Movimento, mobilização e ação coletiva: contribuição ao debate da esquerda socialista no Brasil

Por: Marcelo Badaró Mattos (NOS)*

O debate sobre a questão da organização política da classe trabalhadora, apresentado na Nota anterior, nos leva necessariamente para a discussão sobre quais os caminhos possíveis para mobilizar a classe e impulsionar sua ação coletiva numa direção que desafie o capital e o Estado burguês. A ideia de movimento social, ganha assim importância em uma dupla dimensão: como movimentos/organizações que atuam para buscar a resolução de problemas específicos que atingem a classe (nas relações de trabalho, nos locais de moradia, no cotidiano da vida de uma forma geral); e com o sentido mais amplo das mobilizações e ações coletivas, ou seja das lutas sociais, de uma época.

O movimento “como um todo”

Nesse sentido mais amplo, o sociólogo inglês Colin Barker retoma a ideia corrente no século XIX, expressa inclusive por Marx e Engels, que não definia “movimento social” como um protesto ou contencioso político singular, mas como uma tendência geral das lutas de uma determinada fase da história. Assim, “O ‘movimento social´ era a expressão sumária para variadas formas e manifestações de enfrentamento populares ao desenvolvimento capitalista em curso. Ele incluía, sem tornar-se equivalente, inúmeros movimentos de trabalhadores.”[i]

Nessa perspectiva de encarar o “movimento como um todo”, longe de identificá-lo com uma organização ou ação específica, Barker defende que deva ser percebido como uma “rede”. O que o leva a encarar a heterogeneidade dos movimentos, bem como suas oscilações. Daí que, “assim como uma renda, redes de movimentos podem ter múltiplos padrões; elas consistem em diversos agrupamentos, organizações, indivíduos e assim por diante, entrelaçados de maneira variada em relações de cooperação e (algumas vezes) antagonismo.”[ii]

Tendo em vista tais elementos diversos (e em alguns momentos conflitantes), o movimento social seria marcado por pressões contraditórias. Só a partir do balanço da correlação de forças entre “ciclos de protesto” (elevação do número de ações coletivas e grupos envolvidos, em um determinado período de tempo) e “ciclos de contenção” (resultantes de respostas contrária a essas mobilizações), poderíamos definir o potencial de confrontação social contido em tais processos. Tendo em vista que o termo “ciclo” pode ser associado a algum padrão cíclico regular no intervalo de tempo ou nas suas dimensões, o que não é absolutamente o caso em se tratando do movimento social, Barker opta por definir tais oscilações como “ondas”. A imagem procura captar justamente o sentido de movimento inerente a tais formas de protesto coletivo, percebendo que “consistem em sequências complexas de avanços e recuos, saltos e momentos de paralisia aparente, expansões e contrações, picos e derrocadas.”[iii]

Cabe, além disso, lembrar, como o faz o historiador holandês Marcel van der Linden, que nesse âmbito dos movimentos sociais como um todo, “durante muito tempo, a manifestação mais importante foi a dos diferentes movimentos operários nacionais, com a consequência de que nos séculos XIX e XX ‘movimento operário’ e ‘movimento social’ foram termos regularmente utilizados como sinônimos”.[iv]

Sindicatos e outros movimentos da classe trabalhadora

Assim, o primeiro movimento social a que normalmente fazemos referência é o movimento sindical. As lutas coletivas de grupos profissionais específicos da classe trabalhadora, ou da classe em seu conjunto num determinado território, relacionadas aos salários, condições de trabalho, direitos trabalhistas e etc., passam necessariamente pelos sindicatos. Razão pela qual a tarefa de organizar e mobilizar os diferentes grupos de trabalhadores e trabalhadoras através das organizações sindicais permanece sempre entre as prioridades da militância socialista. Sabemos, porém, de algumas limitações da luta sindical, entre as quais duas parecem mais importantes.

A primeira delas decorre de um processo contraditório típico da luta no interior da ordem instaurada pelo capital. O direito a criar sindicatos e a negociar coletivamente, através deles, com os patrões e o Estado foi uma conquista duramente arrancada pela classe trabalhadora, através de grandes greves e mobilizações ao longo dos séculos XIX e XX. Por isso mesmo, nos cabe defender incondicionalmente o direito à sindicalização e à negociação coletiva contra todos os retrocessos que, nos últimos tempos, governos e classes dominantes procuram impor. Entretanto, como ocorreu em outras esferas da vida política e social, a cada conquista das lutas de trabalhadores e trabalhadoras, o Estado procurou impor limites, que passam não apenas pela repressão, mas também pela incorporação ao jogo do capital.

Com os sindicatos, a institucionalização e a burocratização tem sido a tendência dominante de contenção das lutas há muito tempo. Através de legislações específicas, enquadra-se o direito de negociação coletiva, criando mecanismos de “regulação dos conflitos”, como a Justiça do Trabalho ou as câmaras/comissões/conselhos de negociação “tripartite” (patrões, empregados e governo), tentando conferir ao Estado (burguês) a aparência de um órgão neutro, que arbitra os conflitos com imparcialidade. Se eventuais conquistas parciais podem ser conseguidas por essas vias, que por isso mesmo não podem ser abandonadas pelas organizações sindicais, seu sentido mais amplo é o de canalizar as demandas dos trabalhadores para espaços institucionais de amortecimento do conflito de classe. Isso pode ser ainda pior quando o Estado regula o próprio funcionamento dos sindicatos, como ocorre no caso brasileiro – em que dede os anos 1930, com pequenos ajustes, vigora o modelo do sindicato único, com o registro atribuído pelo Ministério do Trabalho. Acrescente-se aí o acesso a recursos gerenciados pelo Estado – o imposto sindical, as verbas dos Fundos (FGTS e FAT, por exemplo), no caso brasileiro; a gestão de fundos previdenciários em outras situações nacionais – para garantir um significativo grau de atrelamento das representações dos trabalhadores a esse mesmo Estado.

Transformados em gestores de aparatos sindicais mais afeitos aos caminhos institucionais de negociação do que à mobilização direta das bases para a luta coletiva, muitos dirigentes sindicais encontram vantagens materiais e políticas em permanecerem à frente desses aparelhos, deslocando-se gradativamente das suas origens sociais e de suas bandeiras políticas originais. Ao tomar a auto-preservação à frente do aparelho como prioridade número um de sua atuação, a direção sindical burocratiza-se, ainda que seu discurso político possa ser aqui e ali mais radicalizado.

Não há antídoto totalmente seguro para essa tendência à institucionalização dos sindicatos e burocratização de suas direções, mas o caminho para evitar que tal tendência se realize completamente passa, necessariamente, pelo programa de lutas a ser defendido e praticado pelas entidades sindicais. A velha fórmula da combinação entre “defesa dos interesses imediatos e históricos” da classe é sempre atual, ou seja, o sindicato existe para lutar desde o local de trabalho pelas questões relacionadas à segurança e condições de trabalho assim como pelas pautas salariais, mas deve fazê-lo buscando sempre alertar as bases para os limites da luta no interior do capitalismo. A articulação entre o maior conjunto possível de sindicatos em centrais sindicais com o horizonte socialista e a capacidade de articular lutas intercategoriais na direção das mobilizações do conjunto da classe é, portanto, essencial.

Há, porém, uma segunda limitação das organizações sindicais que, na atualidade, dado o quadro de precarização e fragmentação do proletariado, discutido em outra destas Notas, torna-se ainda mais significativa. Os sindicatos representam, principalmente, os trabalhadores e trabalhadoras com vínculos formais de trabalho. Podem e deveriam empreender sempre um enorme esforço para representar ainda que parcialmente as camadas da categoria já aposentadas e até mesmo as parcelas desempregadas de determinado grupo profissional. Deveriam se esforçar, também, para unificar as lutas de quem possui contrato com as grandes empresas de um determinado setor e as trabalhadoras e trabalhadores que “prestam serviços” como terceirizados naquele mesmo setor. Mesmo assim, como vimos, no caso brasileiro cerca de metade da força de trabalho é empregada informalmente, não tendo as organizações sindicais muitas chances de representá-las.

No entanto, embora seja muito difícil que os sindicatos os representem adequadamente, esses setores fazem parte da classe trabalhadora e como tal devem e podem se organizar e mobilizar – e de fato se organizam e participam de mobilizações. Embora não estejam concentrados em empresas, fazendo das ruas seu local de trabalho, estão concentrados nem determinados territórios de moradia e sociabilidade, especialmente nas favelas e periferias das grandes cidades.[v]

Não é fortuito que, após junho de 2013, tenha ocorrido um crescimento do número de greves no país,[vi] mas tenham sido impulsionados também movimentos sociais da classe trabalhadora, não sindicais, com destaque para a luta pela moradia, tendo à frente especialmente o MTST. Com todas as suas contradições, incluindo a disputa das ruas pela direita a partir de um certo momento, as “jornadas de junho” apresentaram uma pauta do conjunto da classe trabalhadora – o transporte urbano, a resistência contra a violência policial, a reivindicação de mais verbas pra saúde e educação – que unificava interesses imediatos tanto dos setores formais quanto informais, tornando visível a sensação de que a alardeada “inclusão” pelo consumo e pela assistência focalizada, naqueles (até ali) 10 anos de governos liderados pelo PT, não poderia calar indefinidamente a reivindicação de direitos sociais universais. Não havia naquele contexto, entretanto, organização ou conjunto de organizações da classe que pudessem unificar aquelas demandas dispersas das ruas em um programa e centralizar a luta em direção a sua efetivação.

Não cabem ilusões sobre uma suposta “autonomia” maior dos movimentos sociais, ou um perfil mais “de base”, que lhes tornariam menos propensos aos males da institucionalização e burocratização que atingem os sindicatos. Basta lembrar que ao longo dos anos de governos liderados pelo PT a incorporação de movimentos sociais à ordem, com muitos transformados mesmo em correia de transmissão do governo, foi generalizada. Também nesse caso, perder de vista as articulações necessárias entre as demandas específicas dos setores representados por cada movimento e os objetivos anti-sistêmicos da classe como um todo é um risco sempre presente.

Tendo em vista essas características da classe trabalhadora, que impõem a organização não apenas nos locais de trabalho, mas também nos territórios sociais em que a força de trabalho se reproduz (moradia, alimentação, lazer e etc.), a articulação em entidades, mesmo as centrais, exclusivamente sindicais tende a ser insuficiente para articular lutas imediatas e históricas do “conjunto da classe”. Daí a importância da proposta original da Central Sindical e Popular-Conlutas, de organizar não apenas sindicatos, mas também os diversos movimentos sociais que atuam em lutas relacionadas ao conjunto da experiência de vida coletiva da classe trabalhadora. Realizar a proposta é muito mais difícil que apresentá-la, como temos observado na construção da CSP. O passo inicial, entretanto, foi dado e nos cabe avançar nessa direção.

Mobilização

Não é fortuito que a maior mobilização social em mais de duas décadas – as “jornadas de junho” de 2013 – tenha acontecido de forma mais ou menos “espontânea”. Ou seja, embora por trás das primeiras passeatas contra os reajustes das tarifas de transporte urbano estivessem lutas de cerca de uma década em várias capitais brasileiras, impulsionadas por movimentos de características mais “horizontalizadas”, com uma base social predominantemente estudantil, as dimensões de massa que os protestos tomaram ao longo daquele mês não decorreram da convocação de nenhuma organização específica, ou de um conjunto de organizações articuladas. Partidos de esquerda e centrais sindicais não tiveram papel nas convocações e foram mesmo hostilizados pela maioria dos manifestantes, em parte como consequência do desgaste dos governos petistas – e da associação no senso comum de toda a esquerda com o PT – e em parte por conta da articulada intervenção das representações da classe dominante buscando dirigir o foco dos protestos para um apelo “a-partidário” (ou mesmo anti-partidário) contra a corrupção.

Nesta altura cabe uma comparação entre momentos diferentes de “ondas de protesto” e “redes de movimentos”, para usar as expressões de Barker citadas no início desta Nota. Na década de 1980, as grandes mobilizações que impulsionaram a campanha das “Diretas Já!” e as quatro greves gerais do período, para ficar nos exemplos mais importantes, unificaram uma parcela muito significativa da classe trabalhadora a setores sociais mais amplos, numa articulação em rede que teve à frente o movimento sindical, porém articulado a um conjunto significativo de outros movimentos sociais. Vários fatores podem explicar o porquê desse tipo de mobilização. De um lado o contexto de luta pelo fim de uma ditadura que já durava duas décadas, que alargava as margens para alianças sociais mais amplas em torno da reivindicação de retorno à democracia. Por outro lado, é indubitável que a direção política maior das lutas da classe trabalhadora naquele período, representada pelo PT e por seus militantes na CUT e em outros movimentos, possuía uma intervenção marcada pelo compromisso de classe explícito e por práticas combativas, que desapareceram progressivamente nas décadas seguintes, conforme o partido se institucionalizava e burocratizava. Mas, se voltarmos nossa atenção para o “trabalho de base”, cabe marcar uma outra diferença significativa entre os momentos históricos.

Desde os anos 1970, e ao longo de toda a década de 1980, formaram-se movimentos sociais que se apoiaram em instituições e numa “matriz discursiva” que valorizava a decisão coletiva e a organização pela base.[vii] A estrutura e as fontes principais dessa matriz foram fornecidas pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEB), estimuladas pelos setores progressistas da Igreja Católica (afinados com a Teologia da Libertação). O avanço reacionário na alta cúpula da Igreja, desde o Vaticano, a partir de então, quebrou a espinha dorsal daquele trabalho de base, numa época (a partir dos anos 1990) em que também já começavam a ser vergadas a combatividade do PT e dos sindicatos ligados à CUT.

A quebra das CEBs e dos movimentos por ela impulsionados serviu para afastar a Igreja Católica não só das parcelas mais organizadas, mas também das mais precarizadas da classe trabalhadora. Se nas lutas de trabalhadores rurais a Comissão Pastoral da Terra continuou e continua representando um instrumento a serviço da resistência, nas favelas e periferias das grandes cidades o encolhimento do catolicismo progressista abriu espaço para a ascensão neopentecostal. Conforme dados do IBGE, sistematizados por Ricardo Mariano, “os evangélicos perfaziam apenas 2,6% da população brasileira na década de 1940. Avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960, 5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1991 e 15,4% em 2000.”[viii] O crescimento continuaria na década seguinte. Como cresceram também os “sem religião” e os adeptos de “outras religiões”, o avanço evangélico deu-se sobretudo sobre um recuo do percentual de fiéis católicos, pois “entre 1980 e 2010, os católicos declinaram de 89,2% para 64,6% da população, queda de 24,6 pontos percentuais, os evangélicos saltaram de 6,6% para 22,2%, acréscimo de 15,6 pontos”.[ix] Seu crescimento percentual, somente entre 2000 e 2010, foi cinco vezes maior que o da população brasileira como um todo. Do ponto de vista do perfil social, no caso das denominações pentecostais e neo-pentecostais, “permanecem avançando, sobretudo, na base da pirâmide social: 63,7% dos pentecostais acima de 10 anos ganham até um salário mínimo, 28% recebem entre um e três salários e 42,3% dos acima de 15 anos têm apenas o ensino fundamental incompleto.”[x]

As diferentes denominações evangélicas (aqui incluídas as protestantes históricas, pentecostais e neo-pentecostais) possuem distintas concepções religiosas e políticas; heterogeneidade que, por óbvio, é ainda mais visível quando pensamos nas dezenas de milhões de fiéis dessas religiões.[xi] Ainda que consideremos essa heterogeneidade, há entre as denominações pentecostais/neopentecostais o predomínio de uma concepção teológico-política conhecida como “teologia da prosperidade”, que sustenta uma ideologia de adaptação à ordem por meio do esforço individual e alicerça uma expansão empresarial das igrejas em diversos setores econômicos, particularmente no das telecomunicações, acoplada a um projeto político orientado para a ocupação de espaço no aparelho de Estado por parte de lideranças religiosas com posturas conservadoras em relação aos costumes.[xii]

Interessa-nos pensar aqui o que permitiu a esses setores que poderíamos definir como empresarial/religiosos a avançarem sua influência sobre contingentes significativos das parcelas mais precarizadas da classe trabalhadora urbana brasileira. Entre as razões, com certeza aliam-se: uma estrutura organizativa tentacular, que se irradia pelos territórios urbanos mais empobrecidos a partir do estímulo gerencial ao “empreendedorismo” dos pastores, mas com cadeias de comando centralizadas (no caso das grandes denominações, que predominam); o investimento e a eficácia de seus instrumentos de comunicação de massa (não à toa investem fortemente em telecomunicações); a força simbólica de suas formas rituais, que incorporam elementos tanto do catolicismo popular quanto das religiões de matriz afro-brasileira (embora no mais das vezes as combatam abertamente); e uma capacidade de criar – através da prestação de serviços e do espírito de pertencimento ao grupo – solidariedade comunitária em territórios marcados pela violência e pela ausência de perspectiva de futuro para a maior parte de seus habitantes.

Esta última característica não pode passar despercebida para a esquerda socialista. Se o projeto de transformação social que defendemos depende da capacidade de organização e mobilização para a luta do conjunto mais amplo possível da classe trabalhadora – setores urbanos e rurais, formalizados ou precarizados, sem distinção de sexo/gênero, geração, raça ou origem étnica -, a capacidade de criar alternativas reais de solidariedade comunitária, especialmente entre os setores mais precarizados da classe, é essencial.

Tornou-se quase um lugar comum – muitas vezes, inclusive, com uma conotação de crítica direta à esquerda socialista por parte de setores comprometidos com o projeto petista – a afirmação de que as organizações socialistas não fazem trabalho de base e não falam aos setores mais pauperizados do proletariado, que enfrenta a dramática realidade da violência institucionalizada e da precariedade estrutural nas favelas e periferias dos grandes centros. Como em todo lugar comum, há um fundo óbvio de verdade nessa afirmação. A origem desse afastamento, contudo, está relacionada ao giro das direções políticas construídas nos anos 1980, ligadas em sua maioria ao PT, voltando-se prioritariamente para a luta institucional, ao mesmo tempo em que os instrumentos de organização de base e luta combativa disseminados pelas CEB foram desconstruídos, a esquerda organizada, quer nos sindicatos, quer nos partidos que mantiveram um horizonte socialista, perdeu muitos dos vínculos com os movimentos desses setores da classe. Contribuiu para isso a política deliberada do Estado de, através da ação violenta de seu aparato policial-repressivo, conter o potencial disruptivo desses territórios, cercando-os e guetificando-os, algumas vezes literalmente, como atestam os “muros ecológicos” e os “isolamentos acústicos” construídos em favelas carentes de esgoto sanitário e outras obras públicas de maior impacto social. Assim como a questão da mudança nos paradigmas teológico/políticos já comentada. O desafio de recompor tais vínculos envolve capacidade de comunicação e mediações.

O primeiro passo para recompô-los pode ser reconhecer que, apesar do isolamento que o Estado procura impor, existem hoje movimentos importantes de contestação à ordem no interior dos territórios de moradia e sociabilidade das parcelas mais precarizadas da classe, embora muitas vezes desconectados das organizações da esquerda socialista (mas nem sempre). É com esses movimentos que as organizações deveriam procurar travar maiores relações, sempre respeitando sua autonomia. A que movimentos me refiro? Há desde a luta pela moradia, já mencionada, até os movimentos contra a violência policial, passando por uma multiplicidade de outras formas de organização e defesa dos interesses dessa parcela da população, entre as quais destaco duas, pelo seu poder de comunicação: refiro-me aos coletivos culturais (como os ligados ao movimento hip-hop, em seus aspectos de música, poesia, dança, pintura mural – grafite – e etc.) e aos meios de comunicação comunitários.

No primeiro caso, dos coletivos culturais, a dimensão de crítica à ordem do capital é destacada através de uma linguagem e de um conteúdo que dialogam diretamente com os referencias da parcela mais jovem da população, criando ainda alternativas de sobrevivência em empreendimentos coletivos voltados para a produção e difusão cultural, quase sempre espremidos entre a repressão policial e a pequena chance de incorporação pelo mainstream da indústria cultural. No caso da comunicação popular/comunitária, também vale destacar a linguagem que dialoga mais diretamente com a realidade desses contingentes da classe, combinada ao esforço em falar do conjunto da experiência de vida – trabalho precário, moradia na favela e periferia, demandas relativas a direitos sociais, violência policial, cultura e lazer – desses setores, furando o cerco da mídia empresarial, que não os menciona, a não ser para fortalecer uma associação entre crime e favelas/periferias, que busca justificar a violência policial.[xiii]

Essa militância já existente dos coletivos culturais e de comunicação comunitária, pode ser um caminho para a mediação necessária à reconstrução de laços mais orgânicos entre as organizações de esquerda e os movimentos da classe nos seus territórios mais precarizados. Outro caminho inescapável, e de certa forma já mencionado aqui quando do comentário sobre a CSP-Conlutas, é o da construção de pontes mais sólidas entre o movimento sindical e outros movimentos sociais. A construção da Frente Povo Sem-Medo, por iniciativa do MTST é um passo nessa direção, embora seu caráter conjuntural – é uma frente de lutas contra o governo Temer e suas políticas de ataque aos direitos da classe trabalhadora – e a atuação dúbia das organizações dirigidas pelo projeto “Lula 2018!” em seu interior, trabalhem contra a possibilidade de que possa gerar algo mais sólido no futuro. Sintomaticamente, a iniciativa política, ao contrário do que ocorria nos anos 1980, partiu de um movimento social não sindical, que é a principal força dirigente da frente. Os sindicatos, porém, possuem maior estrutura e muito mais recursos para impulsionar redes de movimentos. Para isso precisam compartilhar sua estrutura com movimentos representativos dos setores mais precarizados. Uma central de sindicatos e outros movimentos deve ter sempre esse objetivo em mente, mas cada sindicato pode fazer isso em sua área de atuação ou na região em que se insere.

Um exemplo significativo, com o qual pretendo concluir, é o da comunicação. Todo o trabalho ao qual a esquerda tradicionalmente se referiu como “agitação e propaganda” depende de uma articulação orgânica com representações dos setores mais amplos da classe trabalhadora, mas também de um trabalho de produção de informação alternativa à da mídia empresarial. Se a dimensão das grandes corporações do setor é inalcançável hoje para as organizações da classe trabalhadora, é preciso reconhecer que dispomos de recursos para fazer muito mais do que fazemos. Cada departamento de comunicação sindical possui um conjunto de pautas econômico-corporativas de sua categoria profissional – datas-base, negociações cotidianas, etc. -, do qual tem que dar conta, sem dúvida. Porém, se além dessas questões, reservasse espaço para outras pautas e disponibilizasse tempo e especialistas para buscar articular uma rede mais ampla de comunicação entre entidades sindicais e de outros movimentos, com certeza disporíamos de recursos e profissionais qualificados para produzirmos muito mais e melhor informação, análise com conteúdo formativo e material de mobilização.[xiv] Nesse caso, se os sindicatos possuem mais estrutura, os movimentos culturais e de comunicação comunitária possuem muito a ensinar sobre a adequação da linguagem, para que deixemos de falar o dialeto da militância e consigamos dialogar com os 99% que queremos mobilizar.

Notas

[i] Colin Barker, “O movimento como um todo“: ondas e crises, Revista Outubro, n. 22, 2014, p. 9.

[ii] Ibidem, idem, p. 9.

[iii] Ibidem, idem, p. 15.

[iv] Marcel van der Linden, “European social protest, 1000-2000”, in Stefan Berger and Holger Nehring, The history of social movements in global perspective, London, Palgrave Macmillan, 2017, p. 198.

[v] Estimativas de 2014 indicam que 29% da população brasileira vivia nas periferias e favelas das grandes cidades. A esse respeito ver Thiago Borges, “Quase um terço dos brasileiros vive nas periferias urbanas”, http://bit.ly/2sj3THb, último acesso em junho de 2017.

[vi] Segundo o DIEESE, em 2013 foram registradas 2.050 greves no país, ponto mais alto da curva histórica dos levantamentos daquele departamento de assessoria sindical. O ponto mais baixo esteve nos anos de governo de Lula, pois entre 2002 and 2007, a média foi de 300 greves por ano. DIEESE, “Balanço das greves em 2013”, in Estudos & Pesquisas, no. 79, dezembro de 2015, p. 42.

[vii] A ideia de que os movimentos sociais da época compartilhavam três “matrizes discursivas”, a saber a das CEBs, a das esquerdas dispersas pela repressão ditatorial e a do “novo sindicalismo” é desenvolvida por Eder Sader, Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.

[viii] Ricardo Mariano, “Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal”, Estudos Avançados 18 (52), 2004, p. 121.

[ix] Ricardo Mariano, “Mudanças no campo religioso brasileiro no Censo de 2010”, Debates do NER, ano 14, n. 24,, jul./dez. 2013, p. 119.. Mantido, aproximadamente, o ritmo de crescimento registrado nas últimas duas décadas, é possível dizer que atualmente o percentual de evangélicos na população já ultrapassou um quarto.

[x] Ibidem, idem, p. 125.

[xi] Um bom exemplo da pauta política das lideranças evangélicas pode ser encontrado nas declarações que se seguiram à “Marcha para Jesus”, que reuniu cerca de dois milhões de fiéis, em São Paulo, no dia 15/06/2017. Ver http://bit.ly/2rBxhU9. Pesquisadores demonstraram, porém, que os fiéis presentes naquela manifestação, embora em sua maioria partilhem os valores comportamentais conservadores de suas lideranças religiosas, não necessariamente seguem sua pauta política. Ver informações sobre a pesquisa de Esther Solano, Marcio Moretto Ribeiro e Pablo Ortellado em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/06/16/evangelicos-rejeitam-liderancas-religiosas-e-apoiam-respeito-a-gays-na-escola-diz-pesquisa.htm?cmpid=copiaecola. Pesquisa de opinião do Datafolha, de dezembro de 2016, com uma amostra mais ampla de entrevistados pode ser encontrada em http://bit.ly/2sTqmtj

[xii] Ver a esse respeito Sydnei Melo, Os evangélicos na política brasileira, in Blog Junho, 16/11/2016, http://bit.ly/2s3DSaH, último acesso em junho de 2017.

[xiii] Sobre o movimento Hip Hop a literatura é já grande. Ver por exemplo Janaina RochaMirella DomenichPatrícia Casseano, Hip hop: a periferia grita, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2001. A respeito da comunicação popular ver Cláudia Santiago, Experiências em Comunicação Popular no Rio de Janeiro Ontem e Hoje: uma história de resistência nas favelas cariocas, Rio de Janeiro, NPC, 2016.

[xiv] A referência nesse campo são as muitas obras de Vito GIannotti e a produção do Núcleo Piratininga de Comunicação, que montou com Claudia Santiago. Entre elas, para ficar apenas em um exemplo, V. Giannotti, Comunicação dos trabalhadores e hegemonia, São Paulo, Fundação Perseu Abramo – NPC, 2014.

*Publicado originalmente no Blog Junho