Por: Jorge Luiz Souto Maior, colunista do Esquerda Online
Passado o luto, vamos à luta (jurídica), estimulada pela reforma trabalhista, que resultou na, recentemente sancionada, Lei n. 13.467/17.
Preliminarmente, importante consignar que é totalmente indevida a apropriação, pelos políticos no poder, do processo histórico, carregado de materialidade dialética e conflitos de toda ordem, do qual são feitas as leis. Assim, é equivocado falar em “CLT de Vargas”, como, certamente, é errôneo falar em “CLT de Temer”. Porém, como a retórica varguista, de que teria sido Vargas o pai da legislação do trabalho, foi apropriada pela classe empresarial para combater os direitos trabalhistas e, assim, atender o seu propósito de efetuar uma maior e mais livre exploração do trabalhador, não se pode, agora, simplesmente abandonar essa linha de argumentação, como se tal jogo não tivesse existido.
Uma fórmula eficiente para combater o retrocesso imposto pela “reforma” é a de denunciar as inverdades que embalaram o percurso de sua aprovação e nada mais apropriado para isso do que, agora que a “reforma” se tornou lei, utilizar, mas em direção oposta, os mesmos argumentos que foram apresentados para atacar a CLT.
Prioritariamente, deve-se ecoar a propaganda do governo de que lhe pertence o “mérito” de ter feito “a nova CLT”, que seria, mais apropriadamente, nominada a “CLT de Temer”, ainda mais considerando o modo como Temer tem controlado, como bem quer, o Congresso Nacional.
1. A perda do argumento retórico
Pois bem, considerado esse pressuposto, o primeiro efeito contraditório é o de que não se terá mais a oportunidade de desferir ataques à legislação do trabalho no Brasil com o argumento de que a legislação trabalhista está expressa em um documento de 1943, a tal “CLT de Vargas”.
Lembre-se que a “reforma” não foi, de fato, uma reforma, mas a tentativa de promover uma alteração profunda na regulação trabalhista brasileira, e teve por base exatamente o fundamento de que seria necessário, segundo se disse exaustivamente, superar a “CLT de Vargas”, de 1943, que possuiria apenas normas anacrônicas e obsoletas.
Valendo-se do ambiente de “ruptura democrática”, conforme expressão utilizada pelo relator da reforma na Câmara dos Deputados, deputado Rogério Marinho, para se referir ao presente momento histórico, foram feitas na CLT todas as alterações que se consideraram necessárias para atingir esse objetivo, operando-se, então, a tão aclamada “modernização” das leis trabalhistas. E como essas alterações foram feitas, todas elas, no próprio corpo da CLT, é justo e necessário dizer que a dita “CLT de Vargas”, pelo bem ou pelo mal, enfim, formalmente, não existe mais, tendo sido substituída pela declarada “CLT de Temer”, sendo oportuno destacar que os textos que não foram alterados têm-se por implicitamente recepcionados.
Fato é que, desse modo, os críticos eternos da legislação trabalhista no Brasil perderam o argumento retórico sobre a velhice da CLT, assim como aquele outro ligado à sua suposta origem fascista, ou, mais diretamente, o de ser a CLT cópia da Carta del Lavoro de Benito Mussolini.
Concretamente, está eliminada, de uma vez por todas, a fala, com intenção demolidora, de que a legislação voltada às relações de trabalho no Brasil é fincada em um documento de 1943, de origem fascista, a “CLT de Vargas”, pois, agora, o que se tem, por consequência da ampla reformulação feita, é a “CLT de Temer”, de 2017, “moderna” e adaptada ao “mundo tecnológico”.
E o mais interessante é que além de perderem o argumento da caducidade e da origem fascista da legislação, aqueles que antes eram avessos à legislação do trabalho passam a ser, daqui para adiante, os defensores da CLT.
Por mais trágico que seja o momento político que vivemos, não deixa de ser um motivo de regozijo saber que doravante a CLT vai ser defendida pela grande mídia e por tantos que, há décadas, a atacam.
2. A ilegitimidade
Mas, enquanto a CLT de 1943 foi resultado da elaboração de um projeto de industrialização para o país, que requeria a construção de um mercado de trabalho, assim como de um mercado de consumo, tendo a legislação do trabalho grande papel na organização desse modelo, a considerada CLT de 2017 não é nada além do que o resultado do aproveitamento de uma oportunidade, dada pela instabilidade política, para aumentar as margens de lucro do grande capital e fragilizar a classe trabalhadora.
O anteprojeto apresentado pelo governo ao Congresso Nacional, em 23/12/16 (quando recebeu o número PL 6787/16), com o apelido de uma minirreforma, feito às pressas para abafar mais uma crise política, tinha míseras 9 páginas, incluindo a justificativa, e alterava apenas 7 artigos da CLT, além de propor uma reformulação na Lei n. 6.019/16 (trabalho temporário).
No relatório final do PL 6787/16, apresentado em 12/04/17 (devendo-se considerar que, de fato, a tramitação do PL teve início em 09/02/17, quando foi instalada a Comissão Especial da Reforma e eleito como relator o deputado Rogério Marinho, o que resulta em parcos dois meses de tramitação), já se tinham 132 páginas, incluindo o Parecer, propondo a alteração de mais de 200 dispositivos na CLT, dentre artigos e parágrafos, todas no mesmo sentido, qual seja, o do acatamento de teses jurídicas ligadas aos interesses empresariais.
O texto chegou ao Senado e, como se viu, foi aprovado com a rapidez necessária para tentar manter o Presidente da República no poder, fazendo-se um grande ajuste, abertamente formulado e anunciado, entre o poder político e o poder econômico.
Desse modo, ainda que o governo queira atrair para si o mérito de ter feito uma “nova CLT” e essa propaganda seja atendida para efeito de inverter a lógica do jogo, é fundamental que se preservem as diferenças básicas entre uma CLT e outra, que, ademais, o próprio governo faz questão de enunciar.
A CLT de 1943, como o próprio nome diz, foi a consolidação das leis do trabalho que já vinham em construção no país desde 1919 e, de forma mais intensa e programada, a partir de 1930, valendo lembrar que esse impulso dado na década de 30 foi o resultado dos estudos encomendados pelo governo a especialistas em relações de trabalho e Direito Social, quais sejam: Joaquim Pimenta, Evaristo de Morais, Agripino Nazaré e Carlos Cavaco, além do industrial Jorge Street. Na elaboração da CLT, em 1943, novamente coube a uma comissão de estudiosos a elaboração do documento: Luiz Augusto de Rego Monteiro, Arnaldo Lopes Süssekind, Dorval de Lacerda, José de Segadas Vianna (Procuradores da Justiça do Trabalho) e Oscar Saraiva (Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio),
Enquanto isso, a CLT de Temer foi construída à sorrelfa, sem qualquer estudo prévio, inclusive quanto a objetivos estruturantes. Não lhe cabe, portanto, o nome Consolidação das Leis do Trabalho, e sim, algo como Consolidação das Lesões do Trabalho, ou Consolidação dos Locupletamentos sobre o Trabalho, enfim…
Na tal CLT de 2017 não há projeto de industrialização, aliás, muito pelo contrário. Parte-se do reconhecimento de que se vive na sociedade da “prestação de serviços” e, com uma lógica de tentar sair de uma areia movediça puxando-se pelo próprio cabelo, pretende-se fazer acreditar que basta reduzir o custo da exploração do trabalho (dentro de um contexto que é meramente o da circulação de mercadorias), para que se tenha como efeito a melhoria da economia e, com isso, se amplie o nível de emprego.
Essa CLT, ademais, como reflexo do momento político, traz consigo uma carga de ilegitimidade insuperável. Se se acusava a CLT de 1943 de ser obra de um ditador com inspiração fascista, a CLT de 2017, vai ficar para a história como o fruto de um governo ilegítimo, que, aproveitando do argumento da crise econômica, da fragilização da classe trabalhadora por conta do desemprego e da perda de identidade das instituições, se habilitou para assumir o poder, no contexto do golpe, por meio do oferecimento do compromisso de destruir as bases dos Direitos Sociais e permitir, com isso, a ampliação das possibilidades de extração de lucros pelo grande capital, que patrocinou o golpe.
Esta é, portanto, a obra de um Presidente com a menor aprovação popular da história, que atuou com apoio do poder econômico e de parte considerável da grande mídia, e de um Parlamento assolado em denúncias de corrupção e que, ao mesmo tempo, é composto, na sua maioria, por empresários. Uma obra que se oferece ao poder econômico em contrapartida da impunidade dos agentes da “reforma”.
Além desses aspectos, acresça-se a completa falência democrática do processo legislativo instaurado, que culminou com um acordo totalmente impróprio, para dizer o mínimo, entre alguns Senadores e a Presidência da República, para correção posterior de pontos do PL declaradamente considerados inadequados, para que a expressão “inconstitucionais” não constasse do parecer da “reforma” nem das falas dos Senadores que votaram pela aprovação do PLC 38/2017.
Cumpre verificar, entretanto, que nos termos do art. 62 da Constituição Federal, as medidas provisórias são reservadas a situações de relevância e urgência, o que impede sua utilização de forma generalizada e é óbvio que não há previsão de proibição de sua adoção no caso em questão porque o legislador pressupôs a vigência da ordem constitucional. Ou seja, o legislador não poderia mesmo sequer prever que se chegaria ao ponto de o Poder Legislativo abdicar do seu dever de legislar e requerer, ele próprio, que o Executivo o sub-rogasse em tal tarefa. Esse “acordo”, portanto, só serve para revelar o estágio de ruptura democrática que se instaurou no país para atender a vontade do poder econômico, e que tem recebido o beneplácito de algumas instituições.
Outro aspecto que reforça a ilegitimidade da Lei n. 13.467/17 é o do desrespeito ao fundamento básico do processo legislativo específico da legislação do trabalho, estabelecido internacionalmente desde a criação da OIT (Organização Internacional do Trabalho, criada no Tratado de Versalhes, em 1919), que é o do diálogo social (atuação tripartite, com participação de representantes dos Estados, dos empresários e dos trabalhadores).
Destaque-se que a própria OIT já se manifestou expressamente a respeito, reafirmando, neste aspecto, a ilegitimidade da “reforma”[i].
Por fim, a lei em questão, também não possui legitimidade porque fere os princípios constitucionais da prevalência dos Direitos Humanos, da progressividade (melhoria da condição social dos trabalhadores) e da função social da livre iniciativa, da propriedade e da economia, com vistas à construção da justiça social.
3. A difícil arte de aplicar a “CLT de Temer”
Não se querendo reconhecer a ilegitimidade da dita “CLT de Temer”, se chegará ao mundo tortuoso de sua aplicação.
3.1 A preservação do Direito do Trabalho
Os críticos históricos do Direito do Trabalho sempre quiseram, de fato, acabar com o Direito do Trabalho. A emergência dada pela oportunidade política e a forte resistência verificada, no entanto, impeliram para uma aliança, um tanto quanto contraditória, em torno de uma reforma que buscasse eliminar direitos pela via da flexibilização, mas sem expressar um ataque direto aos princípios do Direito do Trabalho. Assim, os argumentos, que chegaram a ser utilizados na década de 90, contra os princípios do Direito do Trabalho, notadamente, contra o princípio da proteção, assim como contra a função compensatória da desigualdade econômica reconhecida à legislação do trabalho, não foram expressos como fundamento da presente “reforma”.
Muito pelo contrário, o que se viu foi, em certa medida, um reconhecimento explícito da importância do Direito do Trabalho, com o reforço dos seus princípios: proteção; condição mais benéfica; in dubio pro operario; norma mais favorável; irrenunciabilidade; primazia da realidade; continuidade da relação de emprego e boa-fé.
E não foi só isso. Os principais propagandistas da reforma, muitos deles mais preocupados com os dividendos pessoais da aprovação de uma reforma, qualquer que fosse ela, portanto, para impedir o insucesso da empreita, dada a repercussão pública que o debate sobre a questão, contrariamente ao que se pretendia, acabou atingindo, se viram obrigados a destacar e a defender a finalidade social do Direito do Trabalho, apoiada em ideais humanísticos e na solidariedade como forma de proteção da parte mais fraca e para corrigir situações de privilégios.
Claro que, em muitos dispositivos da “reforma”, a fórmula utilizada para atender esses preceitos foi completamente equivocada, pois o que se fez foi apenas colocar em comparação os próprios trabalhadores, esquecendo-se, propositalmente, que o antagonismo real se dá entre o capital e o trabalho.
A partir desse pressuposto equivocado, a “reforma” procurou uma estranha política distributiva, contrapondo explorados e excluídos. Ou seja, para supostamente conferir emprego para os desempregados ou atrair para a formalidade os informais, sustentou-se a necessidade de que os empregados abrissem mão de parte de seus direitos.
Mas, se a preocupação fosse, de fato, fazer justiça social, no sentido de tirar de quem tem mais para dar para quem tem menos, necessário seria, antes de atingir o patrimônio jurídico da classe trabalhadora, tirar de quem detém os meios de produção, sobretudo dos grandes conglomerados econômicos, passando pelos bancos, o capital especulativo e demais parasitas, para, depois, chegar às grandes fortunas, ao latifúndio, às terras improdutivas e às propriedades que não atendem a sua função social.
De todo modo, a preocupação com a consagração da justiça social, mesmo no bojo da presente “reforma”, acabou sendo reconhecida como essência do Direito do Trabalho, mantendo-se intacta a base principiológica desse ramo do Direito.
3.2 O primado da relação de emprego
Foram preservados, inalterados, os conceitos de empregado e de empregador, fixados nos artigos 2º e 3º da CLT, de onde também se extraem os elementos caracterizadores da relação de emprego, tida como mola mestra do Direito do Trabalho, e a própria natureza de ordem pública dos preceitos que regulam essa relação, em consonância, inclusive, com o inciso I, do art. 7º da CF, que fixou como direito primeiro dos trabalhadores a “relação de emprego”, que é, ademais, uma relação de emprego “protegida contra a dispensa arbitrária.
Lembre-se que todos os argumentos em defesa da “reforma” foram no sentido da relevância do emprego e, claro, isso possui consequências jurídicas das quais não se pode fugir.
a) A relevância social, econômica e cultural da relação de emprego
Do ponto de sua origem histórica, é certo que a legislação trabalhista significou, inicialmente, uma estratégia para impulsionar e manter a exploração capitalista sobre o trabalho alheio. Com o tempo, no entanto, essa legislação, que também foi fruto de muita luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho, compôs de um ramo específico do Direito, cujos propósitos foram muito além daqueles que, no começo, se propugnavam, como deverá ocorrer, igualmente, com a Lei n. 13. 467/17.
Pelo Direito do Trabalho, cujo advento marca a passagem do modelo jurídico do Estado Liberal para o Estado Social, almeja-se, sobretudo, a elevação da condição social e econômica daquele que vende sua força de trabalho para o implemento da produção capitalista. Neste sentido, a aquisição de um emprego, sobre o qual incide o Direito do Trabalho, passa a ser um “status” relevante na sociedade[ii], sendo a aplicação da normatividade do Direito do Trabalho determinante para dar vida concreta a esse valor.
E como a base de incidência do Direito do Trabalho é a relação de emprego o reconhecimento jurídico da existência de uma relação de emprego independe da vontade das partes, chegando-se a ela também por intervenção das instituições públicas, criadas exatamente para preservar a finalidade pública da regulação da relação entre o trabalho e o capital (conforme previsto no Capítulo XIII, do Trabalho de Versalhes).
O Direito do Trabalho tenta evitar o aviltamento da condição social e econômica do empregado, fornecendo-lhe um patrimônio jurídico sólido, como forma até mesmo de estabelecer uma base moral e econômica para o desenvolvimento da sociedade capitalista. Nesse sentido, a concretização dos objetivos empresariais não pode estar sujeita à vontade exclusiva do empreendedor, impulsionada, em geral, por uma concorrência destrutiva de tudo e de todos, ou mesmo aos interesses individuais e imediatos, determinados pela necessidade e a concorrência pelos postos de trabalho em oferta, de quem vende força de trabalho para sobreviver.
Do ponto de vista da produção econômica, ademais, não se pode ficar na sujeição de saber se p trabalhador prestará serviços, ou não, no dia seguinte, pois a atividade capitalista deve ser necessariamente organizada e planejada.
A previsibilidade de condutas é relevante, igualmente, para o trabalhador, para que possa projetar e programar o seu tempo fato do trabalho e a sua própria vida, afinal. Para o trabalhador, a relação de emprego é fonte de subsistência, mas também oportunidade de inserção social.
Assim, é muito fácil verificar a falácia da proposição de que a precarização se impõe como uma consequência natural dos tempos modernos. Ora, até mesmo muitos daqueles que sustentam esse ponto de vista possuem vínculos permanentes e duradouros e quando necessitam da utilização de trabalho alheio, logicamente, procuram profissionais que atendam ao requisito da competência, que só se adquire com o tempo; ou seja, podendo optar, não procuram profissionais precarizados, que atuam na perspectiva de “bicos”, nem contratam empresas que estão no ramo há uma semana e que na semana que vem vão se dedicar a outra atividade…
Não é possível, portanto, que se coloque na base do Direito do Trabalho o primado de que as relações de emprego “modernas” são efêmeras, que há uma disseminação do trabalho autônomo sem que tenha havido qualquer tipo de distribuição concreta dos meios de produção e tudo não passe de disfarces para superar os limites jurídicos da exploração do trabalho.
Juridicamente, mantém-se a fórmula essencial de organização e desenvolvimento da sociedade capitalista de que a prestação de serviços realizada de forma não eventual, no contexto de atividade empreendedora alheia, gera a relação de emprego.
Destaque-se, por oportuno, que se a promessa do “pleno emprego” não puder ser cumprida pelo Estado Social, não se pode tentar disfarçar as limitações que são próprias do modelo econômico por meio da imposição de restrição de direitos aos trabalhadores, sobretudo porque isso só piora a condição de vida de todos.
Se os problemas econômicos existem é neste plano que devem ser resolvidos e essa constatação foi admitida, expressamente, nos próprios argumentos de defesa da “reforma”.
Do ponto de vista teórico, portanto, não se pode querer adaptar os princípios e objetivos do Direito do Trabalho aos desajustes econômicos, de modo a corroborar a vontade do setor empresarial de reduzir seus custos por meio da diminuição de direitos dos empregados, ou, validar, juridicamente, de forma generalizada, o subemprego, na ilusão de que se esteja, com isso, ampliando o acesso de mais trabalhadores ao mercado de trabalho, até porque com essa estratégia mantém-se fora dos necessários questionamentos os desajustes da ordem econômica, nos planos da produção, da circulação, da distribuição e das políticas públicas.
b) A natureza jurídica da relação de emprego
A compreensão da natureza do vínculo fornece elementos essenciais, do ponto de vista da dogmática jurídica, para visualização da estrutura das normas que incidem sobre o aludido vínculo. Permite saber não só quais os tipos de normas a aplicar, mas como encontrar o seu sentido (interpretar) e fazê-las atuar (aplicar). Em outras palavras, fornece o arcabouço de ordem dogmática que vai, enfim, delimitar a eficácia das normas que se destinam a regular o vínculo. Ou seja, determina o alcance da função do Direito que se constrói, de modo específico, para regular a relação de emprego. Assim, dito de forma ainda mais clara, enfrentar a discussão da natureza jurídica da relação de emprego é mexer na definição da própria função do Direito do Trabalho.
Malgrado a importância das advertências feitas pelos denominados anticontratualistas, acabou prevalecendo na doutrina a teoria contratualista. Entretanto, o que fora a essência da pregação dos anticontratualistas, a imperatividade das normas trabalhistas, não se perdeu. Esta essência do Direito do Trabalho acabou sendo assumida, como não poderia deixar de ser, pelos contratualistas. O que se verificou foi uma verdadeira revolução na própria concepção do contrato, que deixou de ser um negócio jurídico restrito à vontade das partes, passando a admitir a inserção de normas de ordem pública, mesmo sob o sacrifício da vontade.
Esta visão, aliás, irradiou do Direito do Trabalho para outros ramos, a ponto de, atualmente, o Direito Civil brasileiro tratar, expressamente, da “função social do contrato”.
O Direito do Trabalho se insere no contexto do Direito Social. O Direito Social, conforme leciona Cesarino Júnior “é o complexo dos princípios e leis imperativas, cujo objetivo imediato é, tendo em vista o bem comum, auxiliar a satisfazer convenientemente às necessidades vitais próprias e de suas famílias, às pessoas físicas para tanto dependentes do produto de seu trabalho”[iii].
Assim, não é a mera vontade que determina a realização do negócio jurídico ao qual o Direito do Trabalho se destina. O que determina esta incidência é a efetiva prestação de serviços, ou, em via inversa, a utilização da mão-de-obra alheia, sendo que não é qualquer prestação de serviços que delimita o campo de atuação do Direito do Trabalho e sim aquela que se execute de modo específico, qual seja: de forma não eventual, subordinada e mediante remuneração.
Este tipo de serviço, ou melhor, esta forma de utilização da mão-de-obra alheia atrai a aplicação do Direito do Trabalho independente da vontade das partes e mesmo quando estas, expressamente, queiram, por razões particulares, evitá-lo.
Relevante ressaltar, aliás, que é exatamente no ato da formação da relação jurídica que a vontade do trabalhador se presume viciada, pois para não perder a oportunidade de adquirir o emprego (na sua visão, um meio de vida e não mero negócio jurídico, ao qual se vincula por uma vontade livre e desembaraçada), o trabalhador acaba aceitando todas as condições que lhe são apresentadas pelo empregador, o que, aliás, independe da própria condição cultural e econômica do empregado.
Além disso, a regulação jurídica específica dessa relação se dá, como dito, com propósitos que vão muito além da mera satisfação dos interesses particulares dos sujeitos que lhe integram, individualmente considerados.
A normatização trabalhista vislumbra, inclusive, o interesse daqueles que estão, momentânea e aparentemente, fora do mercado de trabalho, visando possibilitar a sua inserção concreta. Lembre-se que é exatamente o excesso de mão de obra que impele o preço da força de trabalho para baixo e com ele a própria noção de direitos pela execução do trabalho.
Por isso, a proteção do ser humano que trabalha, e não o trabalho em si, é que constitui o objeto central da investigação jurídica. Como explica Mario de La Cueva, “…la parte medular de la doctrina que niega a la relación de trabajo origen y naturaleza contractuales es la afirmación de que el trabajo humano no puede ni debe quedar sujeto al derecho de las obligaciones y de los contratos, que es un derecho para las cosas, a diferencia del derecho del trabajo que es un derecho para los hombres”[iv].
Para efeito da identificação da relação de emprego vale recobrar que o conceito de subordinação, elemento essencial desse instituto jurídico, foi forjado por atuação jurisprudencial, na França, quando se percebeu que os ajustes contratuais – que são determinados por quem detém o poder econômico – procuravam impedir a responsabilização dos detentores dos meios de produção quanto aos acidentes de trabalho e que a impunidade que dessa contratualização resultava alimentava os conflitos sociais.
Como destaca François Ewald, alguns empregadores, para evitar qualquer responsabilidade frente aos acidentes, forjavam um contrato para “colocar o operário na posição de ser ele mesmo juridicamente encarregado de sua própria segurança”[v]. Mas, conforme relata o mesmo autor, “Os tribunais desvendam o artifício e declaram na ocasião, como verdadeiro critério da relação salarial, o poder de direção do empregador e a situação de subordinação do assalariado” [vi].
A subordinação, portanto, não é uma submissão do trabalhador ao controle disciplinar de um contratante específico, como, de forma equivocada, se costumou entender, e sim um conceito jurídico próprio do Direito Social para suplantar os artifícios do contratualismo do Direito Civil clássico que serviam para evitar a responsabilidade do capital pela exploração do trabalho.
c) Terceirização de atividade-fim
O ordenamento não pode estabelecer um padrão jurídico e, em paralelo, criar outro padrão contraditório com o primeiro. A ordem jurídica, por razões até de lógica, se estabelece a partir do parâmetro de regra e exceção, sendo que as exceções, direcionadas a fatos específicos, não regulados pela regra, precisam, além disso, ser claramente justificadas.
Falando de modo mais direto, não é possível que a ordem jurídica estabeleça a relação de emprego como regra geral da vinculação entre o capital e o trabalho e se permita, ao mesmo tempo, que a relação de emprego não seja esse mecanismo de vinculação do capital ao trabalho, vendo-o tão somente como o efeito de um ajuste de vontades, que possibilita ao capital se distanciar, quando queira, do trabalho pela contratação de entes interpostos.
Adotados esses pressupostos teóricos fica fácil perceber o quanto são ilusórias as regulações da Lei n. 13.467/17 que pretendem afastar o primado da relação de emprego, com prazo indeterminado e proteção jurídica integral.
A terceirização generalizada, ademais, representa uma destruição completa do projeto de Direito Social.
Adotados esses pressupostos teóricos fica fácil perceber o quanto são ilusórias as regulações da Lei n. 13.467/17 que pretendem afastar o primado da relação de emprego, com prazo indeterminado e proteção jurídica integral.
A terceirização generalizada representa uma destruição completa do projeto de Direito Social.
Claro que não está obstada pela ordem jurídica, considerando-se as características do modelo capitalista, a formação de empreendimentos empresariais cuja atividade é a realização de serviços, ou seja, atividades empresariais cujo objeto é a venda de serviços prestados por seres humanos e não propriamente de um produto.
Mas é necessário, primeiro, que esse serviço tenha alguma qualificação específica, dentro de um contexto organizacional próprio, sendo que o permissivo, de todo modo, não pode conflitar com a regra geral de que as atividades do processo de trabalho, ligadas à realização do capital, nas quais se inserem o comércio e a financeirização, devem ser desenvolvidas sem intermediários.
Uma prestação de serviços só pode se desenvolver de modo regular, juridicamente falando, no contexto do Direito Social, para a realização de atividades que não estejam inseridas ao conjunto daquelas que são necessárias, de forma permanente, à concretização do objeto empresarial daquele que contrata tais serviços, até porque quanto mais intermediações se efetivam no processo produtivo, mais distante o trabalhador fica do capital e mais difícil se torna a concretização do projeto de uma ordem social mínima para o capitalismo.
A ampla discussão que se travou publicamente sobre a terceirização, que conduziu ao ponto de se pretender autorizar a terceirização da atividade-fim, paradoxalmente, acabou permitindo que se percebesse que já não havia qualquer sentido em autorizar a terceirização da atividade-meio, que não difere, pois, da terceirização da atividade-fim, até por ser um artifício retórico. Uma e outra forma de terceirização não passam de mera intermediação de mão de obra, que atrai a aplicação do preceito trabalhista, internacionalmente consagrado, da proibição desse tipo de atividade mercantil.
Fato é que quando a lei autoriza a terceirização da atividade-fim cria-se a ilusão de acreditar que é possível o capital se realizar sem uma correlação com o trabalho e que, juridicamente, em uma realidade regrada pelo Direito Social, se teria uma fórmula para impedir a responsabilidade do capital frente ao trabalho, a não ser por uma concessão do capitalista, que só não terceiriza se não quiser. Em outras palavras, que seria juridicamente permitido ao capital não se ver mais obrigatoriamente vinculado ao projeto social, estando submetido, unicamente, à sua própria lógica.
Mas a organização do modelo capitalista de produção pelo Direito Social não pode se efetivar dentro desse marco dos parâmetros de escolha do capitalista, ainda mais porque suas opões estão condicionadas à pressão da concorrência, que lhe impõe posturas que acabam sacrificando o trabalho e o projeto social, destruindo as possibilidades de concretização de políticas públicas.
Então, quando a lei chega ao ponto de autorizar a terceirização da atividade-fim, o efeito jurídico necessário, para a manutenção da ordem social, assegurada na Constituição Federal, fixada nos Tratados internacionais de Direitos Humanos, com realce para as Convenções da OIT, e nos princípios do Direito do Trabalho, é o de se afirmar o contrário, ou seja, que a terceirização, juridicamente falando, não existe e o mecanismo que se tem para isso é o da declaração da relação de emprego, instituto cujo primado foi preservado na “reforma” e que foi criado exatamente para estabelecer, de forma obrigatória, um vínculo jurídico entre o trabalho e o capital, atribuindo-se a este uma responsabilidade social mínima e, claro, para proteger o ser humano trabalhador e lhe permitir projetar e almejar uma melhoria para a sua própria vida.
d) Trabalho intermitente
Quanto ao trabalho intermitente é exatamente a mesma coisa, valendo acrescentar a inconsistência da regulação trazida na Lei n. 13.467/17, quando diz que em qualquer atividade e para não importa qual serviço pode-se firmarem contratos intermitentes. Ora, se o primado é o da relação de emprego, para atender ao postulado da melhoria da condição social dos trabalhadores e favorecer o desenvolvimento econômico socialmente sustentável, não é possível conceber que a intermitência seja posta em paralelo com a relação de emprego pleno, pois isso apenas incentiva uma concorrência fratricida entre os empregadores, favorecendo os que meramente almejam uma redução de custos, destruindo toda possibilidade de organização do modelo.
Mesmo do ponto de vista estritamente lógico, se a formação do contrato intermitente não estiver ligada à intermitência do serviço, em correspondência com uma demanda muito peculiar, todas as relações de emprego pleno poderão ser substituídas pelos contratos intermitentes. Assim, se teria uma empresa cuja atividade não está relacionada a qualquer demanda intermitente, atuando 24 horas por dia, sem possuir um empregado efetivo sequer, o que, claro, depõe contra a lógica da intermitência, pois daí o que resultará será a mera fraude, caracterizada pela relação falseada entre uma atividade permanente e vários trabalhos intermitentes, atraindo a aplicação do art. 9º da CLT:
“Art. 9º – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.”
3.3 Os fundamentos jurídicos específicos da reforma
Juridicamente falando, o que direciona o intérprete e aplicador da lei são os princípios, ou, mais propriamente, os valores e objetivos que embasam o conjunto normativo. Do ponto de vista político, os valores e objetivos da lei em questão foram aqueles acima enunciados, mas o Direito, como se sabe, tem vida própria, e no plano jurídico os valores e objetivos que embalaram a “reforma” foram outros.
Os fundamentos teóricos, admitidos enquanto tais, da “CLT temerista” (ou temerária, como queiram), foram enunciados, claramente, nos pareceres elaborados na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, tendo sido também expressos por todos aqueles que defenderam a “reforma”, com forte eco na grande mídia, quais sejam:
a) Eliminação da insegurança jurídica;
b) Geração de empregos (ou redução do desemprego);
c) Não redução de direitos;
d) Correspondência plena com a Constituição;
e) Flexibilização, para melhor adaptação da lei a determinadas necessidades
f) Modernização da legislação, acompanhando a evolução tecnológica;
g) Fortalecimento da atuação sindical.
Mesmo que se tenha utilizado tais argumentos apenas como forma de tentar criar um ambiente menos hostil na opinião pública para a aprovação de uma lei regressiva de direitos, o fato é que, do ponto de vista da linguagem jurídica, esses passaram a ser os fundamentos que integram a lei e direcionam o seu intérprete e aplicador.
Vejamos alguns efeitos jurídicos concretos disso.
a) Eliminação da insegurança jurídica
Ao pontuarem a questão da insegurança jurídica, os defensores da reforma estabeleceram o pressuposto de que os empregadores no Brasil são fiéis cumpridores da lei e que somente não o faziam completamente, em algumas parcas situações, por causa da complexidade da lei, sendo que muitas vezes eram surpreendidos por decisões judiciais que ampliavam suas obrigações para além da previsão legal.
Com o advento da lei que foi escolhida pelo próprio setor empresarial, fica, agora, completamente afastada a possibilidade de não se aplicar a lei, ou, ao menos, essa postura não será tolerada, nem mesmo pelos que criaram, defenderam e aprovaram a lei da “reforma”. O setor empresarial como um todo não poderá se unir em torno de empregadores que deliberadamente descumprem a lei, não valendo para isso nem mesmo o argumento de dificuldade econômica.
Assim, ficam abolidas as farras da: contratação sem registro; do pagamento de salário “por fora”; da ausência de cartões de ponto que reflitam a efetiva jornada trabalhada; a falta de pagamento de verbas rescisórias; o não recolhimento de FGTS etc.
Não que essa realidade simplesmente deixará de existir. No plano do “ser” continuarão ocorrendo, mas no campo jurídico do “dever-ser” passam a ser necessariamente reconhecidas, como sempre deveriam ter sido, aliás, e até mesmo pelo próprio setor empresarial, como práticas ilícitas destruidoras das garantias oferecidas pelos fiadores do capital. Esse pressuposto teórico reforça o caráter punitivo que se deve atribuir a tais práticas, não sendo, pois, suficientes as condenações para o pagamento apenas do valor correspondente ao que seria devido se o ilícito não tivesse sido cometido.
Diante do pacto de moralidade do setor empresarial feito consigo mesmo, que se insere na lógica da Lei n. 12.529/11, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, resta reforçada a noção de que o desrespeito aos direitos trabalhistas representa uma infração à ordem econômica. Nos termos da Lei n. 12.529/11, constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; (….) III – aumentar arbitrariamente os lucros.
Extrai-se dessa argumentação utilizada em larga escala pelo próprio setor empresarial o princípio da intolerância quanto ao deliberado descumprimento da lei, ainda mais quando utilizado como meio de obter vantagem econômica sobre a concorrência, até porque, segundo assegurado pelos apoiadores da reforma, isso jamais teria existido na realidade das relações de trabalho no Brasil.
Assim, sai reforçada, por admissão do próprio setor empresarial que encabeçou a “reforma”, a pertinência das condenações por dano social, decorrente de práticas ilícitas reiteradas, nos termos da Ementa a seguir transcrita:
“Dano social. Agressões reiteradas e sistemáticas aos direitos dos trabalhadores. Repercussão na sociedade. Correção da postura pelo Judiciário. Indenização suplementar independente de pedido. Condenação EX OFFICIO. Inexistência de julgamento EXTRA PETITA.
A constatação, em reclamação individual, de agressões reiteradas às normas trabalhistas atinge, não apenas o reclamante, mas outros trabalhadores e mesmo empresas concorrentes, o que deixa firme que a questão abarca realidade bem maior, em claro e notório dano social, com repercussão em toda a sociedade, obrigando a que o Judiciário atue no intuito de correção de prática tão danosa, por meio de condenação do respectivo empregador ao pagamento de indenização suplementar, de ofício, tendo como destinatária entidade reconhecidamente idônea e de atuação reconhecida e irrepreensível em prol da coletividade, o que não configura decisão extra petita, e encontra guarida de ordem positiva no art. 404, parágrafo único, do Código Civil, bem como em caros princípios do ordenamento jurídico pátrio, em especial o da dignidade da pessoa humana, a par de conferir concretude aos valores sociais do trabalho e a justiça social. (TRT 15ª Região, 3ª Turma, 6ª Câmara, Processo n. 0001032-98.2012.5.15.0156 RO, Origem: Vara Itinerante do Trabalho de Morro Agudo, Desembargador Relator, FRANCISCO ALBERTO DA MOTTA PEIXOTO GIORDANI)”
Outro efeito que decorre do princípio da intolerância frente ao ilícito trabalhista é o de que está obstada a atuação processual, infelizmente muito comum na Justiça do Trabalho, de homologação de acordos que representam renúncias a direitos, eis que esse procedimento torna válidas as práticas ilegais, favorecendo o empregador que descumpre a lei e, com isso, obtém vantagem econômica sobre a concorrência.
b) Geração de empregos (ou redução do desemprego)
Elevada à condição de fundamento jurídico, a promessa de geração de emprego impõe que se considere inválida toda a aplicação da lei que implique em transferência de trabalhadores da condição de empregos efetivos para empregos precários e, claro, toda forma de cessação coletiva de vínculos de emprego, ainda que com o disfarce do PDV, para a recolocação de outros trabalhadores, com salários menores e contratos precários. E isso não é mera teoria, pois dias depois da aprovação da “reforma”, uma instituição, cujo lucro líquido em 2016 foi de R$17,121 bilhões, anunciou a abertura de um PDV para eliminação de 10 mil empregos[vii].
As fórmulas jurídicas criadas na “reforma”, como o trabalho intermitente, o contrato a tempo parcial, o trabalho temporário (com prazo ampliado), a terceirização da atividade-fim, nos termos pressupostos da “reforma”, só podem ter incidência concreta para ampliar o nível de emprego.
Isso representa que se extrai do conjunto normativo da “reforma” uma cláusula geral de garantia de emprego contra a dispensa arbitrária (conforme consagra, aliás, o art. 7º, I, da CF), ao menos no que se refere à impossibilidade da substituição de empregados efetivos por trabalhadores em contratos precários, até porque a transposição representaria o desatendimento do fundamento humanístico que se diz ter impulsionado a “reforma”, no sentido da preocupação com os 14 milhões de desempregados.
Assim, todo empregado que for conduzido ao desemprego para que outro, em contrato precário for contratado, tem o direito de ser reintegrado ao emprego, com o recebimento dos salários e demais direitos desde a dispensa até a efetiva reintegração, ou optar pelo recebimento em dobro dos salários do período do afastamento (da dispensa até a data da prolação da sentença), além dos demais direitos consequentes, nos termos do art. 4º da Lei n. 9.029/95, já que, como decorrência da vigência da Lei n. 13.467/17, o empregado com plenos direitos não pode, por ostentar tal condição, sofrer tratamento diferenciado, no sentido de ser considerado um privilegiado que deve ceder espaço aos menos remunerados e precários.
Não sendo assim, os empregados correm o risco de serem assediados pelos empregadores, servindo a lei, unicamente, como instrumento de poder do capital sobre o trabalho e a isso os defensores da reforma garantiram que a lei não serviria.
Registre-se que esse direito atinge, também, as situações de dispensas coletivas que se consumaram no período imediatamente anterior à aprovação da “reforma”[viii], vez que não se pode negar a relação de causa e efeito entre as dispensas e o advento futuro da lei.
Por aplicação do princípio clássico do Direito do Trabalho, da condição mais benéfica, os efeitos da nova lei só atingem as relações de emprego em curso para ampliar a proteção jurídica dos empregados, jamais para lhes impor retrocessos ou lhes submeter a uma condição de discriminação por “excesso” de direitos.
c) Não redução de direitos
Extrai-se dos argumentos da defesa da reforma, igualmente, o preceito de que os termos da Lei n. 13.467/17 não podem representar redução de direitos e, evidentemente, a análise do que seja redução deve partir de um ponto determinado para a devida comparação, que será, necessariamente, o da realidade existente antes do advento da nova lei, considerando o patamar estabelecido pelo conteúdo dos contratos individuais de trabalho, as disposições contidas em acordos coletivos e convenções coletivas de trabalho e as previsões legais, dentre elas, certamente, aquelas constantes da “velha” CLT.
Por incidência do princípio da condição mais benéfica, cujo vigor foi preservado, não pode haver rebaixamento do patamar jurídico já fixado para os trabalhadores, até porque, como estabelecido no pressuposto da “reforma”, como se garantiu, não haveria qualquer redução de direitos para os trabalhadores.
d) Correspondência plena com a Constituição
Como dito expressamente em diversas ocasiões pelos patrocinadores da reforma, como, em tese, não poderia mesmo ser diferente, embora em tempos de ruptura democrática tudo possa ser tentado, não é possível que uma lei ordinária revogue uma Constituição.
Os direitos trabalhistas, previstos constitucionalmente, devem estar todos integralmente garantidos, embora já se tenha tentado, historicamente, pela via obliqua da interpretação, desconstituir a Constituição.
A grande questão, portanto, é saber o que, de fato, está consignado na Constituição, sendo que este “dever de casa” não foi devidamente realizado pelos propulsores da “reforma”.
Enfim, em 1º de fevereiro de 1987, instalou-se a Assembleia Nacional Constituinte. Ao longo dos trabalhos, a Assembleia Constituinte esteve aberta a propostas de emendas populares. Para tanto, bastaria que as sugestões fossem encaminhadas por intermédio de associações civis e subscritas por, no mínimo, 30 mil assinaturas que atestassem o apoio popular à proposta.
Até o encerramento dos trabalhos, a Assembleia Constituinte recebeu mais de 120 propostas de emendas constitucionais nas mais diversas áreas, reunindo cerca de 12 milhões de assinaturas.
A Assembleia Nacional Constituinte, sob a Presidência de Ulysses Guimarães, eleito para tal função pelos constituintes em 02 de fevereiro de 1987, foi posta diante de grandes desafios, sendo certo que os trabalhadores se apresentavam como classe social em evidência, cujos interesses não podiam ser desconsiderados.
Não havia, portanto, quem se opusesse à ampliação das garantias aos trabalhadores. A única resistência se dava unicamente acerta dos limites dessa ampliação. Neste sentido, aliás, foi que se ativou o grupo político denominado “centrão”, apoiado por empresários e proprietários rurais (estes representados pela UDR – União Democrática Ruralista, organização ultraconservadora liderada por Ronaldo Caiado).
O resultado, de todo modo, foi a construção de uma Constituição que avançou bastante em valores sociais, mesmo que em alguns aspectos pudesse ter avançado muito mais.
Fato é que a valorização social do trabalho na Constituição é inegável.
No título dos Princípios Fundamentais, assegurou-se a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º). Repare-se que o valor social não diz respeito apenas ao trabalho, que estaria, para muitos olhares restritivos, limitado aos interesses da livre iniciativa, mas também a esta, que, assim, está contornada pelos valores sociais.
No artigo 3º restaram consignados como objetivos fundamentais da República: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária; II- garantir o desenvolvimento nacional; III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
O artigo 4º estabeleceu que a prevalência dos Direitos Humanos deve reger a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais.
Mesmo no título dos clássicos “direitos civis”, a preocupação com a agenda social está evidenciada. O inciso XXII, do artigo 5º, garante o direito de propriedade, mas, logo na sequência, o inciso XXIII do mesmo artigo estabelece que a propriedade deve atender a sua função social.
O artigo 184 autorizou à União “desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”. O artigo 186, em complemento, esclareceu: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I- aproveitamento racional e adequado; II- utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III- observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV- exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
É inegável que a Constituição brasileira preservou as bases do modelo capitalista: direito de propriedade, livre iniciativa e direitos individuais. No entanto, não o fez a partir de uma ordem jurídica liberal. O sistema jurídico constitucional fixou como parâmetro a efetivação de valores que considera essenciais para a formação de um “desenvolvimento sustentável”, ou, em outras palavras, um capitalismo socialmente responsável a partir dos postulados do Direito Social.
O artigo 170, que regula a ordem econômica nacional, não deixa margem para dúvida quanto a isso, quando estabelece que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, dentre outros, os princípios da função social da propriedade; da redução das desigualdades regionais e sociais; e da busca do pleno emprego.
Lembre-se, ainda, que o direito de greve, essencial à democracia, vez que instrumentaliza a necessária luta dos trabalhadores por melhores condições de vida e de trabalho, foi assegurado de forma ampla, sendo preconizado que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender (art. 9º).
O capitalismo nacional, assim, do ponto de vista jurídico, está atrelado ao desenvolvimento social, não se podendo, pois, querer encontrar no próprio direito uma autorização para que o descumprimento das regras constitucionalmente fixadas no âmbito dos Direitos Sociais seja utilizado com estratégia econômica. Decididamente, a ordem jurídica não confere às empresas um direito para que, com o exercício do poder econômico, imponham aos trabalhadores uma redução das garantias sociais constitucionalmente fixadas. Desse modo, a negociação coletiva, que é reconhecida pela Constituição, não se presta à mera diminuição de direitos dos trabalhadores e à reivindicação de redução de custos e retirada de direitos – que se vislumbra com a ampliação da terceirização – sob o falacioso argumento de que isso serviria para alavancar a economia, não possui amparo constitucional.
Mesmo uma reforma constitucional não poderia caminhar no sentido da derrocada das conquistas históricas dos trabalhadores, vez que as cláusulas pétreas da Constituição não podem ser alteradas, sendo certo que nelas se incluem os direitos fundamentais, dentre os quais se encontram os direitos sociais (arts. 6º a 9º), pois, conforme bem pontua Paulo Bonavides, “só uma hermenêutica constitucional dos direitos fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e democrático de direito pode iluminar e guiar a reflexão do jurista para a resposta alternativa acima esboçada, que tem por si a base de legitimidade haurida na tábua dos princípios gravados na própria Constituição (arts. 1º, 3º e 170) e que, conforme vimos, fazem irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica ‘direitos e garantias individuais’ (art. 60, 4º, IV), a qual não pode, assim, servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais”[ix].
Está mais que evidente, portanto, que a Constituição avançou na proteção dos direitos dos trabalhadores, ainda mais se considerarmos que estes foram alçados ao Capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais, tendo como propósito claro alcançar a melhoria da condição social dos trabalhadores, notadamente por meio da compreensão da relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa (art. 7º caput e inciso I).
Assim, ao contrário do que se tentou consagrar pela contrarreforma neoliberal da década de 90, e que foi retomado pelos defensores da atual “reforma” trabalhista, a flexibilização não foi uma opção constitucional, até porque o termo flexibilização não foi utilizado em nenhum dos inúmeros debates travados na Comissão de Sistematização, expressos em 2.397 páginas.
Os debates na Comissão foram marcados, isto sim, por uma atuação de resistência de constituintes ligados ao empresariado às inúmeras propostas de ampliação de direitos trabalhistas, tendo havido, inclusive, a apresentação, em 27/08/87, da Emenda Popular n. 54, com 630.714 assinaturas de trabalhadores pleiteando a consagração de: estabilidade no emprego; redução da jornada para 40 horas; férias em dobro; direito de greve; aposentadoria integral e autonomia sindical.
O conteúdo que se extrai dos debates passa ao largo de toda a discussão trazida em parte da doutrina trabalhista, em torno da adoção de um sistema jurídico trabalhista que atendesse às necessidades das empresas em tempos de crise, de modo a abalar os princípios básicos do Direito do Trabalho. Muito pelo contrário, com relação ao papel a ser cumprido pela Constituição, de elevar os direitos trabalhistas, houve pleno consenso, estabelecendo-se divergência apenas quanto ao alcance desses avanços.
O intenso debate travado sobre a estabilidade no emprego é prova consistente disso, pois a única divergência estabelecida foi quanto a se deveria adotar uma forma de proteção do emprego plena ou mitigada, inspirada, esta última, na previsão da Convenção 158 da OIT, da proteção contra a dispensa arbitrária.
O resultado de um avanço menos intenso dos direitos dos trabalhadores na Constituição foi fruto das intensas articulações do “centrão” e da mobilização das forças empresariais, o que levou, inclusive, aos trabalhistas a se sentirem derrotados com os termos finais da Constituição porque não foi até os pontos que pretendiam, chegando mesmo a votar contra o texto final, embora a tivessem assinado.
Não houve em momento algum a apresentação de proposições que buscassem retrocessos nos direitos trabalhistas, até porque não havia ambiente político favorável para tanto no âmbito da Constituinte.
Assim, não será possível encontrar na Constituição Federal um fundamento para justificar situações concretas em que uma “flexibilização” represente diminuição do patamar jurídicos dos trabalhadores.
De forma concreta, por exemplo, é não se poderá conferir validade jurídica ao recebimento do valor de salário inferior a um salário mínimo nos contratos intermitentes, vez que a Constituição Federal (art. 7º, IV), sem abrir qualquer excepcionalidade, assegurou aos trabalhadores, em seus vínculos de emprego, independente da modalidade ou número de horas trabalhadas no mês (sendo que um menor número de horas de trabalho representa uma condição mais favorável ao trabalhador), o recebimento de um salário mínimo, que representa, igualmente, um balizador da concorrência entre os diversos empregadores
e) Flexibilização, para melhor adaptação da lei a determinadas necessidades
O termo “flexibilização”, como já ocorrera na década de 90, foi utilizado como um eufemismo para não se perceber a realidade, embutida na fórmula do negociado sobre o legislado, de uma imposição, pela força, aos sindicatos, da aceitação de redução de direitos, mas que não aparece como tal e sim como efeito de uma negociação. Mas se para “flexibilizar” é preciso superar a lei é porque o que se pretende é diminuir o alcance das garantias legais em favor dos trabalhadores, pois, como se sabe, para ampliar os direitos, nunca houve impedimento jurídico.
De todo modo, o que restou da “reforma” foi um compromisso de que a “flexibilização” não reduzirá direitos, até porque é totalmente equivocado, considerando os preceitos constitucionais, os princípios jurídicos trabalhistas e as Convenções da OIT, entender que acordos e convenções coletivas de trabalho possam, sem qualquer avaliação de conteúdo, reduzir direitos trabalhistas legalmente previstos, simplesmente porque a Constituição previu o “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho” (inciso XXVI, do art. 7º) e permitiu, expressamente, por tal via, a redução do salário (inciso VI, art. 7º), a compensação da jornada (inciso XIII, art. 7º) e a modificação dos parâmetros da jornada reduzida para o trabalho em turnos ininterruptos de revezamento (inciso XIV, do art. 7º).
Ora, o artigo 7º, em seu “caput”, deixa claro que os incisos que relaciona são direitos dos trabalhadores, ou seja, direcionam-se a um sujeito específico, o trabalhador, não se podendo entendê-las, consequentemente, como algum tipo de proteção do interesse econômico dos empregadores. Além disso, as normas são, inegavelmente, destinadas à melhoria da condição social dos trabalhadores.
Não se pode ver nos preceitos fixados nos incisos do art. 7º os fundamentos jurídicos para fornecer aos empregadores a possibilidade de, por um exercício de poder, induzirem os trabalhadores, mesmo que coletivamente organizados, a aceitarem a redução dos direitos trabalhistas legalmente previstos, ainda mais quando tenham sede constitucional e se insiram no contexto dos Direitos Humanos.
O inciso VI, do art. 7º, por exemplo, que cria uma exceção ao princípio da irredutibilidade salarial, permitindo a redução do salário, e nada além disso, por meio de negociação coletiva, insere-se no contexto ditado pelo “caput” do artigo, qual seja, o da melhoria da condição social do trabalhador e não se pode imaginar, por evidente, que a mera redução de salário represente uma melhoria da condição social do trabalhador. Assim, o dispositivo em questão não pode ser entendido como autorizador de uma redução de salário só pelo fato de constar, formalmente, de um instrumento coletivo (acordo ou convenção).
A norma tratada, consequentemente, só tem incidência quando a medida se considere essencial para a preservação dos empregos, atendidos certos requisitos. A Lei n. 4.923/65, ainda em vigor, mesmo que parte da doutrina assim não reconheça, pois não contraria a Constituição, muito pelo contrário, fixa as condições para uma negociação coletiva que preveja redução de salários: redução máxima de 25%, respeitado o valor do salário mínimo; necessidade econômica devidamente comprovada; período determinado; redução correspondente da jornada de trabalho ou dos dias trabalhados; redução, na mesma proporção, dos ganhos de gerentes e diretores; autorização por assembleia geral da qual participem também os empregados não sindicalizados.
A própria Lei de Falência e Recuperação Judicial, n. 11.101/05, de vigência inquestionável, parte do pressuposto ao respeito à política de pleno emprego, à valorização social do trabalho humano e à obrigação de que a livre iniciativa deve assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.
A recuperação judicial é um mecanismo jurídico, cuja execução compete ao Estado, por intermédio do Poder Judiciário, e tem por finalidade preservar as empresas que estejam em dificuldade econômica não induzida por desrespeito à ordem jurídica e que tenham condições de se desenvolver dentro dos padrões fixados pelo sistema, tanto que um dos requisitos necessários para a aprovação do plano de recuperação é a demonstração de sua “viabilidade econômica” (inciso II, do art. 53, da Lei n. 11.101/05).
O art. 47, da Lei n. 11.101/05, é nítido quanto a estes fundamentos: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.” (grifou-se)
Fácil verificar, portanto, que tal lei não se direciona à mera defesa do interesse privado de um devedor determinado. A lei não conferiu um direito subjetivo a quem deve, sem se importar com a origem da dívida e a possibilidade concreta de seu adimplemento. Não estabeleceu, consequentemente, uma espécie de direito ao “calote”, até porque sem a possibilidade concreta de manter a atividade da empresa com base em tais postulados esta deve ser conduzida à falência (art. 73, da Lei n. 11.101/05).
O que há na lei é a defesa das empresas numa perspectiva de ordem pública: estímulo à atividade econômica, para desenvolvimento do modelo capitalista, preservando empregos e, em conformidade com a Constituição, visualização da construção de uma justiça social.
A lógica do ordenamento jurídico que se direciona à manutenção da atividade produtiva das empresas é a da preservação dos empregos, admitindo como meios de recuperação judicial, a “redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva” (art. 50, inciso VIII, da Lei n. 11.101/05).
Para tanto, exige-se, ainda, a “exposição das causas concretas da situação patrimonial” da empresa e “das razões da crise econômico-financeira” (inciso II, do art. 51), além da “demonstração de sua viabilidade econômica” (inciso II, do art. 53), dentre diversos outros requisitos, sendo relevante destacar que a dispensa coletiva de empregados, em respeito ao art. 7º, I, da Constituição, não está relacionada como um meio de recuperação da empresa (vide art. 50).
Como se vê, a ordem jurídica não autoriza concluir que os modos de solução de conflitos trabalhistas possam ser utilizados como instrumentos de meras reduções dos direitos dos trabalhadores, sendo relevante realçar os fundamentos que lhe são próprios, conforme acima destacado: a) fixar parâmetros específicos para efetivação, em concreto, dos preceitos normativos de caráter genérico referentes aos valores humanísticos afirmados na experiência histórica; b) melhorar, progressivamente, as condições sociais e econômicas do trabalhador.
O sistema jurídico constitucional, reitere-se, serve como instrumentalização do modelo capitalista, fixando como parâmetro a efetivação de valores que considera essenciais para a formação de um “desenvolvimento sustentável”, ou seja, um capitalismo que segue as balizas da eficácia dos Direitos Humanos (individuais, sociais e ambientais). Em linguagem midiática, para comover o consumidor, fala-se em “responsabilidade social”, “consciência ecológica” ou “ética concorrencial”. Tudo isso dentro de uma lógica que almeja privilegiar quem age corretamente no que se refere ao respeito das normas jurídicas constitucionais.
f) Modernização da legislação, acompanhando a evolução tecnológica
Aqui nem há muita consequência a se extrair, dado o ponto fantasioso que o argumento alcança. De todo modo, é possível negar vigência a diversos dispositivos da Lei n. 13.467/17 que, contrariando o seu próprio enunciado, não se vale do potencial tecnológico para, por exemplo, atribuir eficácia concreta ao direito constitucional à limitação da jornada de trabalho com relação aos trabalhadores em teletrabalho, ou para conferir efetividade à execução no processo do trabalho.
g) Fortalecimento da atuação sindical
Dentro do objetivo da reforma de ampliar a força do sindicato, há de se negar validade a diversos dispositivos da Lei que, expressamente, afastam o sindicato de decisões importantes da vida dos trabalhadores na sua relação com o empregador.
Além disso, tem-se como efeito necessário o acatamento da efetiva aplicação do dispositivo constitucional que garantiu aos trabalhadores o livre exercício do direito de greve (art. 9º), sem possibilidade, portanto, de intervenção estatal para coibir a greve e obrigar os trabalhadores e retornar ao trabalho.
O fortalecimento da atuação sindical, além disso, retira a representação sindical das amarras da categorização fixada na “velha” CLT. Os sindicatos poderão atuar dentro de uma lógica multicategorial, respeitados, evidente, os preceitos democráticos para a sua constituição e o seu desenvolvimento.
Sobressai, ademais, a compreensão da prática de atos antissindicais como um dano social, nos termos da Ementa abaixo:
“ATOS ANTISSINDICAIS. DUMPING SOCIAL. DANO SOCIAL. REPERCUSSÃO ATUAL E FUTURA NA SOCIEDADE. FIXAÇÃO PRUDENTE DE INDENIZAÇÃO ADICIONAL DE OFÍCIO EM DISSÍDIO COLETIVO. A prática de atos antissindicais por intermédio do “dumping social”, com repercussão em toda a sociedade, não pode ser menosprezada pelo Judiciário Trabalhista. Não se pode ignorar que tal ato prejudica não apenas os trabalhadores, bem como a razoável duração dos demais processos decorrentes da propositura de novas reclamatórias postulando os direitos decorrentes, mas a própria economia, na medida em que provocará a concorrência desleal com os demais empresários. Pior ainda, constitui perigoso precedente, que poderá ser copiado pelos demais concorrentes. Identificado o “dumping”, os prejuízos causados e o risco para a sociedade, pode o Judiciário, para cumprir o dever de estabelecer a justa recomposição, conceder indenização adicional de ofício em favor de estabelecimento local benemerente. Assim, apesar da regra geral insculpida no art. 460 do CPC, a interpretação sistemática da legislação (arts. 461, § 5º, do CPC; 186, 187, 404, 883, 944 e 927 do CC; 81, 84 e 100, do CDC) abre um leque de opções proporcionais à extensão do dano, especialmente nos feitos coletivos, mediante a fixação prudente e equilibrada de indenização adicional. Devida, assim, indenização adicional em favor de entidade benemerente.” (TRT 15ª Região – SDC – Processo n. 0000385-86.2012.5.15.0000 – DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE – Desembargador Relator, SAMUEL HUGO LIMA – DJ 15/05/2012)”
4. Conclusão
Como se vê, os próprios argumentos que foram utilizados no processo legislativo para que a “reforma” fosse impulsionada a toque de caixa, isto é, sem o tempo necessário para uma mínima reflexão inclusive daqueles que, mesmo sem querer saber qual seria o destino, embarcaram na nau da “reforma”, conferem a possibilidade de combater o objetivo não assumido da “reforma”, que é o da imposição de rebaixamento salarial, redução de direitos, precarização e fragilização da classe trabalhadora.
É que mesmo a tal “CLT de Temer” não pertence a Temer e seus companheiros. Como todas as demais leis, a Lei n. 13.467/17 se integra ao ordenamento jurídico e o seu sentido pleno somente se dará pela consonância com as demais normas e princípios, com observância dos fundamentos que a embasaram no processo legislativo e, claro, mediante o essencial respeito aos preceitos constitucionais e aos valores consignados em Tratados internacionais de Direitos Humanos, nas Convenções da OIT e nos princípios específicos do Direito do Trabalho.
Do ponto de vista formal, para aqueles que compreendem a relevância da rede de proteção social, a qual impõe limites aos interesses puramente econômicos, de grupos localizados, e se comprometeram, por dever funcional, com a efetivação dos preceitos constitucionais e internacionais ligados ao projeto que pressupõe a melhoria efetiva da vida em sociedade, sobressaindo, para esse efeito, os princípios do Direito do Trabalho, a derrota no procedimento legislativo é um fato consumado (embora, claro, não seja imutável, estando sempre sujeito a reversão), mas a “luta pelo Direito” está só começando e será justamente nesse momento que as falas e os atos vão se expressar de modo ainda mais revelador.
São Paulo, 15 de julho de 2017.
(**) Nos próximos textos, com sustentação nos fundamentos supra, trarei as interpretações dos dispositivos, um a um, da lei em questão.
[i]. Disponível em Documento da OIT reforça argumentos contra a reforma trabalhista – Carta Maior
[ii]. Prova disso são as constantes pesquisas que procuram demonstrar o nível do emprego até como forma de medir o nível do desenvolvimento sócio-econômico do país. Lembre-se, também, que a principal plataforma política dos candidatos, em épocas de eleição, é a elevação no número de empregos.
[iii]. CESARINO JR., Antônio Ferreira. Direito Social brasileiro. Vol. I. São Paulo: Freitas Bastos, 1957, p. 13.
[iv]. CUEVA, Mario de La. Derecho mexicano del trabajo. Tomo I. México: Porruá, 1960, p. 478.
[v]. EWALD, François. Historie de l’État Providence: les origines de la solidarité. Paris: Grasset, 1996, p. 214.
[vi]. EWALD, François. Historie de l’État Providence: les origines de la solidarité. Paris: Grasset, 1996, p. 214.
[vii]. Disponível em Bradesco lança plano de demissão voluntária.
[viii]. Vale verificar que a “reforma”, mesmo antes de concluída, mas com a previsão de sua aprovação, já vinha produzindo o efeito das dispensas em massa para a recontratação com menor preço ou, simplesmente, eliminar empregos. Vide em:
–Bradesco lança plano de demissão voluntária
– Correios lança plano de demissão voluntária e esperam adesão de mais de 8200 voluntários
– Petrobras abre programa de demissão voluntária para mais de dez mil trabalhadores
– Conab conclui programa de demissão voluntária em junho
– FMU demite 220 docentes e preocupa alunos com anúncio de reformulação
[ix]. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 597.
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