Por: Gabriel Santos, de Maceió, AL
“vida é bela, que as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda opressão, de toda violência e possam gozá-la plenamente.” – Leon Trotsky
Eu tinha 14 anos quando achei na caixa de livro de meu pai um livro meio rasgado, com as folhas mofadas e na sua capa que já estava caindo, um rosto desenhado na cor branca que entrava em contraste com o amarelo da capa. Era o rosto de um homem velho, com uma barba e óculos estranhos. O livro era A revolução permanente na Rússia, li alguns anos depois algumas vezes. Na época me passou despercebido, assim como o diferente nome de seu autor, Leon Trotsky.
Passado o tempo, seis anos depois do meu primeiro contato com Trotsky, transitei por algumas organizações políticas, todas reivindicavam o legado daquele velho ucraniano e me reivindico também um de seus seguidores, eu sou trotskista.
Agora, afinal, o que é ser trotskista quase oito décadas depois da morte de Trotsky? A geração atual (minha geração) não tem nenhuma referencia no que foi a Revolução Russa, no Partido Bolchevique e em seus dirigentes. O nome de Trotsky é para a esmagadora parte do povo impronunciável. Nos setores mais avançados da luta de classe, a referência passa muito mais pela Venezuela e ainda por Cuba do que pela velha Rússia dos bolcheviques. Até mesmo nas universidades, local onde é possível um acesso maior à teoria marxista, suas obras não são tão valorizadas (uma lástima). Então temos que nos perguntar o que é ser trotskista no século XXI.
No dia 21 de Agosto, há 77 anos atrás, foi assassinado Lev Davidovich, ou simplesmente Leon Trotsky. Sua morte foi obra de Ramon Mercader, um agente da KGB sob ordens diretas de Moscou, de onde Stalin implantava seu regime e liquidava toda velha guarda do Partido Bolchevique. Trotsky foi expulso da União Soviética em 1933, passou por Turquia, França, Nouruega, até chegar ao México, seu último lar.
Nestes 77 anos muita coisa mudou, o mundo não é mais o mesmo. Trotsky não conseguiu ver o fim da segunda guerra mundial, a derrota do nazismo e o surgimento de novos estados operários no Leste Europeu. Depois de sua morte, o comunismo chegou ao extremo oriente, tivemos a Revolução Chinesa, a Guerra Popular no Vietnã, a luta de libertação das nações na África e Oriente Médio e o comunismo chegando na América Latina com a Revolução Cubana.
A Quarta Internacional, organização fundada por Trotsky para ser o partido internacional que organizaria diversas seções pelo mundo para conseguir chegar às massas e impulsionar suas lutas até a tomada do poder em seus países não vingou, pelo contrario. Sua história é uma história de crises, rupturas, cisões. Hoje a Quarta Internacional se encontra dividida em pequenos grupos.
O aparato stalinista passou por crises e Stalin se tornou uma figura rejeitada após o Relatório de Khruschov em 1956, mas mesmo assim a burocracia permaneceu e se estendeu por muitos anos. Vieram revoltas populares contra o regime dos PC´s em vários países do Leste, crises econômicas abalaram a burocracia e o aparato caiu, mas não surgiu um poder genuinamente popular, como esperava Trotsky. Pelo contrario, o capitalismo voltou a ocupar os espaços nos quatro cantos do planeta. Não foi uma revolução política que derrubou a velha burocracia stalinista, o capitalismo foi restaurado nos antigos estados operários com ajuda dos antigos Partidos Comunistas.
No mundo do trabalho, tivemos a reestruturação produtiva, que modificou por completo a forma de extrair mais-valia, a composição social e organização da classe trabalhadora, além de abrir espaço para o neoliberalismo. O Estado neoliberal privatizou praticamente tudo, destruiu os serviços públicos e rebaixou o nível de vida da classe trabalhadora, tudo isso enquanto o desemprego aumenta e crises econômicas se tornam parte do cotidiano. A ideologia neoliberal do fim da história praticamente não encontrou resistência durante os anos 90, diziam que o melhor que teríamos era a farsa da democracia liberal e não teríamos como mudar mais a realidade.
A crise econômica atual começou a dez anos atrás e está ai para mostrar que a história não acabou, muito pelo contrario, a luta de classes está se acirrando cada vez mais. A disputa de ideias e das ruas das grandes cidades se intensifica. Velhos monstros saem das tumbas, o fascismo caminha em plena luz do dia, ideias xenófobas e a extrema direita crescem. As privatizações e a destruição do público continuam, assim como crescem a superexploração da força de trabalho. Por outro lado, trabalhadores do mundo todo e seus aliados continuam em resistência.
Porém, as novas gerações não conseguirão apenas com vontade revolucionária, energia e determinação derrotar e superar a exploração e a opressão. Ir para a guerra é importante, mas não podemos ir desarmados, ou sem saber manejar a arma. É preciso conhecer a experiência histórica de luta da nossa classe, conhecer sua resistência e ação nestes últimos 150 anos. Reler hoje, 100 anos depois, os escritos de Trotsky sobre a Revolução Russa e seus desdobramentos, os textos sobre o fascismo, revolução mundial, crises econômicas, movimento negro nos EUA, assim como sobre a organização partidária, é uma experiência importante e são ferramentas importantes para uma luta anticapitalista no nosso século.
Trotsky deixou diversos textos que servem para ajudar a interpretar a realidade hoje, porém não podemos fazer uma simples colagem sobre o que Trotsky escreveu e a nossa atuação décadas depois. Agir assim não tem nada de trotskista.
O Velho acertou muito, porém também errou e suas teses e teorias precisam ser corrigidas ou atualizadas a luz das experiências históricas. Como disse Nahuel Moreno, ser trotskista é ser critico de todos, inclusive de Trotsky.
O principal legado teórico de Trotsky é a formulação da Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado, que coloca que o capitalismo se desenvolve de forma desigual em países diversos, e no interior destes países, utilizando métodos avançados e retrógados. Esta Lei foi a base para sua Teoria da Revolução Permanente.
O método de Trotsky consiste em por um fim entre o antagonismo do programa mínimo (reivindicações de reformas ainda dentro do sistema capitalista) com o programa máximo (a revolução). Trotsky mostrou que o capitalismo em sua fase imperialista é impossibilitado de conceber direitos iguais para todos ou uma democracia real, por exemplo. Estas pautas democráticas, como também o são a reforma agrária e urbana, direito ao aborto, fim do extermínio da juventude negra, em outros exemplos, se chocam com os limites do capitalismo. Sendo assim a tarefa é criar uma série de consignas que oriente os trabalhadores a se chocarem, desde suas reivindicações mínimas e parciais, com a ordem vigente. Um método de Transição que sem ele é impossível enfrentar o capitalismo no século XXI.
Hoje podemos falar em trotskismos. Existem diversas interpretações de Trotsky para todos os gostos e sabores. Como falamos acima, a Quarta Internacional se dividiu em diversos grupos, hoje existem centenas de organizações que se reivindicam trotskistas pelo mundo. Estas organizações muitas vezes vivem de polemicas e de destruição das ações e táticas da corrente que enxergam como inimiga. A cada situação da luta de classes que ocorre, podemos achar uma posição diferente das diversas correntes trotskistas.
Podemos dizer que um dos motivos para a dispersão em diversos grupos trotskistas pode ser a marginalidade do movimento. O stalinismo pós-guerra se fortaleceu, diferentemente do prognostico de Trotsky, que apontava que ele seria superado pela recém fundada Quarta Internacional. A polícia stalinista perseguia trotskistas em todo mundo, os trotskistas eram assassinados ou expulsos dos PC´s, as obras de Trotsky e de toda Oposição de Esquerda eram proibidas. Soma-se a isto o fato do stalinismo ter estado em auge com a expropriação da burguesia no Leste Europeu. URSS e Stalin eram vistos (e se produziam através do aparato burocrático) como heróis. Desta forma, ao trotskismo coube o papel de ficar afastado das massas. Durante décadas que se seguiram o papel de diversos grupos trotskistas do mundo era romper a marginalidade e conseguir chegar às massas.
Com isto, o movimento se voltou a questões estratégicas e as discussões do Programa, surgiram assim as mais diversas interpretações sobre os mais diversos fatos. A atuação na realidade que serviria como um juiz para a política, em muitos casos não foi possível. Na tentativa de romper os muros que os separam das massas, alguns grupos trotskistas abandonaram o programa e capitularam, outros abandonaram a mediação e aplicam em todos os casos a mesma tática, se transformando em seitas. Os grupos se formavam se dividiam e as divergências antes louváveis passaram a ser repudiadas.
Até hoje, o movimento trotskista e o marxismo não conseguiram restabelecer os vínculos entre movimento de massas e as ideias socialistas. O marxismo, como método de transformação da sociedade, parece ainda restrito a pequenos grupos de intelectuais nas universidades, ainda não está interligado com o movimento real dos trabalhadores.
Ser trotskistas no século XXI é ainda afirmar utopias. É acreditar, sonhar e dedicar parte de seu tempo para a superação da sociedade capitalista e construção de uma nova sociedade. É acreditar que única saída para a crise em que a sociedade se encontra é a transformação da mesma, ou seja, uma Revolução.
É acreditar que esta Revolução não pode ser feita em aliança com setores da burguesia nacional, ou por dentro do jogo e da ordem capitalista.
Ser trotskista hoje é também tentar romper o muro que separa as ideias revolucionárias das massas. É tentar organizar o maior número de pessoas contra a ordem atual. Para se afastarmos do isolamento, precisamos abandonar velhos vícios, um deles é a forma de fazer polêmica. Normalmente buscamos destruir o adversário que apresenta ideias diferentes, ao invés de avançar o debate, este método apenas leva a discussões infrutíferas. Devemos buscar pontos de convergência. Ao invés de apenas apontarmos as diferenças que nos separam, podemos procurar algo que nos une, tanto para a unidade na ação quanto para fazer avançar a discussão programática.
As ideias e teses de Trotsky continuam validas, mesmo que a maioria dos movimentos sociais, sindicatos e a consciência da classe estejam sob influência majoritária de aparatos que pregam a conciliação com a burguesia. Ou seja, não existe mais o aparato stalinista, porém ainda existem outros aparatos que separam aqueles que defendem a revolução das massas. Sendo assim o método de Trotsky e suas táticas ainda são válidas, por mais que em alguns casos tenhamos que desenvolve-los e criar novas táticas.
As ideias de Trotsky continuam válidas principalmente porque o sistema capitalista continua cruel e desumano. O número de suicídios aumenta; pessoas morrem de fome enquanto as empresas descartam alimento; pessoas moram nas ruas enquanto casas estão vazias para aumentar a especulação imobiliária; a violência machista mata mulheres; a LGBTfobia continua fazendo vitimas; o genocídio do povo negro continua; as guerras locais estão presentes no Oriente Médio, Ásia, África; povos e mais povos vivem na miséria enquanto 1% da população mundial lucra com as riquezas fruto do trabalho humano. Enquanto capitalismo existir e continuar a se desenvolver, as ideias de Trotsky e de trotskistas como Nahuel Moreno, James Cannon, Ernest Mandel, Pierre Lambert, Tony Cliff, e de outros revolucionários como Lenin, Gramsci, Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, continuarão vivas.
Exatos 77 anos depois de sofrer o golpe fatal, Trotsky ainda vive. Vive porque deixou todo um arsenal que nós, como anticapitalistas do século XXI, devemos utilizar para tentar interpretar e superar os dilemas de nossa época. Nós viemos de longe, e pretendemos avançar ainda mais.
“Me enterrem com os trotskistas, na cova comum dos idealistas, onde jazem aqueles que o poder não corrompeu” – Leminski
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