Por: Diego Braga, de Porto Alegre, RS1,
Quem se mistura com porcos, farelo come.
– sabedoria popular –
Formular opiniões no calor dos acontecimentos traz um risco enorme. Mas a condenação de Lula em primeira instância precisa ser debatida. Cabe, no debate, formular algumas hipóteses, uma vez que na luta política é fundamental tentar conhecer o pensamento do inimigo e as intenções por trás de seus atos. Esta pequena nota busca especular sobre algumas agendas e desdobramentos que talvez estejam articulados à sentença de Moro da forma e no contexto em que se deu.
Lula foi condenado sem provas consistentes, materiais. A base da condenação foi uma delação premiada. Mas este fato, ainda que agravante do teor político da decisão, tem importância relativa. Colocando de forma mais própria: se tivesse sido condenado com provas, a tal sentença estaria isenta de problemas políticos? Condenado Lula com ou sem provas, as duas conclusões mais importantes sobre todo este episódio e o contexto político que o envolve não mudam significativamente. A condenação de Lula sem provas consistentes assinala um problema político mais profundo que uma questão jurídica.
A prisão de Lula muda o balanço político do PT?
Primeiramente, ainda que fosse juridicamente correta a condenação de Lula, permanece válida a conclusão de que o maior erro do PT foi ter se incorporado ao Estado burguês, aliando-se com seus agentes, dirigindo suas instituições para administrar o capitalismo a serviço dos interesses da classe que domina o país, ainda que para tal precisasse dar um mínimo de respostas a uma base política diferenciada da dos partidos burgueses tradicionais. Esta resposta foi, em parte, a incorporação das lideranças do movimento social e sindical ao aparato de Estado, num processo que ampliou a burocratização destes movimentos, pelo distanciamento da direção em relação às bases (no nível econômico, social e político) e pela redução acentuada da já escassa democracia existente no sindicalismo cutista.
Em parte, a resposta foi, para os alijados dos círculos da militância e do ativismo, os marginalizados e miseráveis, a implementação ampliada de políticas de assistência social recomendadas por organismos internacionais do capital: políticas de gestão da miséria gerada pelo capitalismo, para a manutenção das condições gerais e não para extinção das causas, portanto.
Contudo, apesar das diferenças superficiais na prática política, incorporados ao poder e à ordem vigente, o PT e Lula fizeram suas as práticas desta ordem e deste poder, dentre as quais se inclui a corrupção pela qual Lula foi condenado e o PT desmoralizado. O erro de Lula e do PT foi terem rifado as necessidades da classe trabalhadora em troca de uma aliança com corruptores e corruptos para administrar o capitalismo brasileiro e beneficiarem-se materialmente com isto. Tornaram-se alvo das regras do jogo que aceitaram de livre e espontânea vontade, jogo que vitimou e vitima milhares de brasileiros trabalhadores.
A prisão de Lula foi uma decisão meramente jurídica?
Em segundo lugar – condenado Lula com ou sem provas materiais consistentes -, fica válida a conclusão de que o processo todo da Operação Lava Jato transcende os limites jurídicos e constitui-se em ação política articulada. Motivo pelo qual a discussão do episódio em termos restritamente jurídicos (condenação justa ou não) não é suficiente. E é também por tal motivo que a grande mídia, cumprindo seu papel de veículo ideológico da classe dominante, vem discutindo o episódio exatamente nestes termos restritos. Quando muito, aborda a questão eleitoral, como se fosse esta toda a dimensão política envolvida.
Para sentir o peso deste viés político, mencione-se, por exemplo, que, comparativamente, as provas que pesam contra Aécio e Temer são mais graves, como reconhece até mesmo um estadunidense especialista em questões brasileiras, como Peter Hakim, que não pode ser acusado de tendências esquerdistas. O viés político, a escolha política de condenar, por enquanto, apenas Lula, fica evidente, sendo juridicamente correta ou não, porque este “por enquanto” não é um detalhe menor. O viés político não se limita à condenação, por ora seletiva, como tento apresentar mais adiante. Em política, como no teatro, seja de comédia ou de drama, o tempo é muito importante.
Ainda que não se houvessem cometido todas as violações aos direitos democráticos e à ordem constitucional denunciadas pela Associação Juízes para a Democracia, fica claro o caráter político da atuação do judiciário como ferramenta da classe dominante para solução da atual crise política e econômica a seu favor – no conjunto, e não apenas da Lavajato e de Sérgio Moro, individualmente.
Afinal, a atuação do judiciário nos últimos anos – dentre outros motivos, pelo desgaste que provocou na já degradada imagem política PT – está intimamente ligada ao estabelecimento do governo golpista dirigido por Temer, que vem realizando a toque de caixa duros ataques contra os trabalhadores, com o objetivo de tentar recuperar as taxas de lucro do grande empresariado pela deterioração dos direitos trabalhistas e garantir a remuneração do capital financeiro via Estado com a reforma da previdência. Aécio, por sua vez, foi, até bem pouco, o candidato dos principais meios de comunicação e ideólogos de direita do país, meios que estiveram envolvidos até a medula na unidade de ação com o judiciário e polícia federal em prol do golpe.
Qual a agenda política em que se insere a prisão de Lula?
Agenciar o golpe que colocou Temer no poder, inocentá-lo junto com o candidato favorito da maioria burguesa até o momento para a próxima eleição e condenar Lula são passos articulados de uma mesma jogada política. Trata-se, para a classe dominante, de garantir um governo com força política suficiente para implementar as contrarreformas necessárias ao capital. Disto não restam dúvidas. Depois, podem-se condenar Temer e Aécio. Neste quadro, a condenação de Lula por Moro, tendo sido sem provas, apenas torna o que se disse acima ainda mais evidente. Um argumento a mais em prol da afirmação do caráter politicamente engajado da ação do judiciário na crise política atual. Por isso tem importância relativa a discussão estritamente jurídica do tema.
A questão, portanto, leva-nos a considerar os marcos da decisão de moro e tentar especular sobre algumas intenções e desdobramentos, com todos os riscos incutidos na delicada arte de opinar sobre o presente. Trata-se de formular hipóteses não excludentes sobre a orientação dos passos dados pelo inimigo, para tentar lhe prever os próximos movimentos. Uma ação arriscada, mas necessária, na luta política.
Quais as motivações e os efeitos políticos da condenação de Lula?
O golpe já foi dado e as reformas vêm sendo implementadas, com relativa incapacidade da CUT de dirigir uma oposição que de fato as impeça. Os objetivos da Lava Jato, caso se limitem a garantir as reformas, já foram quase que totalmente atingidos, com Lula até pouco tempo presumido inocente e, por ao menos um ano à frente, ainda em liberdade, com condições de ser eleito em 2018. Por que condená-lo, então? Por que condená-lo, mas não prendê-lo imediatamente? Por que sustentar, por enquanto, a inocência de Aécio e de Temer? Quais os objetivos políticos destes atos?
Primeira hipótese: Lula precisa ser derrotado nas urnas, politicamente
A primeira resposta hipotética se relaciona com a seguinte pergunta: por que Moro, juntamente com uma dura sentença, decidiu liberar Lula de uma prisão preventiva? Sabemos das “convicções” políticas e ideológicas de Moro, a despeito de sua retórica declaração de tristeza ao final da polêmica sentença. Assim, é mais provável que o juiz não tenha agido assim orientado pelo mais justo critério de cumprimento da lei. Não haver decretado a prisão preventiva de Lula pode ter sido parte de um estratagema, sem nada a ver com piedade ou neutralidade jurídica.
Vejamos: caso tivesse sido preso preventivamente a mandado de Moro, além do escândalo maior que isto provocaria, compondo um quadro com tons ainda mais gritantes de viés político – que Moro, a mídia e seus asseclas buscam taticamente evitar -, Lula “perderia” as eleições de 2018. Mas perderia em outro sentido. Não seria derrotado pelo voto do povo – o que, podendo ele concorrer à presidência, provavelmente não aconteceria, por seu peso nas pesquisas que foram feitas recentemente. Assim, a derrota de Lula não seria tão categórica em termos políticos.
Contudo, condenado – palavra que tem enorme peso na consciência popular, que associa o direito à justiça, ingenuamente -, mas não preso, Lula pode concorrer às eleições em 2018. Contudo, com o peso ideológico da condenação – decretado pela justiça criminoso, chefe de quadrilha, líder do maior escândalo de corrupção, etc. -, suas chances de vitória diminuiriam bastante, contanto que a grande mídia continue batendo nesta tecla até o ano que vem, para o povo não esquecer, e que o seu mais forte adversário, Aécio, permaneça em liberdade e inocentado. E alguém tem dúvidas de que os grandes veículos de comunicação farão exatamente isso? Que a campanha do adversário de Lula não terá, hipocritamente, no tema de sua condenação o seu mote principal?
Segunda hipótese: Lula deve necessariamente ser descartado politicamente
Lula, contudo, pode ser preso antes da eleição, se condenado em segunda instância. Esta possibilidade não diminui o teor político da questão, apenas lhe dá um viés diferente, uma espécie de válvula de emergência que pode ser acionada ou não até o dia 15 de agosto de 2018, data final do registro de candidaturas. Imaginemos que, a despeito da condenação e da massiva campanha midiática criminalizando-o, Lula concorra às eleições de 2018 e tenha chances de vencer, frustrando o esquema esboçado por mim na hipótese anterior. Poderia ser acionada, então, a válvula de emergência de sua condenação e prisão em segunda instância.
O julgamento em segunda instância costuma demorar pouco mais de um ano, a contar da entrada do processo. Até lá, contando este tempo, estaremos às vésperas da eleição. Com ou sem provas, Lula poderá ser condenado e preso faltando poucos meses para a eleição. Assim, fica difícil acreditar que tenha sido mero acaso a sua condenação justamente no dia 12 de junho de 2017. E é bem provável que seja exatamente isto que aconteça: ser condenado em segunda instância e, então, preso.
Esta probabilidade advém não menos porque os desembargadores federais João Pedro Gebran, Leandro Paulsen e Victor Laus, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, têm sido mais duros que Moro em sua revisão de penas: “(…) Gebran, Paulsen e Laus reverteram as decisões do juiz federal em apenas 19% das sentenças: cinco réus condenados em primeira instância foram inocentados por falta de provas, e, do contrário, quatro sentenças de Moro que absolveram acusados se tornaram condenações na alçada superior”, afirma-se em matéria de João Pedroso de Campos. Assim, com a condenação por desembargadores menos expostos na mídia, de nomes menos conhecidos da população – e portanto menos vinculados à pecha de politicamente engajados que Moro -, a prisão de Lula pode não ser apenas mais longa, mas politicamente mais perfeita enquanto ação política.
Contudo, as eleições não esgotam a dimensão política da crise em curso. Há duas dimensões correlatas e mais amplas que se articulam neste contexto. E é quando chegamos a estas dimensões que o verdadeiro objetivo estratégico por trás da prisão de Lula pode ser pensado, ainda que como hipótese. A dimensão ideológica, que não é nunca menor quando se trata de política – disputa da consciência das massas acerca dos projetos estratégicos de sociedade -, diz respeito ao recado que é mandado aos trabalhadores e movimentos sociais em específico, e à população em geral.
A dimensão prática e organizativa diz respeito à atual crise de enfraquecimento orgânico dos sindicatos, à ausência de uma alternativa política de peso à esquerda do PT e ao modo como as organizações de esquerda mais tradicionais vem lidando com as formas de organização de luta da classe trabalhadora jovem e precarizada que emergiram. Exemplarmente no Brasil, junho de 2013 ilustra esta emergência.
Terceira hipótese: aprofundar a crise do petismo
As formas de construção de hegemonia burguesa que entram em crise com o aprofundamento da degeneração do PT ao longo de seus mandatos na presidência da República ganhariam, com a derrota de Lula nas urnas em 2018 auxiliada pela ação do judiciário, uma pá a mais de cal. É fato que, depois do golpe, houve um giro da militância petista, que parou de aplaudir o governo federal (já não mais seu) e suas políticas e ensaiou voltar, enferrujada por anos de inação, às ruas. C
ontudo, o fracasso relativo da última tentativa de greve geral do dia 30/6, que entra na conta da Força Sindical e da UGT, poderia ter sido evitado se CUT e seu satélite, a CTB, tivessem agido com vontade política de fato em prol da construção da greve. O próprio Lula evitou convocar a greve geral em suas redes sociais, com “modestas” 2.950.709 curtidas na data de hoje, 13/7/2017. Isto mostra que há limites enormes para a restauração da força da política petista como direção do movimento de massas. Ainda dirigem-no, majoritariamente, e tendem a permanecer assim por um tempo, mas os limites assinalam um teto cada vez mais baixo. Ou seja, uma dinâmica de retrocesso.
O que assinala a restrição cada vez maior aos limites de ação combativa da burocracia sindical petista é justamente o limite cada vez mais estreito do capital em conceder, nos marcos da manutenção do sistema com o qual o PT está comprometido até os ossos, qualquer milímetro em termos de conquistas econômicas aos trabalhadores. Pelo contrário, a necessidade do sistema capitalista na crise é retirar direitos, atacar economicamente a classe trabalhadora, e portanto a CUT e o PT precisam na prática, dado o seu compromisso com o mesmo sistema, ser a favor de tais ataques, discursos à parte. O drama da burocracia sindical petista é todo este: ter de ser programaticamente a favor do capital, mas tentar manter seus privilégios como direção da classe trabalhadora. Para um debate mais aprofundado sobre o tema, ver a fundamental contribuição de Álvaro Bianchi e Ruy Braga em – A financeirização da burocracia sindical.
Quarta hipótese: desmoralizar ideologicamente o socialismo
Desta feita, o recado ideológico que fica dado com a condenação como hipotética preparação da derrota eleitoral de Lula pelo judiciário, nos marcos da crise do petismo, é que a organização política dos trabalhadores fracassou historicamente. Querem assim fazer a população trabalhadora pensar que este “erro”, o de ousar se organizar politicamente, não deve ser repetido, foi condenado pela história. “Está vendo no que deu?” – eis o recado que querem passar, numa espécie de reciclagem semiperiférica e menos radical da propaganda burguesa sobre a vitória do capitalismo e a derrota histórica do socialismo.
Ocorre que o PT que morre, neste recado, não é um partido socialista. Quando muito, um tímido partido reformista. Mas isto, obviamente, a propaganda burguesa não anuncia. Pelo contrário: pintam, num exagero caricato – mas aceito por setores inclusive escolarizados da sociedade -, o funeral histórico do PT que pretendem preparar como o sepultamento do socialismo. Do socialismo!!! Trata-se, portanto, de utilizar a crise do PT como elemento para uma propaganda muito mais estratégica que a derrota de um adversário eleitoral do PSDB à administração do capitalismo brasileiro.
Trata-se de desmoralizar o socialismo, a organização política autônoma dos trabalhadores, os movimentos sindical e social, associando-os ao mesmo tempo ao crime e à derrota política nas urnas, através da figura de seu mais relevante e decadente líder. Esta ofensiva ideológica tem muito espaço e avança a passos largos porque a crise do petismo e os limites cada vez mais estreitos do sindicalismo cutista não foram capitalizados até agora por nenhuma alternativa política à esquerda com força suficiente, nem pelo crescimento em influência de um sindicalismo combativo, alternativo à CUT-CTB.
Quinta hipótese: dificultar reorganização da esquerda
Em que pese o surgimento da Frente Povo Sem Medo (FPSM) através da iniciativa do MTST, o crescimento e a força da CSP-Conlutas e do PSOL no último período, estes são ainda pouco expressivos e têm limitações. A FPSM revela o protagonismo dos movimentos vinculados à luta pelo direito à cidade desde Junho de 2013 e confirma o espaço para a construção de uma alternativa política à esquerda do lulismo. Ao lado das jornadas de luta, a frente organizará nos próximos meses debates com o intuito de formular um programa alternativo para a crise, tendo Guilherme Boulos como articulador central. Entretanto, a atuação de correntes defensoras do projeto Lula 2018 no interior dessa frente coloca uma interrogação sobre a possibilidade de partir daí o chamado a uma alternativa unitária dos movimentos sociais e da esquerda socialista.
Já a CSP-Conlutas ainda tem em sua direção majoritária um setor da esquerda radical que vem aprofundando um giro sectário e ultraesquerdista forte, com elementos gritantes de burocratização. Esta direção pode se constituir num entrave para o crescimento desta central como alternativa sindical. Por sua vez, o PSOL vem crescendo muito eleitoralmente, com desigualdades pelo país, mas não tem conseguido unir sua influência política eleitoral a uma influência política orgânica nos movimentos sociais e sindicatos.
Nas ruas, o PSOL apresenta-se (ou melhor, não se apresenta) como um conjunto de bandeiras de suas correntes internas. É uma alternativa que serve, como partido, às eleições, mas não à organização e à direção do movimento de massas, embora o mesmo não possa ser dito de algumas de suas correntes internas. Contudo, consideradas as correntes internas em sua individualidade, a força política destas organizações é ainda menor que a do PSOL, já por si só pequena para as dimensões do Brasil.
Outra pergunta que alimenta nossa especulação é: “tendo Lula e o PT cumprido o papel de desmobilizar a classe trabalhadora, como pode a condenação de Lula ser favorável à continuidade desta desmobilização?”. Dita de outra forma: “não terá sido um erro que pode gerar uma revolta dirigida pela CUT/PT?”. A resposta a esta questão aponta para qual seria o programa – e portanto o limite – de um levante de indignação contra a prisão de Lula dirigido pela CUT e pelo PT. Igualmente, aponta para o fato de que os levantes mais radicalizados que, pela esquerda, sacudiram o país na última década, não surgiram com nenhuma referência no petismo-lulismo. Ou seja, as dimensões prática e organizativa da política devem ser consideradas, nestas hipóteses.
A dimensão prática da situação política em curso diz respeito ao terreno organizativo especificamente em relação aos movimentos de massa. As jornadas de junho de 2013 evidenciam um ponto de inflexão ao qual a esquerda socialista ainda não conseguiu dar uma resposta à altura em termos estratégicos e, muitas vezes, nem mesmo táticos. Responder adequadamente aos desafios colocados pelo contexto que gerou junho de 2013 no Brasil é um dos elementos centrais na disputa dos rumos deste contexto político.
E a resposta dada pela direita, em seu recado ideológico condenatório da organização política autônoma dos trabalhadores, pode ganhar ainda mais peso caso a esquerda socialista demore a encontrar uma posição coerente e condizente aos fatos nesta questão. A ofensiva ideológica anti-organizativa se apoia nos elementos mais retrógrados do processo – em geral positivo – das jornadas de junho. A condenação de Lula e sua derrota eleitoral visam fortalecer este elemento, preventivamente, caso as políticas pró-capital na crise econômica, bem como as consequências diretas desta mesma crise, venham a ser o estopim de novos levantes, mas não de revoltas contra a prisão de Lula – que, se vierem, virão dirigidas pela burocracia organizada e não pela massa trabalhadora que protagonizou junho com seu pensamento refratário à organizações políticas. Este elemento anti-organizativo foi uma das chaves da derrota de junho e precisa, para a classe dominante, portanto, ser fortalecido.
Sexta hipótese: dificultar a síntese entre junho de 2013 e o 28 de maio de 2017
A fraqueza de junho, em si, não foi programática, melhor dizendo, não foi a sua pauta. A carência de um programa estratégico não pode ser cobrada a um movimento que se fortalece com grande dose de espontaneidade (embora não tenha surgido tão espontaneamente assim) e ausência de organicidade. O programa estratégico só é adotado por um movimento de massas que tenha uma direção política organizada. A afirmação de que junho foi derrotado por não ter um programa, feita por quem o poderia munir de um, mas não esteve à altura de disputar sua direção, é uma forma de os agentes que o afirmam fugirem da autocrítica necessária e, mais ainda, de uma reconfiguração profunda acerca de sua concepção do mundo em que vivemos, o mundo real, que gerou junho.
A pauta de junho, ao contrário, foi o seu elemento mais progressivo, juntamente com o sujeito social que o protagonizou. Aliás, a disputa atual em torno da pauta política já se verificava em junho, mas com desfecho momentâneo diferente do presente.
Como defende Ruy Braga, “Apesar de toda a heterogeneidade de seus manifestantes e pautas, assim como dos momentos em que um viés reacionário foi sensível nas mobilizações, as “jornadas de junho” de 2013 possuíram um sentido de classe, em seu eixo central e nos seus desdobramentos. E esse sentido materializou-se em um reforço a pautas e em um chamado à mobilização da classe trabalhadora. Afinal, depois de toda a pressão midiática para introduzir o mote do combate à corrupção e projetos de emenda constitucional nada progressistas, a pauta que ficou de junho foi basicamente composta por: transporte público barato e digno; verbas para saúde e educação; repúdio à violência policial (contra as manifestações, mas também contra os moradores de favelas e periferias, negros e jovens em particular), além de uma salutar desconfiança em relação à produção de informação pelos meios empresarias de comunicação. Uma pauta da classe trabalhadora, que diante dos serviços mercantilizados e ofertados de forma profundamente desigual, defendeu nas ruas, ainda que sem maior organicidade, uma concepção de direitos sociais”.
Em junho, portanto, venceu a pauta da classe trabalhadora. Já não é a situação política que temos agora. Desde 2015, vem tendo primazia a pauta anticorrupção, que em sentido estendido, pela direita, significa uma pauta anti-esquerda. A greve geral do dia 28/5 foi um indício de que a situação poderia mudar, mas o movimento não teve continuidade, como fica claro no dia 30/6. Isto não significa que não haja lutas, e muitas, e que não venham a ser mais fortes. Significa apenas que, na disputa da consciência – ou seja, na luta política -, o terreno da construção de uma alternativa organizativa política e sindical é uma tarefa prioritária.
Não concluída, quaisquer levante de massas – organizado como no dia 28/5 ou não, como em junho 2013, mas por motivos diferentes – não conseguirá se contrapor de forma duradoura à ofensiva ideológica burguesa, que é parte da ofensiva social e econômica necessária à manutenção do capitalismo numa grande crise global. Permanecerão como levantes: não se converterão em movimentos de construção de alternativas políticas, digamos assim.
Junho foi derrotado por sua fraqueza organizativa, seu parcial repúdio às formas de organização que otimizam a força política da classe que não tem mídia, nem exército, nem judiciário ao seu favor. Formas, portanto, necessárias, ainda que devam ser flexíveis, isto é, adequadas à realidade, mantendo o que é essencial aos seus objetivos estratégicos. Já o arco que vai do dia 28/5 ao dia 30/6, que surge e se desdobra como movimento altamente organizado, foi derrotado justamente porque as organizações comprometidas com sua continuidade e fortalecimento, com o seu programa, em suma, não têm influência política suficiente para dirigir um movimento organizado sem uma unidade de ação com as organizações majoritárias, que por sua vez têm uma relação débil – oportunista e não programática – com o levante.
Querem apenas desgastar Temer para eleger Lula em 2018. A questão organizativa, por vieses diferentes, unifica as duas derrotas. No primeiro caso, junho, por ausência e repúdio relativo. No segundo, porque a organização que existe e tem condições de dirigir está comprometida com a ordem vigente e as pequenas não conseguem achar, ainda, um caminho para se construir. Um dos motivos é que este caminho é político, de disputa da consciência acerca do projeto de sociedade que queremos, disputa estratégica que as organizações à esquerda do lulismo, por diversos motivos, vêm tendo dificuldade de fazer.
Sétima hipótese: a classe dominante ainda vê utilidade no PT
Coloca-se, então, mais uma pergunta: por que seria necessário à classe dominante garantir que Lula, não seja eleito em 2018 se Lula afirmou que, se eleito, não desfaria as reformas de Temer, reformas contra as quais seus correligionários da CUT não se enfrentam radicalmente? Veja-se bem: lutam contra Temer, não contra o programa de seu governo. Teria sido esta declaração de Lula, feita poucos dias antes de sua condenação, uma última cartada na tentativa de convencer as classes dominantes a deixá-lo disputar as eleições de 2018 sem se preocuparem, pois as contrarreformas estariam garantidas? Se foi ou não, pouco importa.
Justamente porque o PT, em junho de 2013, demonstrou não servir mais para a função tática para a qual foi levado, pela aliança com as classes dominantes e seus partidos, ao poder. Não conseguiria conter os movimentos sociais que surgiriam por fora de sua influência, já muito fortes. Junho, realmente, parou o país, por vários dias, e colocou em cheque a estabilidade da ordem, coisa que nem mesmo a greve geral do dia 28/5 chegou perto de fazer.
O PT não conseguiu conter junho não por incompetência administrativa, mas por já não ser politicamente capaz de o fazer. Afinal, as tensões sociais que explodiram em 17 de junho foram acumuladas a partir das contradições do modelo de acumulação administrado à época pelo governo Dilma, que nos calor das manifestações aderiu ao discurso da mídia corporativa afirmando um embate entre manifestantes “vândalos anti-copa” e “verde-amarelos pró-nação”.
Posteriormente, Dilma ampliou o arsenal repressivo do Estado através de legislações como a Lei Antiterrorismo e Garantia da Lei e da Ordem, recentemente utilizada por Temer contra a Marcha à Brasília. Também, pelo mesmo motivo – o compromisso com a ordem de dominação do capital – o PT já não é capaz de levar a cabo, quando fora do governo, uma luta radical que possa atrapalhar os planos que propiciam os interesses do capital no país. Por isso pode ser retirado do governo sem problemas pela classe dominante.
Esgotada a utilidade do PT para a burguesia como ferramenta de contenção dos movimentos sociais, este partido tende a subsistir como uma legenda eleitoral numa bipolarização política de coalizão. Ao mesmo tempo, a classe trabalhadora começa a se levantar, quando com força e radicalidade, por fora da direção petista, sem que as organizações minoritárias de esquerda consigam ocupar o lugar de direção. O risco de que venham a conseguir precisa ser mitigado pela classe dominante.
Assim, o PT, que serviu a esta classe para conter o movimento de massas, inútil agora para esta tarefa, pode ser utilizado, através da condenação de seu maior líder, para fortalecer os obstáculos que impedem a classe trabalhadora de se organizar politicamente de forma renovada. A prisão de Lula é uma última utilidade que a burguesia dá ao Partido dos Trabalhadores. A classe dominante brasileira – historicamente brutal – não vê problemas em trair os seus aliados, enforcando-os exemplarmente em praça pública como na Idade Média, quando o que está em jogo é a manutenção de seu poder.
Considerando tudo isto, a condenação de Lula por Moro é uma sentença que declara não um rompimento de contrato entre Lula e a maioria da classe dominante. Isto o impeachment já fez. A sentença contra o maior líder operário da história do país, possivelmente preparando sua derrota eleitoral, representa um avanço, no terreno ideológico, de uma violenta ofensiva burguesa contra a organização política classe trabalhadora. Garantida somente pela mistificação da propaganda burguesa, que usa o petismo como guarda-chuva para a esquerda.
Esta ofensiva ideológica é análoga, em sua dimensão, gravidade e duração, possivelmente, à ofensiva econômica e social que vem sendo levada a cabo de forma concomitante. A aprovação da reforma trabalhista e a condenação de Lula não são parte da mesma semana, apenas. São passos dados, necessariamente, em conjunto, articuladamente, rumo a um mesmo objetivo. Agrava-se, assim, ao mesmo tempo, vitoriosos estes passos, a situação econômica da classe trabalhadora, a degradação social dos mais fragilizados e a crise organizativa da esquerda que pretende disputar a consciência desta classe para que lute em sentido contrário.
1 Com contribuição de Matheus Gomes.
Foto Paulo Pinto/AGPT
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