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OPRESSÕES

Somos todas Maria do Rosário: mexeu com uma, mexeu com todas

Por: Ana Lucia Marchiori, de São Paulo, SP
*advogada de presos e perseguidos políticos, Diretora Executiva do Sindicato dos Advogados de São Paulo e membro do Comitê de Acompanhamento da Sociedade Civil (CASC).

Nesta terça-feira (15), a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou em segunda instância o deputado Jair Bolsonaro por danos morais  à deputada Maria do Rosário. A decisão foi unânime. A condenação de Bolsonaro foi devido a uma entrevista ao jornal Zero Hora, onde afirmou que não estupraria Maria do Rosário pois ela não merecia, “porque ela é ruim, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”. Ainda, Bolsonaro reafirmou sua entrevista em discurso na Câmara dos Deputados. O deputado também postou a entrevista em sua página pessoal no YouTube.

Em primeira instância, o deputado foi condenado a pagar indenização de R$10 mil e a postar a decisão em sua página oficial no YouTube e Facebook, e a publicar retratação em jornal de grande circulação. Decisão que foi mantida por unanimidade. De acordo com a relatora do processo, Ministra Nacy Andrighi, a ofensa feita por Bolsonaro, que afirmou que Maria do Rosário “não merecia ser vítima de estupro, em razão de seus dotes físicos e intelectuais, não guarda nenhuma relação com o mandato legislativo”.

Combater as mazelas da ditadura civil, militar e empresarial no Brasil é fazer com que elas não se repitam hoje. A derrota de Jair Bolsonaro representa uma pequena vitória de todas as mulheres. Somos todas Maria do Rosário, mexeu com uma, mexeu com todas nós.

Depoimentos chocantes de mulheres que foram torturadas e estupradas nos porões da ditadura militar
O estupro era arma de guerra na ditadura militar. “Eu estava sentada em uma cadeira do dragão, nua, amarrada, levando choque no corpo inteiro, ânus, vagina. Enquanto isso, o Gaeta, que era um torturador, estava se masturbando e jogando esperma em cima de mim”. Continua: “A hora que eu caio no chão, ele me põe em uma cama de lona que tinha ali do lado e começa a esfregar meus seios, apertar minha bunda. Isso é uma violência. E assim foram várias vezes, com vários outros torturadores”, relata ex-presa política da ditadura Amelinha Teles.

Amelinha, presa em 1972, garante que o estupro era mais uma das armas utilizadas pela ditadura para torturar as mulheres consideradas inimigas do Estado.

Rose Nogueira, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo. Em seu relato, conta com detalhes o horror da tortura sofrida:

Sobe depressa, Miss Brasil’, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ‘40 dias’ do parto. Na sala do delegado Fleury, num papelão, uma caveira desenhada e, embaixo, as letras EM, de Esquadrão da Morte. Todos deram risada quando entrei. ‘Olha aí a Miss Brasil. Pariu noutro dia e já está magra, mas tem um quadril de vaca’, disse ele. Um outro: ‘Só pode ser uma vaca terrorista’. Mostrou uma página de jornal com a matéria sobre o prêmio da vaca leiteira Miss Brasil numa exposição de gado. Riram mais ainda quando ele veio para cima de mim e abriu meu vestido. Picou a página do jornal e atirou em mim. Segurei os seios, o leite escorreu. Ele ficou olhando um momento e fechou o vestido. Me virou de costas, me pegando pela cintura e começaram os beliscões nas nádegas, nas costas, com o vestido levantado. Um outro segurava meus braços, minha cabeça, me dobrando sobre a mesa. Eu chorava, gritava, e eles riam muito, gritavam palavrões. Só pararam quando viram o sangue escorrer nas minhas pernas. Aí me deram muitas palmadas e um empurrão. Passaram-se alguns dias e ‘subi’ de novo. Lá estava ele, esfregando as mãos como se me esperasse. Tirou meu vestido e novamente escondi os seios. Eu sabia que estava com um cheiro de suor, de sangue, de leite azedo. Ele ria, zombava do cheiro horrível e mexia em seu sexo por cima da calça com um olhar de louco. No meio desse terror, levaram-me para a carceragem, onde um enfermeiro preparava uma injeção. Lutei como podia, joguei a latinha da seringa no chão, mas um outro segurou-me e o enfermeiro aplicou a injeção na minha coxa. O torturador zombava: ‘Esse leitinho o nenê não vai ter mais’. ‘E se não melhorar, vai para o barranco, porque aqui ninguém fica doente’. Esse foi o começo da pior parte. Passaram a ameaçar buscar meu fillho. ‘Vamos quebrar a perna’, dizia um. ‘Queimar com cigarro’, dizia outro.”

O testemunho de Rose Nogueira e de dezenas de outras mulheres expõem a visão neofacista de Bolsonaro. De acordo com estudo divulgado pelo Banco Mundial, é mais fácil uma mulher com idade entre 14 e 44 anos ser estuprada do que ser vítima de câncer ou acidente.

A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que devem ter ocorrido entre 129,9 mil e 454,6 mil estupros no País, em 2015. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 10% dos casos de estupro são notificados à polícia. O crime de estupro é o que apresenta maior taxa de subnotificações no mundo.

Maria do Rosário foi defendida pela advogada Camila Gomes do escritório Cezar Britto Advogados Associados, representado em São Paulo pelo nosso escritório Marchiori & Figueiredo, sempre na defesa das trabalhadoras e trabalhadores, mulheres, negros, indígenas e LGBTs.