoristas e alguns não aceitarem profissionais com fichamentos criminais, aparentemente essa política não preveniu, nem diminuiu os casos de violência verbal e física dentro dos carros.

Esses acontecimentos despertaram uma ampla discussão, principalmente no Facebook, desde segunda-feira e também chegaram à voz das mídias tradicionais, ressuscitando um debate sobre cultura do estupro e mobilidade urbana.

É preciso se utilizar dessa repercussão para ressaltar os aspectos banais que a violência contra a mulher tomou no Brasil e esclarecer no que consiste a, tão mencionada pelo movimento feminista, cultura do estupro. 

A lotação excessiva do transporte público nas grandes cidades é apenas uma desculpa para o abuso sexual das “mãos bobas” quando o veículo passa por curvas ou freios bruscos. Observando os dados apontados acima, é perceptível que a violência contra a mulher não tem hora, nem local específicos na sociedade capitalista. Um número absurdo de mulheres é assediada toda semana nas cidades, seja dentro de algum veículo, na rua caminhando, dentro de transportes privados ou dentro de suas próprias casas e locais de trabalho. Violência de gênero no Brasil é a regra e não a exceção e ocorre por uma série de valores difundidos pela sociedade e pelo estado capitalista.

A cultura do estupro consiste em um conjunto de práticas e ideias que ensinam que o corpo da mulher é um objeto a ser possuído e desfrutado pelo homem, queira ela, ou não. É uma ideologia que se justifica pela alegação de que os desejos sexuais dos homens são incontroláveis, fazem parte do instinto animal e, por isso, não tem solução a não ser a culpabilização das mulheres, seja pela roupa, pelo local, por estar sozinha ou alcoolizada em um horário tido como proibido aos corpos femininos. A cultura do estupro se demonstra nitidamente quando as mulheres são humilhadas e sujeitadas a descrenças sobre seus relatos quando prestam queixa em delegacias e quando recorrem à justiça, assim como demonstra o depoimento do Juiz responsável pelo caso do homem que agrediu a passageira no transporte coletivo em São Paulo, que alegou que ela não teria sido sujeitada a nenhum desconforto, apesar de ter acordado com o sêmen de um desconhecido em seu pescoço num dia normal de trabalho.

Essa crença também parte de uma ideia de que as mulheres não pertencem à vida pública e que são naturalmente designadas ao ambiente privado, a cuidar dos filhos e das propriedades do homem, sendo vistas pela sociedade patriarcal apenas com a função de reproduzir o trabalho masculino. Mesmo quando existe a necessidade objetiva de trabalhar fora de casa para sua própria sobrevivência, como sempre foi o caso das mulheres negras e é o caso da maior parte das mulheres brasileiras atualmente, o ambiente externo continua sendo visto como um ambiente em que a população feminina não tem direito, e quando transgridem essa ideia, mesmo obrigadas pelo sistema econômico, são sujeitadas a todo o tipo de violência.

A cultura do estupro se agrava quando, mesmo às mulheres, os relatos de assédio não surpreendem, pois já são vistos como banais e como parte do dia a dia de uma pessoa simplesmente por possuir um gênero que não é o masculino.

A mobilidade urbana sob perspectiva feminista
Além dos aspectos culturais presentes em nossa sociedade, também é preciso falar sobre a mobilidade urbana das mulheres dentro das grandes capitais. É inevitável falar de gênero quando se fala desse tema, tendo em vista que os corpos femininos são impedidos de se locomoverem em segurança, não importando qual o meio de transporte escolhido. O medo e a angústia são impeditivos para que elas saiam de suas próprias casas para cumprir quaisquer que sejam as tarefas, mas são obrigadas a fazê-lo pela sua própria sobrevivência.

Mais do que nunca, é necessário se debater um planejamento urbano para as cidades que também leve em conta o recorte de gênero. Políticas como os vagões femininos, ou os aplicativos que se restringem a motoristas mulheres não são suficientes para dar conta das demandas que existem no nosso país. Nós queremos nosso direito de ir e vir que nunca a nós foi atendido, queremos ter direito a manter nossa integridade física e moral ao nos deslocarmos pela cidade. É preciso parar de tratar esses casos como exceção e enquadrar nossos assediadores como loucos ,ou sofredores de doenças psiquiátricas. As demandas femininas precisam ser levadas a sério e que o Estado admita o caráter misógino por trás dessas ações.

A resistência das mulheres trabalhadoras contra os ataques
Apesar de tudo, há resistência. As mulheres brasileiras protagonizaram grandes ações, como a luta contra Eduardo Cunha em 2016, os atos contra a cultura do estupro acarretados pelo caso do estupro coletivo ano passado no Rio de Janeiro, a luta pela legalização do aborto, o 8 de março que foi palco de grandes ações contra a violência de gênero e contra a reforma da previdência, que atinge principalmente as mulheres em 2017.

Elas foram grande parte das mobilizações contra o golpe e contra as medidas do governo Temer durante o último ano. Mais do que nunca, se coloca a necessidade das mulheres serem linha de frente das lutas pelo direito à cidade e contra os ataques dos governos. A luta é pelas nossas vidas, que são descartáveis dentro de um sistema que utiliza da nossa opressão para nos superexplorar enquanto classe.

Vídeo: ASSÉDIO SEXUAL NO TRANSPORTE, MOBILIDADE URBANA E CULTURA DO ESTUPRO – #MeuMotoristaAbusador

Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil (25/11/2015)