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Para além do lulismo: Vamos Sem Medo

Valerio Arcary, militante do MAIS

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por Valério Arcary, Colunista do Esquerda Online

É possível que a tensão entre a eficácia política que representam as organizações e os perigos ideológicos e políticos que encarnam seja insolúvel. Isso pode ser algo com que nós simplesmente tenhamos que nos acomodar. Parece, no entanto, que esta é uma questão que deve ser tomada de frente e que deve ser amplamente discutida, caso contrário, corremos o risco de ser dilacerados em duas frações absurdas, a “sectária” e a “marginal “. O número de pessoas ao redor do mundo que são “ex-militantes”  e que não são filiadas a nada, neste momento, mas que gostariam de alguma forma ser politicamente ativos tem, penso eu, aumentado enormemente depois da decepção do pós 1968. Eu não acho que devemos interpretá-lo como a despolitização dos que perderam suas ilusões, embora isto seja, parcialmente, verdadeiro. É, antes, o medo de que a atividade militante seja eficaz apenas na aparência. [1]

                                                                                                  Immanuel Wallerstein

Aproximam-se os prazos de votação da reforma da previdência. Mas a indispensável unidade para lutar contra as reformas não autoriza concluir que a unidade eleitoral deve ser feita em torno de Lula. Uma parte do petismo reagiu, criticamente, ao lançamento da plataforma Vamos Mudar o Brasil Sem Medo. Isso era previsível. Mas, Lula não pode mais unir a esquerda. Treze anos no governo, os limites de um reformismo quase sem reformas, mais o mensalão e o escândalo da Petrobrás não foram em vão. Se não abrirmos um debate sobre o programa que vá além do que foi o lulismo, o perigo de uma desmoralização da geração que despertou para a luta política depois de junho de 2013 é muito grande.

Nostalgia em política é um sentimento conservador, e não é boa conselheira. Aqueles que ainda querem reviver a experiência lulista se enganam a si mesmos. Pensar que o amanhã será como ontem é o mais perigoso dos erros, porque ignora as mudanças, os deslocamentos incessantes e ininterruptos no tempo. Esse tempo subjetivo da permanência é uma ilusão. Uma ilusão que aprisiona em rotinas mentais. São a raiz profunda dos erros políticos. Ir além das ilusões pode ser cruel, mas esse é o desafio central da tática.

Quando uma organização ou movimento está aquém do tempo histórico deixa o passado governar o futuro, e sucumbe. Quando está além, se ilude que o futuro possa governar o presente, e permanece marginal. A iniciativa do MTST de discussão pública de um programa diferente do programa do Lulismo tem um sentido renovador, e tenta abraçar uma iniciativa reorganizadora para a esquerda.

É verdade que, até agora, não há um plano de lutas à altura da necessidade de enfrentar o desafio de bloquear a votação da reforma da previdência, o que produz alguma angústia. A dificuldade de construir a resistência parece evidente. Ela vai exigir a luta pela frente única. As centrais sindicais estão quietas e sem iniciativa, incluída a CUT. Ninguém pode dizer se o governo Temer conseguirá ou não os 308 votos que precisa para votar mais esta PEC. Mas é bom critério não confiar somente nas pressões parlamentares. Muitas dezenas de milhões de vidas serão prejudicadas em nome das “necessidades do ajuste fiscal”. A direção do PT organiza uma caravana com Lula, pelo nordeste escoltado pelo MST, para demonstrar força social e tentar evitar uma segunda e fatal condenação no TRF de Porto Alegre. Tem todo o direito de o fazer, mas parece pouco.

A história sugere que, talvez, exista um lapso de tempo na forma de atraso entre a emergência de uma ação imposta pela pressão de uma realidade objetiva que amadurece, velozmente, e a capacidade das classes populares de responder à altura da defesa de seus interesses. Nesse sentido, a política está, tendencialmente, atrás da história, enquanto a teoria está à sua frente. Porque se a política se atrasa, a teoria se antecipa. São dimensões muito diferentes: a atividade de pensar e a de agir sobre o mundo. Esta obedece à necessidade de mudar o estado de ânimo das grandes multidões, e convocá-las à luta; aquela, se dedica à análise dos fenômenos, e busca a construção de explicações e previsões.

Foi nesse sentido que Marx cunhou a quase sempre  mal interpretada frase de que “a humanidade não se coloca problemas para os quais as soluções já não estejam reunidas”, ou em vias de maturação. Ela traduz a compreensão das mediações, e a principal é aquela construída pela vontade humana, e não o inverso. Um estreito determinismo é sempre a negação das possibilidades da luta política.

Os partidos das classes populares, enquanto lutam entre si, lutam também para influir sobre os estados de espírito de suas bases sociais, e sobre o humor das bases sociais que lhes são socialmente hostis. Nenhum partido é imune às pressões inimigas. O desencontro pode ser de dupla natureza: ou porque os partidos estão aquém, ou além do desafio histórico. Porque o tempo histórico da política que se define como estratégia, é aquele que faz a mediação entre o presente e o futuro, e esse tempo se articula como hipótese e está sempre em aberto. Está sujeito a redefinições, já que no presente tudo está em movimento, em uma instabilidade que é pouco previsível.


[1] Immanuel Wallerstein, 1968Révolution dans le Sistème Mondial, in Le Temps Modernes, 514/515, mai-juin 1989, p.172)