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EDITORIAL

Como Boston mudou a maré contra a direita?

Artigo publicado em Socialist Worker em 21/08/17

Tradução de Caio Dias Garrido

Estimuladas pelo horror em Charlottesville, dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas de Boston para protestar – e os fascistas voltaram para suas casas mais cedo

Ryan Roche – 21 de agosto

 Dezenas de milhares de pessoas se mobilizaram em Boston neste 19 de agosto, em uma magnífica demonstração de solidariedade contra os comícios que a extrema direita e os neo-Nazis têm organizado nas últimas semanas.

Apesar do intenso calor e umidade sufocantes do verão, milhares marcharam e cantaram pelas ruas da cidade. Em torno de 15.000 seguiram por 6 km de Roxbury Crossing ao Boston Common (parque no centro da cidade), onde supremacistas brancos se reuniam. Assim que a marcha chegou ao local os vinte e poucos fascistas que lá estavam já haviam se recolhido com a ajuda de uma forte escolta policial.

Outros 10.000, querendo demonstrar seu posicionamento contra a direita vieram direto ao centro de Boston onde os supremacistas brancos planejavam se encontrar para um comício na escadaria da State House (casa que abriga o governo e o legislativo do Estado de Massachusetts).

A horrível violência neonazista na semana anterior em Charlottesville, Virgínia, fez com que muitos se convencessem de que são responsáveis por se manifestar contra a extrema direita. À medida que os manifestantes se juntavam em Roxbury era possível sentir a raiva e ansiedade pelo que o dia reservava.

Mas assim que a marcha acabou o medo havia desaparecido, substituído pela confiança no poder da solidariedade e um sentimento de alegria de que a mobilização da direita não foi capaz de atingir nenhum de seus objetivos.

A marcha recebeu o apoio de dezenas de organizações da cidade: sindicatos, ONGs, organizações liberais, de esquerda e grupos de ativistas. Em particular a marcha de Roxbury – na qual os membros do Black Lives Matter cumpriram um papel central na organização – reuniu uma força muito maior do que a que a extrema direita vinha reunindo.

Isso deu confiança às organizações como a Massachusetts Teachers Association (Associação dos Professores de Massachusetts) – o maior sindicato do Estado – para que animassem seus membros. Essa tática, combinada com a unidade por um ponto único contra os fascistas, ajudou a organizar um contingente massivo e inspirador.

Quase 40 anos depois dos “busing riots” in Boston –  quando políticos locais marcharam sob a bandeira dos confederados em oposição ao processo de des-segregação[1] – a cidade mostrou que o ódio deve ser contraposto com solidariedade. A vitória nas ruas de Boston precisa se repetir em todos os lugares em que a extrema direita tentar se mobilizar.

“Estou aqui porque meus avós nipo-americanos foram enviados para um campo de concentração durante a segunda guerra”, disse uma moradora local, Ashley, em uma entrevista na qual carregava o símbolo do Black Lives Matter. “O outro lado de minha família é Mexicana, e toda a campanha de Trump caluniou as pessoas que eu amo. Também sinto que devo sair às ruas contra o presidente – como uma mulher e como uma sobrevivente de violência sexual. Charlottesville foi a gota d’água! Precisamos nos erguer! E eu quero construir um mundo melhor para meus filhos.”

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Em maio um grupo de reacionários fez um comício no Common, mas anti-racistas, apesar do grande esforço que fizeram, não conseguiram organizar uma resposta unificada. Os 150 ativistas que foram ao encontro dos neonazistas se encontraram em desvantagem de 2 para 1. Já desta vez – com a morte de Heather Heyer em Charlottesville uma semana antes, tendo os olhos do mundo voltados para as violentas ameaças da extrema direita e para posição de Trump em defesa deles – pessoas de todos os tipos e idades tomaram as ruas para deixar a mensagem de que Boston não vai permitir que este caso se repita. Depois de Charlottesville, o número de pessoas que confirmaram presença no protesto de 19 de agosto pelo Facebook cresceu de algumas centenas para um total de 15.000 somando os dois principais atos que aconteceram – a marcha de Roxbury e o comício na escadaria da State House.

Enquanto isso, algumas grandes figuras da direita, incluindo Gavin McInnes da “alt-reich[2]” Proud Boys[3], anunciou que eles cancelariam uma mobilização então planejada.

Pessoas vieram de Vermont, Maine, do oeste de Massachusetts, Connecticut e Nova York respondendo ao chamado para um esforço contundente para conter os nazistas. Esse alto nível de mobilização gerou a confiança de ativistas que foram centrais para a organização dos eventos – fundamentais para fazer do dia um grande sucesso.

Em Roxbury o comício se iniciou com uma fala de um grupo representando os povos indígenas, que lembraram a multidão de que a terra na qual o país foi construído fora roubada deles, e que os supremacistas brancos não têm o direito de reivindicá-la. A fala seguinte foi de um organizador do Black Lives Matter, que defendeu a transferência do dinheiro da polícia para as escolas públicas sucateadas, e denunciou a rápida gentrificação dos bairros de negros e trabalhadores. Então, Khury Petersen-Smith, da International Socialist Organization, ISO (Organização Socialista Internacional), eletrizou a multidão falando da importância da mobilização para confrontar a extrema direita. “Agora que eles têm alguns amigos na Casa Branca… estão saindo do armário, estão aparecendo e marchando com suas tochas, sorridentes” disse Petersen-Smith, “e nós estamos aqui para dizer que se eles vierem a Boston nós vamos marchar até o Common e arrancaremos esse sorriso de suas caras.”

As organizações socialistas, incluindo a Socialist Alternative, a ISO e a Democratic Socialists of America (Socialistas Democráticos da América) marcharam junto num bloco unificado. Quando a multidão se preparava para sair começou a se espalhar a notícia de que os Industrial Workers of the World (Tabalhadores Industriais do Mundo) e o Boston Socialist Party (Partido Socialista de Boston) iriam se juntar ao ato. Centenas de pessoas acenavam e gritavam das janelas e das calçadas em apoio durante todo o percurso. Nosso grupo estava bem próximo da frente do ato cantando animadas palavras de ordem. Entre as favoritas estavam, “se atacam um de nós, estão atacando a todos!”, “Heather é uma heroína” e “Ih Ih, Ah, Ah, o lixo nazista tem que acabar!”. Por quase duas horas de percurso mantivemos vivos os cantos. Em frente ao nosso forte grupo de 500 pessoas havia uma parede de cartazes com os nomes dos vários grupos socialistas ali mobilizados.

Outro grupo de 2.000 pessoas mantinha um protesto na escadaria da State House. Esse protesto organizou separadamente uma lista de demandas a serem apresentadas, e à medida que as pessoas as pessoas da cidade chegavam iam somando suas vozes no protesto, chegando a formar uma multidão de 8.000 a 10.000 para defender sua cidade dos fascistas. A polícia estima que o total de participantes foi ainda maior chegando a 40.000!

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A participação massiva encheu a multidão de energia, apesar do calor sufocante. Amy Gaidis, que viajou de Portland, Maine, a Boston escreveu no FaceBook no dia seguinte:

Ainda que agora esteja claro que superamos os fascistas em uma escala surpreendente, isso não estava claro no início da marcha. Estávamos nos dirigindo para a Common, mas não sabíamos exatamente o que encontraríamos lá. Estaríamos nós seguindo em direção a um confronto aberto contra um grupo forte e resoluto de direita e seus simpatizantes armados da polícia? Será mesmo isso que enfrentaremos? Todos os que iniciaram o protesto em Roxbury continuarão firmes até o final ou nosso número vai diminuir e ficaremos vulneráveis? Será que os extremistas de direita vão aproveitar a oportunidade para nos aterrorizar mais uma vez?

Havia confiança no que fazíamos, mas a violência de Charlottesville e a experiencia do cotidiano nos assombrava. Eu soube de muitas pessoas que deram um abraço mais forte em seus amados antes de partir para as ruas de Boston.

Ontem foi uma vitória para nosso lado não apenas porque dispersamos e desmoralizamos os supremacistas brancos, mas porque dezenas de milhares de pessoas tiveram a experiência de se erguerem sobre suas convicções e encarar seus medos.

Para conquistar um mundo melhor, livre de supremacia branca, opressão e exploração, serão necessárias mais experiências como a de ontem, mais e mais vezes, em uma escala cada vez maior. Boston foi uma vitória que nos fez avançar um pouco mais. Hoje eu não sinto medo. Eu sinto orgulho e a esperança que vem da solidariedade na ação das massas!

O senso de força e orgulho entre aqueles que marcharam ao lado da justiça está em agudo contraste com a falta de efetividade da extrema direita. No momento em que a marcha de Roxbury chegou no Common, a extrema direita já havia sido forçada a deixar o local. Um morador de Boston que foi sozinho ao Common mostrar seu repúdio aos fascistas contou que ele viu algo em torno de 15 ou 20 deles que estavam participando. Ocasionalmente, ele viu alguns deles indo até a multidão que se opunha a eles para tentar conversar, mas as pessoas não queriam lhes dar ouvidos e eles tiveram que ser escoltados pela polícia para longe dali em um cordão de segurança. Depois de uns 30 ou 40 minutos de falas, o pequeno grupo tentou cantar algumas músicas, que ficaram inaudíveis sob o barulho da multidão.

Aqueles que estavam reunidos no Common souberam que a marcha de Roxbury se aproximava, pois os helicópteros que a filmavam começaram a se aproximar ficando mais barulhentos. Com a chegada do ato, a polícia escoltou a extrema direita para fora do parque e levou-os embora em vans.

Um terceiro protesto, organizado clandestinamente por grupos anarquistas, foi atacado com spray de pimenta pela polícia. Ativistas estão organizando uma petição reivindicando o fim de qualquer acusação contra aqueles que foram presos.

O impacto da brusca mudança no clima político depois do assassinato de Heather Heyer em Charlottesville – e da viralização de um documentário da VICE News sobre supremacistas responsáveis pelo crime – não pode ser exagerado. Nos últimos meses, mesmo depois de a extrema direita e pessoas inspiradas por ela terem cometido assassinatos na Universidade de Maryland e em Portland, Oregon, e de terem deixado uma forca (símbolo racista nos Estados Unidos que representa o enforcamento de negros escravizados) no Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, muitos consideraram que eram ameaças que poderiam ser tranquilamente ignoradas.

Charlottesville mudou isso. Ao mesmo tempo em que é impossível prever os processos de mudança na consciência, temos que nos preparar e fazer com que essa mudança seja possível. A primeira tentativa da esquerda em Boston em se opor à extrema direita em maio foi desanimadora, mas os eventos do 19 de agosto mostraram que a mobilização de massas é efetiva e pode se apoiar na confiança e na organização daqueles que se preocupam com a justiça social.

O protesto que acontecerá no próximo dia 26 de agosto, em Berkeley, São Francisco, pode se inspirar nos eventos de Boston. Nos veremos nas ruas neste fim de semana!

[1]     Nas décadas de 60 e 70 a luta do movimento negro levou à aprovação, na suprema corte, de uma série de leis pondo fim à segregação racial institucionalizada em escolas, no exército, bairros, etc.

[2]     Brincadeira do autor misturando o termo “alt-right” que define o movimento de extrema direita americana com o termo nazista “altreich” que compreendia o território alemão antes de 1938.

[3]     Uma organização de homens de extrema-direita que “se recusam a pedir desculpas por terem criado o mundo moderno”. Consideram-se membros da “alt-right”.