A organização política: notas introdutórias como contribuição ao debate da esquerda socialista no Brasil

Por: Marcelo Badaró Mattos (NOS)

Organizar a classe trabalhadora, mobilizá-la para as lutas específicas contra a exploração e as condições degradantes de vida, bem como pela defesa e ampliação dos direitos que conquistou com lutas anteriores, mas fazê-lo a partir de um programa que vá além do imediato, construindo a consciência da necessidade de emancipação social global, são elementos indissociáveis da proposta socialista. Desde o século XIX, diferentes movimentos da classe geraram distintas modalidades de organização para levar adiante essa proposta. Nesta Nota, vamos nos concentrar na forma política da organização – o partido – reconhecendo, entretanto, que é impossível pensá-lo fora do movimento mais amplo da classe, que será abordado em Nota subsequente.

De volta aos clássicos

Na tradição da esquerda marxista os sentidos de partido político mudaram com o tempo. No Manifesto Comunista, Marx e Engels afirmaram: “Esta organização dos proletários em classe, e deste modo em partido político, é rompida de novo a cada momento pela concorrência entre os próprios operários. Mas renasce sempre, mais forte, mais sólida, mais poderosa.”[1] Partido era sinônimo, ali, não de uma única organização, mas de uma atuação política consciente da classe, na defesa dos seus interesses. E os interesses da classe são definidos não apenas em termos de reivindicações imediatas, mas no sentido histórico mais amplo, da abolição da exploração e da dominação. Por isso eles defendiam, também no Manifesto, que: “A finalidade imediata dos comunistas é a mesma de todos os demais partidos proletários: formação do proletariado em classe, derrubamento do domínio da burguesia, conquista do poder político pelo proletariado.”[2]

Marx e Engels tiveram, em diferentes momentos, a oportunidade de viver experiências de organização política, portanto de classe, dos trabalhadores. Desse ponto de vista, dois momentos podem ser destacados na trajetória dos dois. O primeiro, da construção da Associação Internacional dos Trabalhadores (entre 1864 e 1874), quando após o refluxo que se seguiu à derrota dos movimentos revolucionários da “primavera dos povos” de 1848, o movimento da classe trabalhadora europeia começava a se reerguer.[3] Tal organização era vista então como um “partido político” de novo tipo. Nos termos das “Normas gerais” da AIT: “Em sua luta contra o poder reunido das classes possuidoras, o proletariado só pode se apresentar como classe quando constitui a si mesmo num partido político particular, o qual se confronta com todos os partidos precedentes formados pelas classes possuidoras.” A unificação da classe em partido seria essencial para “assegurar o triunfo da revolução social e de seu fim último – a abolição das classes.”[4]

A segunda experiência organizativa relevante para esta discussão, com a qual conviveram e dialogaram Marx e Engels, foi a da constituição do Partido Social Democrata dos Trabalhadores Alemães (SPD). Neste caso, é possível identificar que Marx e Engels alinharam-se claramente em defesa da construção da organização da classe em partido no seu país natal. Mas desde o primeiro momento mostraram grandes diferenças em relação a uma série de elaborações daquela organização. Particularmente as que diziam respeito ao programa do partido, que não explicitava o centro da estratégia socialista, qual seja, a “abolição das diferenças de classe”, através da qual “desaparecem por si mesmas as desigualdades sociais e políticas que delas emanam.”[5]

Nesse sentido, quero rapidamente resgatar aqui alguns contributos de Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Gramsci, membros de uma geração posterior de revolucionários, que surgiu para a militância política já no interior dos quadros da II Internacional (formada pelos partidos social-democratas e tendo o SPD à frente). Esses quadros, ao longo das décadas de 1900 a 1920 travaram debates internos aos partidos social-democratas e, mais tarde, tiveram diante de si a difícil tarefa de apresentar alternativas revolucionárias, num contexto em que não apenas o programa, mas as práticas de uma parcela significativa da social-democracia da II Internacional abandonou completamente a perspectiva marxiana da “abolição das diferenças de classe”, passando a trabalhar não apenas no, mas pró, sistema capitalista, como o apoio ao processo armamentista que desembocou na 1ª Grande Guerra demonstrou.

Mas, antes, vale recuar um pouco no tempo. Ao tratarmos de partido e mencionarmos Lenin, talvez a referência mais usual seja a leitura de uma de suas obras mais conhecidas – Que fazer?[6] – e a partir dela a defesa de um suposto modelo de funcionamento do partido revolucionário (disciplina férrea, centralismo, vanguarda revolucionária profissional etc.). De fato, tais elementos estão presentes naquela obra de 1902, mas é preciso retomar Que fazer? em seu contexto. Nos primeiros anos do século XX, a social-democracia russa (nos termos da época utilizados, como vimos, para definir as organizações de inspiração marxista) estava em construção, vivendo sob o jugo tirânico do regime do czar. No interior desse processo de construção, debatiam-se diferentes perspectivas. Em Que fazer?, Lenin pensa a atuação dos revolucionários naquele contexto de repressão intensa e, no debate interno, investe contra os chamados “economistas”, grupo que defendia que a ação dos social-democratas deveria partir sempre da experiência imediata de exploração da classe trabalhadora e orientar seus esforços para lutar pelas demandas de natureza sindical – salariais, de condições de vida e de trabalho – que emergiam dessas lutas, decorrendo todo o resto diretamente delas.

Em relação aos objetivos da luta socialista, Lenin é coerente com os ensinamentos de Marx e ataca os “economistas” justamente pelos limites estratégicos de seu programa, que em última análise não confrontava a ordem do capital. Segundo ele, a social-democracia “subordina a luta pelas reformas, como a parte ao todo, à luta revolucionária pela liberdade e o socialismo”.[7]

Se este era o centro da estratégia socialista, a organização partidária construída para torná-la efetiva deveria ser composta por uma vanguarda de militantes que se dedicassem integral e permanentemente à tarefa educativa e politizadora da luta pela “abolição da ordem social”, o que não se opunha, muito pelo contrário, à luta diretamente sindical, porém não se resumia a ela. Ernest Mandel interpreta com acuidade esse princípio leninista expresso em Que fazer?, propondo que a necessidade identificada por Lenin de formar uma vanguarda dedicada integralmente à luta socialista advinha das oscilações típicas dos movimentos das massas trabalhadoras, que por sua própria experiência de exploração teriam dificuldade em manter uma prática política permanente. Assim, Mandel entende que a defesa do partido de vanguarda por Lenin deriva da constatação de que “o proletariado não pode aceder a uma consciência global da realidade capitalista – da sua própria existência – senão através duma prática social globalizante, isto é, através duma prática política.”[8] Dessa forma, ainda segundo Mandel, por persistir na luta estratégica pelo socialismo, em meio aos ciclos ou ondas de crescimento e declínio dos movimentos por conquistas imediatas da classe trabalhadora: “O partido de vanguarda funciona assim, objetivamente, como a memória coletiva da classe operária, a qual impede que os conhecimentos acumulados durante as fases de lutas generalizadas se percam nas inevitáveis fases consecutivas de refluxo dessas lutas.”[9]

A expressão partido de vanguarda, porém, se tomarmos apenas o texto de Que fazer?, pode ser diretamente associada a um partido pequeno de militantes profissionais, atuando quase sempre na clandestinidade e trazendo de fora dos movimentos de massa as orientações políticas socialistas para dirigi-los. No balanço que fez alguns anos depois, quando o panfleto (assim ele o denomina) foi republicado em suas obras reunidas de 1907, Lenin indicou claramente que muitas das elaborações de Que fazer? eram conjunturais e respondiam às condições da luta clandestina e do enfrentamento com os “economistas”, algo que foi superado nos debates internos da social-democracia russa e pela própria Revolução de 1905. Lenin continuou a reivindicar a importância da defesa feita em Que fazer? da organização de revolucionários profissionais, contestando seus críticos que apontavam o exagero da formulação, mas situou claramente que o acerto da proposta do grupo reunido em torno do jornal Iskra naqueles primeiros anos do século XX só poderia ser compreendido porque foram capazes de criar uma organização mais ampla, o Partido Social Democrata dos Trabalhadores Russos, tal como ele passa a existir, a partir de 1905, com vida pública e participação nas eleições, após as alterações no regime político impostas pela revolução.[10]

No contexto das lutas revolucionárias de 1905, Lenin já havia se posicionado, inclusive contra alguns de seus camaradas bolcheviques aferrados a uma concepção estática do partido de vanguarda forjada nos anos anteriores, sobre a necessidade da ampliação da organização partidária. No texto significativamente intitulado “Novas Tarefas e Novas Forças” irá defender que estas seriam: “alargamento da agitação a novas camadas dos pobres da cidade e do campo, criação de uma organização mais ampla, flexível e sólida, preparação da insurreição e armamento do povo, acordo com a democracia revolucionária com estes objectivos.”[11]

Do ponto de vista imediatamente organizativo, não caberia manter o partido fechado em torno do reduzido círculo da vanguarda revolucionária dos primeiros anos. Nas condições abertas em 1905, Lenin defendeu que era “preciso ampliar fortemente o número de membros de toda a espécie de organizações do partido ou aderentes ao partido para acompanhar ainda que minimamente a torrente de energia revolucionária popular, que cresceu cem vezes.”[12]

Embora apresentados de forma muito sintética, tais exemplos podem ajudar a diferenciar as formulações conjunturais daquelas de maior profundidade na elaboração de Lenin sobre as organizações políticas da classe trabalhadora. Entre elas, sem dúvida, a definição firme de que um partido da classe trabalhadora tem que ser um partido para fazer a revolução. Seu horizonte estratégico é o da transformação social radical. A firmeza do horizonte estratégico é a principal segurança em relação às variadas táticas de atuação, através das “formas legais e ilegais, parlamentares e extra-parlamentares de luta”.[13] O partido de Lenin, portanto, poderia e deveria exercitar uma “arte imprescindível na revolução: a flexibilidade, o saber mudar de tática com rapidez e decisão, partindo das mudanças operadas nas condições objetivas e elegendo outro caminho para nossos fins”.[14]

Assim, cabe tomar em conta, mesmo que muito rapidamente, outras formulações da geração de socialistas do início do século XX, que confrontou-se com a conjuntura revolucionária aberta em 1917 de forma ativa, buscando atuar pela revolução também em outros espaços nacionais.

Para a discussão que nos interessa aqui, cabe resgatar da contribuição de Rosa Luxemburgo seu firme apego à defesa do papel consciente da classe trabalhadora na construção do socialismo e dos instrumentos político partidários necessários a essa construção. A máxima de Marx e Engels de que “a emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora” foi repetida por ela em diversos textos e acabou inscrita no Programa do Partido Comunista Alemão, quando se afirmava que a transformação do Estado e a mudança dos fundamentos econômicos e sociais não poderiam “ser decretadas por nenhuma autoridade, comissão ou parlamento: só a própria massa popular pode empreendê-las e realizá-las.”[15]

Após a publicação de Que fazer?, Rosa Luxemburgo foi uma das críticas à concepção de Lenin (e mais ainda de Kautsky) sobre o papel protagonista do partido na formação da consciência de classe dos trabalhadores, defendendo um desenvolvimento mais direto da consciência política da classe a partir da própria experiência de exploração e luta. No entanto, a então militante do Partido Social-Democrata Alemão nunca negou a necessidade da organização partidária para a luta revolucionária da classe. Depois de 1914, passou mesmo a questionar a possibilidade de superação direta, desde as lutas imediatas, das disputas ideológicas que atravessavam um proletariado sensível ao apela chauvinista das burguesias nacionais a caminho da guerra. Após Outubro, sua reflexão caminha para uma posição ainda mais próxima à de Lenin. No famoso texto O que quer a Liga Espartaquista? a defesa do protagonismo da ação da classe trabalhadora na revolução socialista, que não poderia ser feita por decreto ou de cima para baixo, está presente, mas combinada a um entendimento do partido como “o arauto, o acicate e a consciência da revolução”.[16]

Rosa Luxemburgo, porém, ainda em 1904, quando questionava as teses de Que fazer? apercebeu-se de um risco que Lenin demorou muito mais a assumir (só o reconheceria em 1914). Direcionando seus maiores esforços para a luta parlamentar por reformas, a social-democracia alemã já estava criando uma casta de dirigentes apartados das lutas concretas da classe trabalhadora, uma burocracia oportunista que tendia a se transformar em um obstáculo à luta revolucionária. Se na Rússia de Lenin, àquela altura, a burocratização via reformismo eleitoralista era algo distante, dadas as próprias condições da luta contra o regime opressivo do czar, a extrema centralização do partido poderia ser o canal através do qual o núcleo dirigente se afastaria das massas proletárias, formando assim uma burocracia aferrada a suas posições.[17]

As preocupações de Rosa Luxemburgo mostraram-se pertinentes na crítica ao oportunismo reformista de boa parte dos dirigentes social-democratas do início do século XX e proféticas em relação à nova forma que seria assumida pelo partido criado por Lenin quando da ascensão de Stalin ao seu comando em meados dos anos 1920.

Registre-se que, logo a seguir, Trotsky – que seria reconhecido como o grande crítico da burocracia já bem mais tarde – também se apercebeu do risco da burocratização, discutindo o contexto da revolução de 1905. Segundo ele, colocando a questão em termos de uma “inércia interna” aos partidos social-democratas, com consequências conservadoras:

“A função dos partidos operários era e é a de revolucionar a consciência da classe operária (…) Mas o trabalho de agitação e de organização nas fileiras do proletariado tem a sua inércia interna. Os partidos socialistas europeus — especialmente o maior, a social-democracia alemã — desenvolveram o seu conservadorismo na mesma proporção em que as grandes massas abraçaram o socialismo, e isto tanto mais quanto estas massas se tornaram mais organizadas e disciplinadas. Por conseguinte, a social-democracia, organização que abraça a experiência política do proletariado, pode, num certo momento, tornar-se um obstáculo direto ao desenvolvimento do conflito aberto entre os operários e a reação burguesa.”[18]

Gramsci, autodefinindo-se como leninista, e reconhecendo em Rosa Luxemburgo uma das suas mais importantes influências formativas, realizou uma síntese fundamental dessas concepções no debate sobre o partido que empreendeu entre o fim da década de 1910 e a primeira metade dos anos 1930. Em Gramsci aparecem de forma condensada a ideia do partido como uma necessária direção política das lutas em direção à revolução e a elaboração da noção de que o partido nasce na classe e das lutas da classe.

No debate que empreendeu após a fundação do PCI, com o grupo dirigente liderado por Bordiga, Gramsci recusou fortemente a idéia do partido como “órgão” da classe, externo a ela, para afirmar que o partido era “uma parte da classe”. A oposição “partido de vanguarda” X “partido de massas” era vista por Gramsci como um equívoco, pois o partido comunista, como “parte” da classe trabalhadora, surgia dos “melhores e mais conscientes” desta. Deveria se tornar, porém, “um grande partido”, pois seria seu objetivo “tentar atrair para nossas organizações o maior número possível de operários e camponeses, a fim de educá-los para a luta, de formar organizadores e dirigentes de massa”. Os critérios da “educação para a luta” eram claros: “não somos um puro partido parlamentar”; e, na ação, os comunistas deveriam pautar-se pela “negação completa não só da fábula da colaboração e da utopia da paz social, mas também da tola lenda da organização que se desenvolve no seio da sociedade capitalista, com a permissão dos burgueses, até superar os limites desta sociedade e esvazia-la gradualmente do seu conteúdo.”[19]

Nos Cadernos do Cárcere desenvolverá melhor suas definições sobre o partido. Ali, o partido aparece como um resultado do processo de conscientização da classe: “um elemento complexo de sociedade no qual já tenha tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação. (…) a primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais.”[20]

Esse pode ser o caminho para a superação de uma rigidez dicotômica entre partido de massas-partido de vanguarda, ou a divisão entre uma postura que credita ao partido a capacidade de trazer de fora a consciência aos trabalhadores e aquela que credita aos trabalhadores uma consciência espontânea. Se o partido surgia no processo de formação da consciência de classe e, portanto, não a precedia, tal processo não estaria concluído pela formação do partido. Afinal, a tarefa do partido para Gramsci era também a de promover o avanço da consciência de classe em direção a uma consciência política revolucionária, ou dito nos termos que adota nos Cadernos, “uma reforma intelectual e moral, isto é, à questão (…) de uma concepção de mundo.” Por isso, segundo ele: “Esses dois pontos fundamentais – formação de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual o moderno Príncipe é ao mesmo tempo o organizador e a expressão ativa e atuante, e reforma intelectual e moral – deveriam constituir a estrutura do trabalho.”[21]

Mas, Gramsci também nos fornece critérios analíticos para que entendamos porque um partido surgido com um horizonte de classe e socialista pode dar origem, em sua trajetória posterior, a posições políticas que contrariam tal origem. Escaldado pela trajetória do PSI, que nos anos 1920 era por ele declarado como braço partidário esquerdo da burguesia, Gramsci avaliava que o “transformismo” dos socialistas italianos decorria de um distanciamento entre uma direção partidária dotada de uma leitura determinista da história, e as bases da classe trabalhadora. Tal distanciamento seria acentuado pela presença de uma burocracia de dirigentes partidários e sindicais que, mais interessada em preservar suas posições, não se ruborizava em trocar políticas programáticas por posicionamentos pragmáticos.[22]

Nossos desafios

Tomando a sério as reflexões clássicas aqui sumarizadas, não são poucos os desafios que temos pela frente em termos organizativos. Mantendo o debate centralmente em torno do partido, como garantir hoje a construção de uma ou mais organizações cujo norte estratégico continue sendo, como definido no Manifesto, “formação do proletariado em classe, derrubamento do domínio da burguesia, conquista do poder político pelo proletariado”, tendo em vista as formas atuais do exercício da dominação burguesa e o perfil contemporâneo do proletariado? Como exercitar a flexibilidade tática – essa “arte imprescindível na revolução”, segundo Lenin – sem abrir distância do objetivo estratégico da “abolição das diferenças de classe”? Que tradução poderíamos dar hoje para o duplo desafio apontado por Gramsci de organizar a “vontade nacional-popular” (a hegemonia do proletariado em torno a um projeto revolucionário), através do avanço do trabalho pedagógico e conscientizador do partido na direção de uma “reforma intelectual e moral” da classe trabalhadora? Como evitar a “força conservadora mais perigosa”, que pode emergir no interior mesmo da organização, a burocracia?

Uma primeira constatação se faz necessária. Após décadas de experiência negativa com o burocratismo de matriz estalinista e o oportunismo eleitoral social-democrata, a segunda metade do século XX e essas primeiras décadas do século XXI assistiram a muitas e diferentes tentativas de superação dos limites dessas formas organizativas. Podemos aprender bastante com elas, desde que reconheçamos que até aqui também não foram bem sucedidas do ponto de vista da necessidade histórica de superação do capitalismo.

Há bastante acúmulo de discussões sobre o risco burocratizante de uma direção que por meio de decisões impostas via disciplina férrea domina a massa partidária, entretanto, muita polêmica ainda é travada em torno da ideia do centralismo democrático. Aqui defende-se que as demandas por maior democracia interna, debate aberto de ideias e maior horizontalidade dos processos decisórios podem ser melhor respondidas justamente por uma organização estruturada desde a base – em núcleos, coletivos, setores, plenárias, células, etc. Assim, torna-se mais factível que as definições das instâncias coletivas da organização (congressos, encontros, etc.), sustentadas por essa democracia de base, centralizem a ação dos dirigentes, parlamentares e/ou figuras públicas. Para que isso funcione, é necessário que nenhum limite – a não ser o do acordo geral com os princípios programáticos e organizativos vigentes e, justamente, o do respeito às decisões coletivas definidas ao fim de cada processo de discussão – seja colocado ao debate interno de propostas nas instâncias de base e entre elas e os vários níveis da direção partidária.

Uma organização desse tipo exige um grau de comprometimento com seu funcionamento por parte de seus integrantes que, embora nunca possa ser absolutamente homogêneo, os qualifica como militantes. Organizados em instâncias de base, contribuindo para a auto-sustentação partidária e assumindo tarefas no interior da organização e nas frentes de luta social nas quais essa intervém, os militantes não devem ser vistos como uma “vanguarda externa” à classe trabalhadora, mas sim como uma parcela desta, que por sua ação educadora e organizadora busca atrair parcelas cada vez maiores para a organização e as lutas revolucionárias.

Ao relacionarmos militância com tarefas e frentes de luta, podemos cair no risco do “militantismo”, definido por Alvaro Bianchi como “o fetichismo da ação, a crença de que a atividade permanente e direta conduzirá inevitavelmente a uma vitória decisiva.”[23] O partido tem que ser o espaço da crítica permanente da realidade, da elaboração consciente de estratégias de enfrentamento, do programa capaz de aglutinar forças na luta pela transformação socialista. Qualquer concepção organizativa que enxergue uma hierarquia de militantes na qual o trabalho intelectual esteja confinado à vanguarda dirigente, enquanto as tarefas militantes são atribuídas aos militantes/tarefeiros, está fadada a gerar burocratização. A saída para esse risco, entretanto, não está na simples proclamação da igualdade formal de todas e todos os militantes/dirigentes, mas sim no trabalho ininterrupto de formação política do conjunto da militância, garantindo que, independentemente dos diferentes níveis de escolaridade e das distintas experiências de lutas adquiridas por cada um(a), a participação real nas análises e definições políticas da organização seja viável através da socialização da teoria marxista, da história das lutas sociais e das elaborações socialistas de ontem e de hoje. É a formação política permanente que garantirá progressivamente a possibilidade de renovação dos quadros dirigentes, evitando o monopólio da direção por um grupo restrito de “iluminados”.

Uma formação política que deve se estender a outros domínios. Como “primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais”, o partido deve ser também uma primeira célula de sociabilidade libertária, no sentido do esforço incessante para combater e buscar superar, através da educação militante, os limites impostos pelos preconceitos e formas de opressão que atravessam a sociedade, aí incluído o proletariado, dos quais sua parcela mais ativa e consciente está longe de ser imune.

Em que frentes tal partido atuará através de seus militantes? Tudo, por certo, depende dos limites quantitativos e qualitativos da organização. Porém, se o Estado burguês contemporâneo possui uma característica ampliada, envolvendo organizações da sociedade política cuja direção é dada desde a organização dos interesses e projetos de classe na sociedade civil, os partidos socialistas também devem buscar uma atuação “integral”.[24] Atuação direcionada não apenas para a disputa institucional da sociedade política – no caso das democracias representativas, para o ciclo eleitoral-parlamentar -, mas intensamente comprometida com a ação em um, tão amplo quanto possível, conjunto de espaços, experiências e lutas da classe trabalhadora.

Esse esforço para organizar a classe a partir de todos os seus espaços de trabalho e sociabilidade é o principal antídoto para o oportunismo e o burocratismo que podem decorrer de uma atuação direcionada apenas à luta parlamentar. Mas, exige organizações amplas e/ou instrumentos mais gerais – criados por iniciativa delas ou não – em que as organizações partidárias possam se inserir buscando mobilizar as diversas frações da classe trabalhadora de forma a contribuir para uma direção das lutas na perspectiva socialista.

A capacidade de construir redes de solidariedade e restaurar laços de pertencimento ao coletivo baseados em critérios de classe deve ser reconhecida, a partir da experiência recente, como um dos mais importantes caminhos das organizações de esquerda socialistas para cumprirem seus objetivos de organizarem uma nova “vontade coletiva”, partindo de uma “reforma intelectual e moral” lastreada numa alternativa emancipadora.

São muitos aspectos a considerar do ponto de vista da organização partidária, entre eles os desafios que a ela cabem ao analisar a realidade e propor um programa para a revolução, agrupando forças através da educação e organização contínua das parcelas as mais amplas da classe trabalhadora. O desafio, em suma, de mobilizar e por em movimento a força da classe que pretendemos desenvolver nas próximas Notas.

Notas

[1]      Karl Marx & Friedrich Engels, Manifesto comunista, In Obras Escolhidas, vol. 1, Moscou/Lisboa, Ed. Progresso, 1982, p. 115.

[2]    Idem, p. 118.

[3] Diversos documentos da AIT foram reunidos e apresentados por Marcello Musto. Trabalhadores, uni-vos!: Antologia política da I Internacional, São Paulo, Boitempo, 2014.

[4] K. Marx, & F. Engels, Normas gerais da Associação Internacional dos Trabalhadores (versão de 1871), in Ibidem, idem.

[5] K. Marx e F. Engels, Crítica ao Programa de Gotha, in Obras Escolhidas, vol. 2, São Paulo, Alfa-Ômega, s.d., p. 219. Exploraremos especificamente este aspecto programático na última Nota desta série.

[6] V. I. Lenin, Que fazer? (1902), conforme http://bit.ly/2r9yFk6, último acesso em maio de 2017.

[7] Ibidem, idem.

[8] Ernest Mandel, “Atualidade da teoria leninista da organização à luz da experiência histórica”, in E. Mandel, A teoria leninista da organização, Lisboa, Antídoto, 1975, p. 133

[9] Ibidem, 135.

[10] V. I. Lenin, Preface to the Collection Twelve Years (1907), conforme http://bit.ly/2qZHtZo, último acesso em maio de 2017.

[11] V. I. Lenin, Novas Tarefas e Novas Forças, (8 de Março/23 de Fevereiro de 1905), conforme http://bit.ly/2s1uYej, último acesso em maio de 2017.

[12] Ibidem.

[13] V. I. Lenin, La enfermedad infantil Del ‘izquierdismo’ em el comunismo & Com motivo del IV aniversario de la Revolucion de Octubre, in Obras Escogidas. Moscou, Progresso, s.d., p. 549.

[14]   Ibidem, idem, pp. 677.

[15] Rosa Luxemburgo, Programa do Partido Comunista da Alemanha (1918), apud Isabel Loureiro, Rosa Luxemburgo: vida e obra, 3a. ed., São Paulo, Expressão Popular, 2003, p. 63.

[16] Rosa Luxemburgo, O que quer a Liga Espártaco? (1918), http://bit.ly/2qhzQij.

[17] Rosa Luxemburgo, Organizational Questions of the Russian Social Democracy (1904), http://bit.ly/2qUzM6Q, consultado em maio de 2017.

[18] L. Trotsky, Balanço e perspectivas (1906), http://bit.ly/2s7UQUX, consultado em maio de 2017. As primeiras críticas à burocratização partidária de Rosa Luxemburgo e Trotsky são comentadas por E. Mandel nos ensaios que compõem seu A teoria leninista da organização, ver por ex. pp. 79-81.

[19]   Antonio Gramsci, Escritos Políticos, vol. 2, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004, pp. 276, 277, 285 e 345.

[20]   Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, vol 3, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 16.

[21]   Ibidem, idem, p. 18.

[22]   Ibidem, idem, pp. 61-62.

[23] Alvaro Bianchi, Crítica ao militantismo, http://bit.ly/2atCR3C, consultado em maio de 2017.

[24] Esse é um dos elementos, entre os vários que aqui tomamos em conta, das interessantes proposições de José Maria Antentas, Imaginação estratégica e partido, http://bit.ly/2s0Vofu, consultado em maio de 2017.

*Publicado originalmente no blog Junho