Por: André Freire, colunista do Esquerda Online
Em dezembro de 1987, foi realizado o V Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT). Este fórum guarda uma importância histórica e até hoje é objeto de uma intensa discussão, não só entre historiadores marxistas. Suas principais resoluções são alvo de polêmicas entre as organizações da esquerda socialista brasileira até hoje.
Há uma explicação principal para toda essa relevância: foi nesse fórum que o PT definiu pela primeira vez a proposta de construção de um Programa Democrático Popular (PDP), que foi a base política principal para a campanha Lula Presidente, de 1989.
Para muitos, este encontro produziu as resoluções mais à esquerda da história petista. Para outros (as), em que me incluo, a adoção do PDP foi o início do processo de adaptação do PT ao Estado e ao Regime político brasileiro. Processo este que ganhou um salto qualitativo na década de 1990 e, especialmente, com a chegada de Lula à Presidência da República, em 2002.
Mas, de qualquer forma, esta discussão ainda hoje tem importância. Entre outros motivos, porque na esquerda socialista ainda existem aqueles e aquelas que apresentam a proposta de resgaste do PDP como horizonte estratégico para discussão programática atual. Portanto, vamos a ela.
A adaptação do PT ao Estado e ao Regime
Os defensores atuais do PDP advogam a ideia de que a adaptação do PT à institucionalidade burguesa não tem nada a ver com as resoluções programáticas de 1987. Esse processo teria sido fruto da ampliação das alianças políticas eleitorais para setores da burguesia e do rebaixamento programático quando se aproximavam da chega à Presidência da República.
Afirmam que as propostas contidas no PDP de 1987 são muito progressivas. Tais como, por exemplo, a auditoria e suspensão do pagamento da dívida externa, o fim das privatizações, o controle cambial, entre outras medidas que eram parte das bandeiras tradicionais dos movimentos sindicais e políticos da classe trabalhadora na década de 80 do século passado.
Porém, um programa de uma organização política é muito mais do que as bandeiras e as palavras de ordem que são apresentadas nele. Ele é, antes de tudo, uma visão de mundo e de país e, principalmente, a estratégia política com que este partido vai atuar na sociedade e na luta de classes.
Portanto, a grande novidade do programa votado em 1987 não é exatamente as medidas concretas que ele propõe, muitas delas realmente bastante progressivas, especialmente com o olhar atual. Mas, sim, a grande novidade foi a aparição do conceito da necessidade do acúmulo de forças, com grande centralidade no argumento político apresentado nas resoluções do PT de 1987.
A incorporação desta ideia, necessidade de um acúmulo de forças anterior, fez com que o PT abandonasse as proposta de um programa anticapitalista e a defesa política de um governo dos trabalhadores, que apareciam nos documentos petistas antes de 1987, mesmo que de forma genérica.
É evidente que a correlação de forças concreta entre as classes sociais existente no país irá, em muitos sentidos, determinar a adoção de propostas mais ou menos avançadas, o problema realmente não está aí. Mas, sim, reside no abandono de uma estratégia classista e anticapitalista, justificada pelo argumento de que não existiam condições objetivas de defendê-las.
A defesa de um programa anticapitalista e do governo dos trabalhadores é substituída, então, no discurso do PT, a partir de 1987, pela defesa do programa e de um governo democrático popular. Para a direção do PT, na época, não havia correlação de forças que possibilitasse a defesa destas propostas no programa.
È justo dizer que essa transformação no programa do PT não se sentiu de forma tão nítida na campanha Lula Presidente de 1989, e sim em um processo contínuo, que se acelerou mais durante a década de 90 do século passado, após a derrota eleitoral na primeira eleição presidencial após a queda da ditadura.
Agora, se revela, até hoje, um equívoco importante não entender que a ampliação das alianças político eleitorais e os sucessivos rebaixamentos programáticos não são as causas principais da adaptação do PT ao Estado e ao Regime. Na verdade, esses aspectos fundamentais são os efeitos mais sentidos de uma mudança de estratégia política, que o PT realizou já no V Encontro Nacional, especialmente com a adoção do PDP e incorporação da justificativa da necessidade do acúmulo de forças para limitar a sua estratégia política de poder.
Essa conclusão não é só importante para entender o passado, mas ela é fundamental para não repetir os mesmo erros no presente e no futuro. Principalmente, agora, quando estamos empenhados na construção de uma nova alternativa política anticapitalista e socialista ao fracasso da política de conciliação de classes da direção petista.
O balanço dos governos de conciliação de classes do PT
O programa concreto, aplicado pelo PT nos 13 anos que esteve à frente do Palácio do Planalto, foi de fato qualitativamente distinto das resoluções de seu V Encontro. As medidas progressivas, que apareciam nas resoluções de 1987, sequer chegaram a ser cogitadas pelas administrações petistas.
No governo, vimos toda a influência do processo de adaptação do PT ao Regime e ao Estado vivida durante a década de 90. Na verdade, os governos petistas foram influenciados, muito mais, pela chamada “Carta ao Povo Brasileiro”, documento firmado por Lula em 2002 para estabelecer um compromisso com o “mercado”, se comprometendo em respeitar os contratos, que garantiam todos os interesses nocivos das grandes empresas e bancos.
Os governos do PT não representaram ruptura com o verdadeiro pacto com as elites brasileiras. Nem uma medida, mínima que fosse, foi tomada pelas administrações petistas para diminuir os lucros exorbitantes das grandes empresas e bancos.
Sob o lema de governar para todos, na verdade vimos a preservação no essencial da política econômica aplicada pelos tucanos durante a chamada era FHC, acrescida no máximo de uma ampliação da aplicação dos programas sociais, facilitados por um momento de crescimento econômico conjuntural em nossa economia.
Diante do agravamento da crise econômica, quando o PT deixou de ser útil para manter a estabilidade e a aplicação das reformas constitucionais que retiram direitos da maioria do povo, as mesmas grandes empresas e bancos que apoiam os anos do PT no governo não tiveram dúvida, e passaram de “malas e bagagens” para a defesa do golpe parlamentar do Impeachment, e para o apoio ao governo ilegítimo de Temer.
PDP X Programa anticapitalista, de transição ao socialismo
O fracasso dos governos de conciliação de classes do PT, marcados principalmente pelas alianças políticas com a velha direita e pela aplicação de um programa no máximo social liberal, sem nenhuma ruptura com os interesses das grandes empresas e bancos, abrem uma discussão importante na esquerda socialista:
Como os governos do PT sequer se propuseram a aplicar as medidas mínimas do programa democrático popular, não seria necessário, então, num primeiro momento, resgatar este programa como horizonte estratégico para a atualização programática da esquerda socialista brasileira?
Importantes organizações, como a Consulta Popular e o Levante Popular da Juventude buscaram resgatar o PDP e apresentam uma espécie de versão atualizada dele, com o seu Programa Popular para o Brasil (PPB).
Chegam a afirmar que o atual PPB se baseia no Programa Democrático Popular (PDP), mas sem a política de conciliação de classes da direção petista. Mas, na verdade, tanto o PDP, como o atual PPB mantêm a mesma essência da argumentação. Ou seja, não existe correlação de forças para se defender diretamente um programa anticapitalista, de transição ao socialismo, na atual etapa da luta de classes.
Também no interior do PSOL existem setores e correntes políticas que ainda se baseiam no PDP para discutir uma necessária atualização programática da esquerda socialista, diante da situação aberta pelo fracasso dos governos de conciliação de classes do PT.
Esta discussão também estará presente nos debates programáticos que a Frente Povo sem Medo vai convocar nos meses de agosto e setembro deste ano em várias cidades brasileiras, para discutir uma alternativa de esquerda para o país.
Portanto, queremos ser parte ativa deste importante e decisivo debate programático que vai marcar a esquerda socialista no próximo período.
Nele, queremos defender um programa e uma estratégia anticapitalista, de transição para o socialismo. Evidentemente, com as devidas atualizações necessárias, impostas pelas mudanças na realidade brasileira e mundial nas últimas décadas.
Sem adotar uma postura dogmática, nossa proposta deve partir da defesa da metodologia proposta pelo Programa de Transição, de Leon Trotsky. Não a exata adoção de suas bandeiras, afinal é um texto escrito na década de 30 do século passado. Mas, o desafio, em nossa opinião, é aplicar na realidade brasileira atual o seu método de elaboração.
Na atualização programática que a esquerda socialista deve realizar para responder a realidade brasileira atual, devemos fazer a “ponte” da defesa das reivindicações mais sentidas pela classe trabalhadora, a juventude e a maioria do povo, portanto levando em consideração o seu nível de consciência, mas sempre apresentando nossas bandeiras de transição, anticapitalistas e socialistas.
As crises econômica, política e social atuais, tanto no Brasil, como no mundo exigem uma saída anticapitalista. Não podemos repetir o grave erro do novo governo grego, de Alex Tsiparas do Syriza, que se elegeu propondo uma ruptura com os planos de austeridade da Troika e se transformou em um representante direto da aplicação dessas medidas.
A esquerda socialista deve propor levar os trabalhadores e o povo ao poder, mas para realizar de fato uma ruptura com o sistema capitalista. Para isso, será necessário ter a coragem de garantir a aplicação de medidas de transição, que façam os ricos e poderosos perderem, para que o conjunto dos explorados e oprimidos comece a ganhar. Mãos à obra.
Foto: Encontro Nacional do PT, 5º (Brasília-DF, 4-6 dez. 1987) [Senado Federal] – 5º ENPT. / Crédito: Inez Guerreiro.
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