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O Congresso do Psol e o programa para a revolução brasileira

Valerio Arcary, militante do MAIS

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por Valério Arcary, colunista do Esquerda Online

Em 1875, diante do processo de unificação das organizações socialistas alemães, que deu origem ao Partido Socialdemocrata dos Trabalhadores Alemães, que seria por ele apoiado, Marx fez uma dura crítica ao programa originário do congresso de fundação da entidade. Para ele, se não havia acúmulo ou acordo suficiente entre os grupos para se chegar a um programa mais acabado, seria melhor ter uma carta de princípios provisória, acumulando mais elementos conforme avançasse a luta unificada na nova organização. Afinal, como afirma em uma frase muito conhecida, embora às vezes citada só em sua primeira metade: “cada passo do movimento real vale mais do que uma dúzia de programas”. O complemento da frase lhe dá um sentido mais preciso, pois, “quando se redige um programa de princípios (…) expõem-se diante de todo o mundo os marcos pelos quais é medido o nível do movimento do Partido”. A importância do programa, portanto, era imensa e por isso Marx não mediu esforços em criticar aquele documento inaugural da socialdemocracia. Fundamentalmente porque não era possível concordar com um programa em que não ficasse claro que o objetivo estratégico da luta socialista não era redistribuir riquezas, através da mudança nas relações salariais, mas sim por fim às relações de trabalho assalariado, promovendo a “abolição das diferenças de classe”, através de um processo revolucionário. [1]

                                                                                                                                                                                                                              Marcelo Badaró

O Psol deverá apresentar uma candidatura presidencial própria no ano que vem. Todas as teses apresentadas para o próximo Congresso de dezembro o defendem. Ao fazê-lo, o Psol assume uma imensa responsabilidade: ser útil ao processo de reorganização da esquerda brasileira. Essa percepção comum a todas as teses que disputam o Congresso do Psol revela coragem e maturidade.

Um partido é uma ferramenta ao serviço de um programa ou propostas que expressam interesses de classe. Mas esses interesses não se expressam somente através de um partido, e nem sequer, somente, através da forma-partido. A reorganização da esquerda não passará somente através do Psol. Dependerá, também, do desenlace de processos de decantação nos movimentos sindical, popular, estudantil, feminista, negro, LGBT, ambientalista e outros. Não obstante, o Psol terá um lugar central nessa disputa pelo espaço de representação na etapa pós-PT e pós-lulismo.

Oxalá seja possível, ao contrário de 2014, uma Frente de Esquerda Socialista com o PSTU e PCB, por exemplo. Talvez sim, talvez não. Pode ser que o PCB aceite, mas é quase certo que o PSTU apresentará Zé Maria pela quinta vez.

Estaremos, portanto, diante de dois perigos simétricos ou dois extremos, quando pensamos a reorganização da esquerda e as eleições de 2018. De um lado a tentação “testemunhal super-revolucionária” que ignora a importância da disputa das eleições. Evidentemente, depois de décadas de eleições, de dois em dois anos, já ficou mais que demonstrado que nenhuma transformação estrutural poderá acontecer através de eleições. Mas isso não permite concluir que a disputa política pela consciência de milhões de trabalhadores e jovens no terreno eleitoral não seja indispensável. De outro lado o projeto, perigosamente, ultimatista, que agiganta o desafio eleitoral a “tudo ou nada” ou uma estratégia permanente: vencer ou vencer as presidenciais com Lula.

O futuro da esquerda não passa nem por um projeto sectário de autoproclamação super-revolucionário, nem pela candidatura de Lula. Devemos defender o direito de Lula se candidatar contra a operação judicial que o criminaliza. Trata-se de um direito democrático. Mas o futuro passa pela defesa de outro programa. O lulismo e o PT não passaram a prova da história.  A questão é qual deve ser este novo programa. Da maior ou menor clareza deste debate dependerá o futuro da esquerda e da estratégia da revolução brasileira. Crises não nos faltarão. Basta termos paciência histórica. O capitalismo não vai fazer do Brasil um país melhor e menos desigual. A questão de todas as questões é saber quais propostas apresentamos como soluções para a crise que virá, ou seja, qual deve ser o novo programa. Esse é o maior desafio do Congresso do Psol.

Ninguém pode prever hoje o cenário eleitoral do ano que vem. Dependerá de muitos fatores. Dependerá, por suposto de quem serão os candidatos, algo neste momento, imprevisível, em grande medida. Dependerá do contexto econômico e social, sobretudo. A economia brasileira vai ou voltar a crescer antes das próximas eleições? Talvez sim, talvez não. Dependerá do contexto externo, da resistência proletária e popular à aprovação da reforma da Previdência, da apresentação da nova denúncia contra Temer, das novas delações premiadas de Cunha e Funaro, enfim, incontáveis variáveis.

Há, contudo, irrefutáveis evidências históricas empíricas de que existe uma relação entre o movimento da economia e da política. Períodos de crescimento econômico, em geral, favorecem a estabilização da dominação capitalista. Mas fases de instabilidade política inibem, também, os investimentos. A burguesia é prudente. A precipitação de crises econômicas, como aquela que sacudiu o mundo há dez anos atrás, favorecem maior turbulência social, porque é nessas horas que a classe dominante descarrega o custo social dos ajustes sobre os trabalhadores e as massas populares. Mas qualquer exagero nesse terreno cheio de armadilhas é muito perigoso. A vida não cabe dentro de esquemas simples, o que diminui a possibilidade de prognósticos sem enorme margem de erros.

Um dos perigos é o politicismo e o outro é o catastrofismo. Os politicistas tendem a desconsiderar as determinações econômicas. Os catastrofistas as exageram. O tempo da política é diferente dos tempos da economia. É sempre, em alguma medida, o tempo breve do presente, das decisões que são iminentes, que não podem ser adiadas. Quando uma classe dominante dependente aceita, incondicionalmente, seu estatuto subordinado para atrair investimento estrangeiro e revela, portanto, sua decadência, ela renuncia à perspectiva de um projeto próprio. Tem avançado, depois do golpe e posse de Temer no Brasil, uma estratégia de recolonização na América Latina e, praticamente, não encontrou, pelo menos ainda, uma resistência burguesa expressiva.

Nesse sentido, a burguesia brasileira é estéril de futuro. Governa para amanhã, às custas da imposição de sacrifícios inomináveis, mas não pode confessá-lo. Ela perde a lucidez de que os projetos devem inspirar a política: fica prisioneira da inércia e é incapaz de iniciativa, embriaga-se com a velocidade das decisões. Governa, portanto, para preservar o passado, e não para construir o futuro, o que é o mesmo que reduzir-se à estreiteza da defesa exclusiva de seus interesses. Semeiam ventos, colherão tempestades, ensina a sabedoria popular. O paradoxo é que a inércia, a política da conservação, é a paralisia do tempo, mas a crise social é a sua aceleração. Uma classe que é, historicamente, improdutiva, mas que permanece no poder exige de seus partidos a ilusão de um projeto que não pode ser senão uma nostalgia de passado. Ou seja, uma caricatura do que já foi, ou uma romantização do que deveria ter sido. Ela vive a urgência da crise, a vertigem acelerada da mudança, e levanta os olhos para o futuro com uma ansiedade de passado, isto é, de estabilização e ordem.

Os seus partidos são prisioneiros desta angústia, e vivem a armadilha do conflito entre o necessário e o impossível. Impossível, porque não será possível impor condições asiáticas de exploração sem semear uma explosão social. Ninguém pode prever quando ela virá. Por isso o ajuste fiscal de Meirelles é gradualista. Eles têm medo, porque não esqueceram junho de 2013. Uma explosão social não é o mesmo que a abertura de uma situação revolucionária, mas é uma ante-sala.

Por último, é importante lembrar que a situação revolucionária para a qual nos preparamos, mas não sabemos quando virá, é, também, aquele momento único em que as classes dominadas descobrem a política como o terreno de sua libertação, e reúnem irreprimíveis forças para abrir o caminho para a mudança de baixo para cima. É somente nessas circunstâncias que as amplas massas esmagadas sob o peso da luta pela sobrevivência buscam de forma sustentada, na sua unidade e mobilização e, na esfera da ação coletiva uma saída política para a crise da sociedade.

Elas também vivem o desajuste entre existência e consciência, e o vivem de forma aguda e exacerbada. Só existem como atores políticos quando se libertam dos fantasmas do passado que governam as suas consciência. Mas o caminho de sua expressão política independente é muito mais difícil. Não possuem a sabedoria que o exercício do poder trouxe através de gerações às classes proprietárias: a relação entre os seus destinos privados e os dramas históricos em que estão envolvidas só se revela em situações excepcionais.

Esse processo, necessariamente, lento, não possui atalhos, não se resolve de fora, é o caminho de uma experiência que se constrói na luta, e através da luta. Mas a luta é imprevisível, os seus desenlaces não aceitam prognósticos fáceis, e a consciência flutua de acordo com as sucessivas alternâncias de vitórias ou derrotas. Exacerba-se o paradoxo central da política: o que opõe necessidade à possibilidade. Ou seja, o que revela que a vontade governa, mas não domina o sentido da mudança. O conflito é irredutível. Os partidos são a expressão concentrada deste conflito. Agem a partir da defesa de interesses, que se expressam em programas, é certo, mas esses também mudam.

Um programa é uma linha tênue que une fins e meios, o presente e o futuro, uma unicidade de tempo que só existe como possibilidade, e que só tem perspectiva como instrumento de mobilização na luta pelo poder. É nesse sentido, e somente nele, que Lenin cunhou a célebre, e também mal interpretada frase: “fora do poder, tudo é ilusão”. Ao contrário das representações políticas da classe dominante, os partidos das classes populares, quando perdem a vocação de luta pelo poder, quando renunciam ao “instinto do poder”, perdem tudo. As fórmulas teóricas que separam consciência e vontade, ou consciência e ação são estéreis. Consciência, como consciência de classe em construção e ação revolucionária são indivisíveis, e se materializam em algum tipo de organização que busca perenidade, permanência. Partidos têm que ser úteis à defesa dos interesses de classe que representam. Não são um fim em si mesmos.

A forma-partido, um tipo especial e complexo de organização, é aquela que corresponde à necessidade de luta pelo poder: fora de uma situação revolucionária, os mais variados tipos de regime de partido são compatíveis com a resistência sindical e com a luta parlamentar. Mas é diante da crise revolucionária que a política assume as suas formas “heroicas”. As classes em luta se preparam para um inadiável desenlace que as convoca para o combate frontal. Teriam-no evitado, se fosse possível. As classes proprietárias não mais são capazes de exigir os sacrifícios que antes apareciam perante as outras classes como toleráveis. Ou seja, o seu projeto não tem mais legitimidade, justamente porque o descompasso entre a promessa de futuro e a ruína do presente colocou o Estado, sob o seu controle, em ruptura com a sociedade. E nesta os trabalhadores e as outras camadas populares emanciparam-se do seu domínio hegemônico e, assim, deslocaram as relações de força. O que, politicamente, corresponde à dupla compreensão de que o possível para a burguesia é desnecessário, e que é o necessário para as massas é inadiável.

[1] K. Marx e F. Engels, Crítica ao Programa de Gotha, in Obras Escolhidas, vol. 2, São Paulo, Alfa-Ômega, s.d., p. 207.