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CULTURA

Romero e os zumbis como metáfora política

Por: Michel Goulart da Silva, de Blumenau, SC

Neste domingo (16), recebemos a notícia da morte de George A. Romero, vítima de um câncer no pulmão. O diretor ficou mundialmente conhecido por uma sequência de cinco filmes, produzidos ao longo de quase quarenta anos, centrados nos acontecimentos posteriores ao início do apocalipse zumbi que teria assolado todo o planeta. O primeiro desses filmes, A Noite dos Mortos-Vivos (1968), realizado com parcos recursos, se tornou um dos maiores clássicos do cinema de horror e se constituiu em um divisor de águas nas produções posteriores sobre zumbis.

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Na sociedade capitalista, os zumbis de Romero tornam-se uma metáfora para as perigosas massas que cercam a burguesia e ameaçam sua propriedade nos grandes centros urbanos. Desde sua criação, as obras artísticas que tematizam o horror expressam os medos das sociedades em que estão inseridos. O monstro de Frankenstein representava as hesitações de uma parcela da sociedade frente ao nascente capitalismo. Os vampiros do século XIX expressavam o medo da burguesia frente a um monstro sedutor que se dedicava principalmente a atacar jovens mulheres.

Diferente de seus antecessores, o zumbi é um monstro coletivo. Embora possam atacar sozinhos, se tornam perigosos quando atuam em horda, cercando grupos de pessoas vivas, com vistas a comer partes de seus corpos. São seres irracionais, cujas ações não apresentam uma intencionalidade, bastante diferente, por exemplo, dos vampiros. Os zumbis são o monstro típico de uma sociedade de massas, com grandes concentrações em espaços urbanos, onde podem se locomover e encurralar suas vítimas.

Zumbis são cadáveres que caminham, mantendo somente algumas atividades motoras responsáveis pela locomoção e pela alimentação. Um aspecto importante tem relação com o fato de manterem alguns movimentos automáticos, normalmente de ações que lhes eram frequentes em vida, como manusear algum objeto ou ir a algum lugar específico.

Portanto, assim como a burguesia novecentista expressou na literatura de horror seus próprios monstros, a arte não poderia deixar de expressar os medos da sociedade industrial do século XX. Para tanto, encontrou seu medo em criaturas sem identidades e consciências, surgidas de dentro da própria sociedade, vistas como irracionais, que agem sem um objetivo definido. Essas criaturas precisam ser controladas, para não colocar em risco a vida em sociedade dos vivos, e, caso isso não funcione, devem ser destruídas.

Esses monstros são os personagens centrais da obra de Romero, pelos quais o diretor nutria evidente simpatia, utilizados como metáfora para refletir acerca de momentos históricos específicos que presenciou. No clássico de 1968, desfila ao longo do filme alguns medos presentes na sociedade da época, como a possibilidade de uma invasão estrangeira ou até mesmo um ataque alienígena. Mostra como o medo àquelas criaturas desconhecidas, que atacavam e devoravam seres humanos, fazia aflorar os piores comportamentos do homem em sociedade, como o individualismo e até mesmo o racismo.

No filme Despertar dos Mortos (1978), Romero coloca um grupo de sobreviventes trancados em um shopping cercado por zumbis. No decorrer do filme percebemos que os zumbis instintivamente se locomovem para o shopping, como se seu comportamento estivesse moldado pela perspectiva do consumo. Em contrapartida, ao terem todos os produtos de seus desejos facilmente disponíveis, os próprios sobreviventes deixam de se preocupar com os perigos externos, e se perdem na aquisição e no consumo daquelas mercadorias.

Em 1985, no filme Dia dos Mortos, Romero pela primeira vez apresenta a possibilidade de que os zumbis possam ter lembranças ou até mesmo desenvolver empatia, para além do instinto de se alimentar dos vivos. O zumbi Bub, que desenvolve, inclusive, uma capacidade rudimentar de manusear uma arma de fogo, constrói uma relação afetiva com o cientista que buscava estudar seu comportamento. Em paralelo, o comportamento dos militares é não apenas criticado, especialmente seu ódio aos mortos que caminham e seu ataque ao grupo de cientistas, mas também vingado pelo próprio Bub.

Seguiu-se um intervalo de vinte anos, até o lançamento do excelente Terra dos mortos (2005). Neste filme, as experiências conceituais e estéticas das obras anteriores parecem ganhar uma síntese das mais brilhantes. Os zumbis coletivamente desenvolvem formas de raciocínio e de percepção do seu contexto, manuseando instrumentos e até mesmo identificando seu inimigo, que, neste caso, era a burguesia que vinha mantendo as relações de exploração e opressão em um contexto de apocalipse. Esses setores burgueses, simbolicamente residindo em um imponente prédio, se perdem no consumo por bens e propriedades, enquanto contratam mercenários para manter sua segurança.

Em Romero, a crítica ao capitalismo, à exploração e às formas de opressão são representados em um trágico apocalipse, ou seja, apresenta-se uma mensagem pessimista de que a degradação ambiental, a deterioração das relações em sociedade e a produção e o consumo marcados pelo estranhamento levariam a humanidade à sua destruição. Uma ampla massa de desesperadas atacariam o que restava do poder, em busca do mínimo para sua existência. Esse mundo teria como principal característica uma violência desenfreada, em que poucos escapariam da morte.

Esse tipo de profecia apocalíptica ganhou vazão nos cinemas nas últimas décadas, em filmes que colocam em cena alienígenas e outros tipos de ameaças. Contudo, a ameaça que a própria humanidade faz a si mesma é algo que quem melhor captou foi Romero, não para apontar o dedo para as massas supostamente irracionais, mas para nos alertar o que a sociedade está fazendo com os amplos segmentos que o capitalismo joga no desespero e na falta de perspectiva.

Neste domingo, perdemos Romero. Que seu esforço para expor o caminho de destruição que a humanidade vem trilhando sirva para nos alertar para nossos verdadeiros inimigos e para que possamos ainda tentar salvar o mundo em que vivemos.