Por: Victor Wolfgang Kegel Amal, de Florianópolis, SC
Nos dias 7 e 8 de julho, na cidade de Hamburgo, Alemanha, ocorreu a reunião do G20 de 2017. O grupo é constituído pelas maiores potencias econômicas do mundo: Austrália, África do Sul, Argentina, Alemanha, Brasil, China, Canadá, Coréia do Sul, Estados Unidos, Inglaterra, Índia, Indonésia, Itália Turquia e União Europeia. Juntos, representam 85% do Produto Interno Bruto (PIB) global.
O G20 foi criado em 1999, após as sucessivas crises financeiras da década de 1990. Inicialmente ele era constituído pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais dos países. Entretanto, a partir da reunião de 14-15 de novembro de 2008, depois da crise de 2007-2008, passou a ser formado pelos chefes de Estado ou de governo. Isso representou uma mudança significativa no papel do G-20, que passou a assumir a centralidade como fórum de discussão sobre governança internacional antes ocupada pelo G7.
As tensões que cercaram o fórum de Hamburgo
Muitas expectativas e incertezas sobre a condução da ordem mundial foram geradas em relação ao encontro deste ano, principalmente devido ao turbulento contexto atual: interferência russa nas eleições norte-americanas, o Brexit e a divisão intra-europeia, o aumento do conflito na península da Coréia, a retirada dos EUA do Acordo de Paris, a crise entre Arábia Saudita e Catar. Os dias que antecederam a reunião já expressavam essas novas tensões da situação mundial.
No dia 4, a Coreia do Norte dobrou a aposta e realizou com sucesso o primeiro teste com um míssil balístico intercontinental. Com alcance de 5.550 km, esse ICBM pode alcançar o Alasca. Em resposta à provocação de Pyongyang, EUA e Coréia do Sul realizaram múltiplos lançamentos de mísseis no Mar do Japão, entre eles o modelo balístico sulcoreano Hyunmoo-21 e o tático estadounidense ATACMS. O secretário de estado dos EUA, Rex Tyllerson, alertou para o aumento da escalada armamentista norte-coreana e voltou a pressionar a China para atuar de forma mais contundente na busca de uma saída negociada para o desarmamento nuclear do país.
Já no dia 6 ocorreu a visita de Trump à Polônia, governada desde 2015 por um dos maiores representantes da extrema direita no país, Andrzej Duda, ex-membro do Partido Lei e Justiça e agora independente. Durante sua passagem, Trump discursou na Praça de Varsóvia, símbolo da resistência aos nazis, onde exaltou as medidas restritivas à entrada de imigrantes na Polônia e afirmou também estar trabalhando para “proteger as fronteiras” dos EUA. Além disso, elogiou o fato do país cumprir com sua contribuição de 2% do PIB para o fundo da OTAN, um recado às principais potências europeias, em especial a Alemanha, às quais Trump critica a baixa participação nos gastos da Aliança.
A visita de Trump à Polônia não foi casual. Esse país tem o interesse de converter-se num centro logístico de gás liquefeito exportado dos EUA a partir de investimentos norte-americanos, como é o caso da construção de um porto na sua costa setentrional. Isso conflita com o projeto de construção do gasoduto Nord Stream 2 que abasteceria a Europa com gás vindo da Rússia para a Alemanha, cruzando o Mar Báltico. Esse projeto permite desviar o gás siberiano dos gasodutos terrestres o que prejudicaria os interesses econômicos da Europa Oriental e Central. A Ucrânia ficaria mais suscetível às chantagens da Rússia. Por outro lado, os principais países europeus viram com preocupação o fato de o Congresso norte-americano ter decidido ampliar as sanções à Rússia, particularmente porque ele prevê uma cláusula que pode ser utilizada contra as empresas que participam do consórcio do gasoduto: além da Gazpron russa, a francesa Engie, a anglo-holandesa Shell, OMV de Austria e as alemãs Uniper y Wintershall (BASF).
No mesmo dia 6, foi realizado um “acordo de princípio” para a criação de uma área de livre-comércio entre a União Europeia e o Japão, a segunda maior economia da Ásia. A assinatura definitiva do Jefta, como é chamado o Japan-EU Free-Trade Agreement, está prevista ainda para este verão. Para entrar em vigor, o tratado precisa ser confirmado pelos Parlamentos nacionais da UE. O novo acordo, sem dúvida, é uma resposta às iniciativas bilaterais e protecionistas de Trump, especialmente a retirada dos EUA do Tratado de Livre-Comércio Transpacífico (TPP). “É extremamente importante que Japão e União Europeia defendam o livre-comércio em um momento no qual o mundo enfrenta tendências protecionistas”, afirmou Abe. Da parte de Bruxelas, a ideia foi transmitir a imagem de líder mundial do livre-comércio. “Enviamos juntos um sinal forte ao mundo em favor do comércio aberto e equilibrado. Não há proteção no protecionismo”, disse o presidente da Comissão Européia, Jean-Claude Juncker.
A retomada das mobilizações anti-globalização
Outro episódio simbólico não se relaciona aos conflitos entre as potencias imperialistas, mas entre estas e os movimentos sociais, uma luta entre os “de cima” e os “de baixo”. No mesmo dia 6, Hamburgo foi palco de grandes protestos contra o G20-17. Manifestações anti-capitalistas em encontros internacionais já possuem bastante tradição, como os 200 mil contra o G8 na Itália, em 2001, e os atos radicalizados no G20 de Toronto, em 2010, que levaram a prisão em massa de 1.100 pessoas. Desta vez, na segunda maior cidade da Alemanha, as maiores manifestações anticapitalistas das últimas décadas iniciaram na quinta-feira e se estenderam até o fim do encontro, no sábado.
Os principais motes das manifestações foram a abertura de fronteiras aos refugiados e contra o aquecimento global. Marcadas por forte repressão, desde seu primeiro dia, em torno de 150 pessoas foram presas durante as manifestações e 120, preventivamente. Um novo contingente de 20 mil policiais foi enviado depois da queima de viaturas na quinta-feira. Sábado, o ato em Hamburgo contava com mais de 50 mil e protestos se espalharam por outras cidades do país.
As pautas do G20
Como não podia deixar de ser, o G20-2017 demonstrou as fissuras existentes na ordem capitalista atual. Quatro foram os principais pontos de tensão entre as potências: crise climática, comércio internacional, migrações e terrorismo. Apesar de muitos líderes terem afirmado que a produção de um comunicado final unânime foi uma vitória, as divisões internas ao grupo estavam mais uma vez bastante explícitas, embora por momentos tentou-se dissimulá-las.
Em relação ao Acordo de Paris, os 19 membros estiveram unidos contra a posição dos Estados Unidos de anular o acordo. Apesar da China e a Índia- hoje os maiores poluidores do planeta – terem manifestado firmemente a favor da aplicação das metas estabelecidas em Paris, o presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan afirmou que não tem intenção de ratificar o acordo no congresso de seu país. Não está claro se isso de fato irá ocorrer, mas o fato indica que o discurso anti-meio ambiente de Donald Trump poderá ressoar em outros países.
Já no tema relativo ao comércio internacional, as posições estavam muito mais fragmentadas. Esta pauta sofreu bastante influência dos interesses norte-americanos, principalmente sobre dois pontos: combustíveis fósseis e aço. Em relação ao primeiro, os EUA conseguiram tirar do comunicado final uma parte relativa à redução na produção de combustíveis que se chocava com sua intenção de se retirar do Acordo de Paris. Quanto ao aço, Trump vem afirmando que a indústria norte-americana está sendo marginalizada pela produção estrangeira e, provavelmente, deverá impor um aumento de tarifas para importação do produto no país. No comunicado final, ficou acordado o objetivo de redução na produção de aço como forma de reduzir seu preço internacional, postergando assim uma provável guerra comercial em alguns meses, quando aprovado o aumento tarifário.
Em relação às migrações, mais uma vez os olhares estavam direcionados aos Estados Unidos. Desde as eleições de 2016, Trump vem prometendo aumentar o número de deportações de imigrantes sem documentos, reduzir a entrada de refugiados e construir um muro na fronteira com o México. Isso ocorre em meio à maior crise de refugiados da história desde a Segunda Guerra Mundial. Uma das principais iniciativas dos grupos pró-direitos humanos no encontro foi endurecer o combate aos chamados “traficantes de refugiados”, que construíram um negócio bilionário no norte da África e já chegaram a controlar partes do território líbio. Contudo, tanto esta iniciativa quanto outras não tiveram absolutamente nenhum progresso.
Por último, o tema do terrorismo também teve grande centralidade devido aos recentes ataques ocorridos na Europa, principalmente Ingalterra. Logo no primeiro dia foi escrita uma declaração conjunta sobre o combate ao terror com ênfase na prevenção, principalmente no que concerne à troca de informações de inteligência e fiscalização da internet e redes sociais. O presidente da Índia aproveitou para ressaltar a presença de grupos terroristas em conluio com o Exército Islâmico e Al-Qaeda que atuam em seu vizinho, Paquistão, e reivindicou esforço internacional para combatê-los.
União Europeia e os EUA
Angela Merkel e Emmanuel Macron, da Alemanha e França, foram os principais opositores de Trump no encontro. Ressaltaram o caminho de isolamento que os EUA estavam trilhando ao anunciarem a não permanência no Acordo de Paris sobre o clima, e que qualquer posição contrária ao multilateralismo não iria contar com a participação de ambos.
Apesar de Macron ter dito que acreditava que os EUA poderiam voltar atrás em relação ao acordo climático, Merkel afirmou não compartilhar do mesmo otimismo do francês e outros líderes do G20, demonstrando ainda mais vigor na oposição à Trump. A recente declaração do ministro das relações exteriores da Alemanha, Sigmar Gabriel, contra o boicote do Conselho de Cooperação do Golfo ao Catar (apoiado pelos EUA) indica a ampliação das diferenças.
Na verdade, desde o último G7, em maio, a chanceler alemã vem tentando se estabelecer como porta-voz da oposição ao presidente norte-americano. Trump apoia abertamente o Brexit, e manifestou um apoio velado à candidata xenofóbica e anti-União Europeia Marine Le Pen nas eleições francesas deste ano. Como o poder da Alemanha no continente depende da unidade da União Europeia, qualquer ameaça a essa instituição vai na contramão de seus interesses geopolíticos vitais. Por ser anfitriã, Merkel coordenou a pauta do encontro e propositalmente colocou como eixo os temas do aquecimento global, comércio internacional e migrações para constranger Trump politicamente.
A vitória de Macron contra Le Pen e a recuperação de Merkel nas eleições municipais passadas permitiram a retomada da afirmação do eixo franco-alemão na UE, deixando de lado, por ora, as alternativas tanto à direita quanto à esquerda. Num certo sentido o próprio debilitamento de Teresa May nas eleições britânicas enfraquece o Brexit e fortalece a União Europeia.
O distanciamento entre Trump e Merkel, mais que um conflito entre ambos, revela um distanciamento entre a Europa e os EUA. Logo depois do G7, Merkel afirmou que havia acabado o tempo em que a Europa podia depender de nações estrangeiras para garantir sua segurança, reavivando rumores sobre possíveis iniciativas de militarização do bloco europeu, tal qual a Política Europeia de Defesa e Segurança de 1999, boicotada na ocasião pelos EUA.
Estados Unidos e Rússia
Um dos momentos mais esperados do G20-2017 foi o primeiro encontro de Donald Trump desde que assumiu a presidência com Vladimir Putin. As relações entre Estados Unidos e Rússia haviam chegado ao seu patamar mais baixo desde o fim da Guerra Fria durante o segundo governo Obama, principalmente em função das guerras na Síria e Ucrânia. Durante a campanha de 2016, Trump propôs modificar essa relação defendendo como um dos eixos de sua política externa uma aproximação entre Washington e Moscou.
Entretanto, desde que foi eleito, Trump vem sofrendo fortes ataques contra essa orientação. Isso já lhe custou sérios reveses. Neste momento ele está sendo investigado pelo FBI por uma suposta participação de seu comitê de campanha na interferência da Rússia nas eleições norte-americanas de 2016, fato que pode lhe custar o impeachment de acordo com alguns democratas. Frente a essas pressões, e como forma de amenizar as investigações, nos últimos 6 meses o presidente norte-americano vem aplicando uma política dura em relação à Rússia, contrariando seu discurso de campanha. Ele tem se alinhado ao Grand Old Party (GOP) republicano e se afastado do seu estrategista-chefe da Casa Branca, Steve Bannon, defensor de uma aproximação com a Rússia. Na Polônia, Trump chegou a exigir que os russos parassem de desestabilizar a Ucrânia, bem como se aliar a regimes ditatoriais como Síria e Irã.
Entretanto, o diálogo entre Putin e Trump no G20 não foi conflituoso como era de se esperar. Putin afirmou que o presidente norte-americano aceitou sua versão de que os russos não interferiram nas eleições de 2016, ainda que que o secretário de estado, Rex Tylerson, tenha admitido o contrário em entrevista coletiva de imprensa. A própria embaixadora dos EUA na ONU, Nikky Hailey, confirmou que a Rússia interveio nas eleições e que Putin estava negando apenas para encobrir sua culpa. Mesmo assim, a tônica da conversa entre ambos presidentes foi de que os problemas passados deveriam ser esquecidos.
O conflito Sírio
O principal tópico discutido entre Trump e Putin acabou sendo a questão Síria. Na ocasião, anunciou-se um acordo de cessar fogo na região sudoeste do país, próxima à Jordânia, cujo representante nas negociações declarou ter sido um acordo tripartite entre EUA-Rússia-Jordânia, apesar de ter também contado com a participação de Israel.
Tyllerson aproveitou o momento para retomar a ideia sobre as possibilidades reais de cooperação entre EUA e Rússia no cenário internacional. Suas diferenças, segundo ele, é que os Estados Unidos, ao contrário dos russos, não enxergam possibilidade de manutenção do regime de Assad a longo prazo. Alertou que as outras zonas de conflito na Síria não têm condições para um cessar fogo o que implicaria numa continuidade de um conflito que já dura 6 anos.
Apesar das partes terem procurado dar um ar amistoso à conversa, é difícil crer que as relações entre EUA e Rússia irão de fato melhorar. A realidade é que as contradições são muitas: a situação na Síria está longe de ser resolvida; não existe nenhum acordo entre ambos em relação à situação na Ucrânia, onde se ampliam as sanções econômicas contra os russos; em relação à Coréia do Norte, a Rússia está alinhada à política da China na busca de uma solução pacífica; etc.
Algumas conclusões
A tentativa de Trump de colocar os interesses da América em primeiro lugar (“America Comes First”) está levando ao afastamento dos EUA da Europa e ameaça descontruir a aliança transatlântica, peça chave na sustentação da ordem mundial do pós-guerra. Como alternativa, Merkel se vê forçada a se mover no sentido de uma Alemanha e União Europeia mais independente. Os acordos como a Ceta (UE-Canadá) e o Jefta (UE-Japão), além de suas recentes reuniões com o presidente da China, e o primeiro-ministro da Índia, e mesmo sua viagem à Argentina e ao México, indicam isso.
Por outro lado, sob influência do establishment republicano, Trump não consegue se reaproximar da Rússia. Pelo contrário, apesar das relações aparentemente cordiais no G20-17, os fatos indicam um aumento dos conflitos entre os dois países. Ao mesmo tempo, os EUA seguem com dificuldades para estabilizar as relações com a China na perspectiva da estratégia de defender seus interesses em primeiro lugar. Entretanto, segue perseguindo seu objetivo de fortalecer suas relações bilaterais como é o caso do acordo da venda de armas para a Arábia Saudita e do gás para a Polônia.
Esses fatos expressam o aumento dos conflitos entre as frações da burguesia imperialista em cada país, bem como entre as próprias potencias imperialistas. O pano de fundo deste conflito crescente de interesses deve-se ao fato de que, passada quase uma década, a economia mundial ainda não conseguiu entrar em um novo ciclo de crescimento superando definitivamente a crise econômica de 2007-2008. A incapacidade para reverter esse quadro indica um esgotamento do projeto da globalização neoliberal e leva a um questionamento da atual ordem mundial, alimentando saídas cada vez mais protecionistas e mesmo autárquicas.
Esse quadro marca um novo momento na situação mundial, dando um novo caráter aos atuais conflitos, o que os tornam cada vez mais intensos. Ao mesmo tempo, as grandes e radicalizadas manifestações ocorridas durante o G20 de Hamburgo expressam uma maior polarização da luta entre as classes dominantes e os movimentos sociais. Em vários países e regiões, a exemplo da América Latina, a classe trabalhadora entra cada vez mais em cena.
Em 2018, o G20 irá acontecer na Argentina. É tarefa de todas as lutadoras e lutadores da América do Sul se engajarem em uma resposta ainda maior que a dada em Hamburgo e avançar na luta anti-capitalista em nosso continente.
Foto: FT
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