Por: Jorge Luiz Souto Maior, colunista do Esquerda Online
De forma bastante resumida, reproduzindo passagem de Álvaro Bianchi, pode-se dizer que, segundo Antonio Gramsci, “enquanto a grande política assume como horizonte ‘a fundação de um novo Estado’ e a ‘luta pela defesa e conservação de uma determinada estrutura social e política’, expressando ao nível da política uma nova visão de mundo, a pequena política reduz os conflitos às escaramuças parlamentares e às lutas pelo predomínio ‘no interior de uma estrutura já estabelecida’ ”i.
No texto em questão, publicado em agosto de 2015, Bianchi reforçava a visão de Carlos Nelson Coutinho, expressa em 2010ii, no sentido de que o governo petista não tinha um projeto de transformação social e que teria acatado “as regras do jogo e com isso reconheceu a pequena política como seu terreno de ação”iii.
O mais curioso é que se os governos petistas podiam ser acusados de não possuírem um projeto de reorganização social, que superasse a hegemonia do grande capital – e, de fato, não possuíam –, que se deverá dizer, então, do governo que o sucedeu, o qual, com a colaboração do Congresso mais conservador da curta história democrática brasileira, expressa e assumidamente governa em favor dos interesses dos Bancos e conglomerados econômicos?
Fato é que quando o grande capital, no final de 2015, se manifestou, de forma definitiva e expressa, em favor do impeachment da Presidenta Dilma, assumiu, publicamente, sua aliança com a lógica da pequena política que há muito suplanta as políticas públicas no Brasil.
Essa associação, vale deixar claro, nunca deixou de existir, como revelam as recorrentes notícias dos pagamentos a políticos, que não são, de fato, pagamentos, e sim uma espécie de restituição de parcela das “benesses” indevidas extraídas do erário por atuação de certos agentes políticos, como forma de se manterem no poder, para fazer girar essa roda.
Quando se anuncia que determinada empresa corrompeu políticos com bilhões de reais, podem estar certos de que a dita empresa não se descapitalizou, apenas devolveu, via caixa 2, parte do patrimônio público que lhe fora repassado em negócios espúrios com o Estado, ou, como dito juridicamente, em Parcerias Público-Privadas.
Mas percebam, não se está falando de uma associação entre as estruturas do Estado e o capital para o desenvolvimento de uma sociedade capitalista, o que se está falando, reproduzindo o que se efetiva concretamente, é de um comando para a satisfação de interesses imediatos e localizados, sem qualquer visão de macro política econômica, sendo que o próprio envolvimento do capital com a “pequena política” é revelador disso.
Diante dos sucessivos escândalos que apontam a total perda de legitimidade do atual governo, que possui, inclusive, a menor aprovação da história, os representantes do grande capital, expressando um sentimento mesquinho, assumem claramente que pouco se importam com a estabilidade política e social do país, querendo, unicamente, cobrar a conta do apoio dado para o impeachment com o pagamento das tais “reformas”.
Isso, ademais, contraria as bases que deram suporte à hegemonia do grande capital.
A “reforma” trabalhista, por exemplo, não tem nada que se possa assemelhar a um projeto, fruto de um estudo aprofundado, voltado à melhoria da economia e como resultado da reorganização produtiva e da revolução tecnológica.
Os termos do PLC 38/17, que tem previsão de ser votado em definitivo no Senado Federal no dia 11/07/17, não passam de um amontoado de normas sobrepostas, que foram ali incluídas em um açodado processo de elaboração que durou pouco mais de 04 meses (de dezembro/16 a abril/17).
O PLC 38/17 não é nada além do que uma espécie de reunião de teses jurídicas empresariais, trazidas ao conjunto do Projeto pelo impulso da somatória de vaidades pessoais e até mesmo por sentimento de vingança de alguns. Não se trata, de fato, de um projeto e muitos que o defendem na grande mídia, ou em círculos familiares ou sociais mais restritos, certamente não chegaram a ler o PLCiv.
É interessante, aliás, ver o esforço do Parecer elaborado pelo Senador Ricardo Ferraço, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, para conferir alguma lógica e coerência ao Projeto.
A leitura do Parecer, no entanto, revela o quanto só com muita retórica e inversão de fatos e valores se pode tentar pôr de pé um projétil sem substância concreta – mesmo assim não se consegue fazê-lo.
O Parecer inicia dizendo que não vê qualquer inconstitucionalidade no PLC:
“Entendemos que o projeto em tela preserva todos os direitos das pessoas previstos nestes dispositivos e os amplia, à medida que permite que mais trabalhadores possam deles usufruir.”
Entretanto, o argumento jurídico utilizado para essa conclusão é o de que como a Constituição Federal consignou o princípio da dignidade da pessoa humana e procura garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, dentro da lógica da busca do pleno emprego e de uma ordem social que tem como objetivo o bem-estar social e a justiça social, tendo como base o primado do trabalho e defesa do consumidor, não se pode entender que os direitos consagrados na Constituição sejam direitos do trabalhador, tendo esta, isto sim, segundo o Parecer, contemplado os direitos da pessoa.
Como se vê, o Parecer faz letra morta do artigo 7º da CF/88, que expressamente diz:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” – grifou-se.
Além disso, o Parecer despreza os demais dispositivos constitucionais que expressam a vinculação da legitimidade da atuação econômica ao respeito aos valores sociais, dentre os quais, em primeiro plano, o valor do trabalho e, claro, os direitos dos trabalhadores, a saber:
“Art. 1º (…)
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Art. 5º. (…)
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”
E, desprezando toda a história que marcou a Constituinte, o parlamentar faz um grande esforço retórico para dizer, enfim, que a Constituição Federal de 88 trouxe o imperativo da “flexibilização com proteção”, seja lá o que venha a ser isso!
O problema para Ferraço – e para aqueles que se apoiam em seu Parecer – é que em nenhuma das mais de 2.000 páginas dos debates constituintes aparece a expressão “flexibilização” de direitos trabalhistas.
E o interessante é que o Parecer, subitamente, se desloca da afirmação de que nenhum direito dos trabalhadores estaria sendo reduzido na “reforma” para a defesa do negociado sobre o legislado, que, como o próprio nome diz, é uma fórmula para a redução de direitos, pois para superar os termos legais, ou seja, para ampliar os direitos, não há, nem nunca houve, impedimento jurídico.
Para reforço de sua ideia, o parlamentar cita decisões recentes do STF, mas o faz apenas parcialmente.
Refere-se, por exemplo, à decisão de 30 de abril de 2015, proferida no RE 590.415, pelo Ministro Roberto Barroso, que, acolhendo a tese do recorrente, Banco do Brasil S/A, tendo como Amicus Curiae, a empresa Volkswagen do Brasil Indústria de Veículos Automotores Ltda., conferiu validade à quitação ampla fixada em cláusula de adesão ao PDV, recusando, por conseguinte, a incidência, na hipótese, do art. 477, § 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, que restringe a eficácia liberatória da quitação aos valores e às parcelas discriminadas no termo de rescisão exclusivamente.
Entretanto, se por um lado o voto conferiu validade à quitação em cláusula de PDV, estabelecida em convenção coletiva, valorizando a “autonomia privada coletiva”, por outro, deixou claro que a razão fundamental para a existência do Direito do Trabalho, que é o reconhecimento da desigualdade entre o trabalhador e o empregador, mantendo vigente e até justificando a intervenção do Estado para impor uma “rigorosa limitação da autonomia da vontade” como “tônica no direito individual do trabalho”, preservando-se, por consequência, os princípios da proteção e da norma mais favorável.
O Parecer despreza essa compreensão, que está na base do Direito do Trabalho, reforçada pela Constituição, e passa à irracionalidade de que só o próprio trabalhador pode saber o que é mais favorável para si, ignorando a essência da proteção jurídica que é o reconhecimento de que o resultado de uma negociação “livre” entre, de um lado, o poder econômico e, de outro, a necessidade econômica, é a submissão e não o ajuste.
Mais interessante ainda é que os termos da Constituição que se fixaram como forma de legitimação da negociação, a proteção contra a dispensa arbitrária (art. 7º, inciso I) e o livre exercício do direito de greve (art. 9º), são solenemente ignorados tanto na “reforma” quanto no Parecer.
O certo é que o autor do Parecer tenta fazer prevalecer a sua visão de mundo sobre a própria história do Direito do Trabalho e da Constituição e procura alterar a essência dessas instituições para que a “reforma” seja considerada constitucional, o que, no entanto, só serve para demonstrar que a “reforma” está em contraposição ao Direito do Trabalho e à Constituição Federal.
E com retóricas e perversões de valores segue a argumentação do Parecer em defesa da “reforma”, pois, no fundo, pouco importa o resultado concreto que esse amontoado de normas inconstitucionais, vai produzir na realidade; o que vale mesmo é tão somente cumprir a tarefa de realizar a “reforma”, sendo que também há nisso uma lógica de inserção e preservação no poder político.
Lembre-se que Temer, para chegar ao poder, prometeu ao setor econômico realizar as tais “reformas” essenciais e que Rodrigo Maia, procurando ganhar força para chegar ao mesmo cargo, se aproximou ainda mais do setor econômico, deixando claro o seu compromisso com as “reformas”v.
E, de fato, já não interessa mais nem mesmo saber qual será o conteúdo final da “reforma” trabalhista. Governo, parlamentares e agentes econômicos querem a simbologia da aprovação de uma “reforma”, qualquer que seja ela, para, cada um a seu modo, se sentir vitorioso na disputa estabelecida.
Ora, o próprio Parecer acima referido aponta inconsistências do PLC, mas para que tudo seja concluído com a urgência que um regime de exceção requer, sugere que o Presidente da República, com quem alguns Senadores firmaram um “acordo”, faça posteriormente novas alterações por meio de Medidas Provisórias, valendo o registro de que há até um segmento sindical que aceita participar da farsavi para garantir a manutenção da contribuição sindical.
Assim, para quem entrou nesse jogo por meio de interesses pessoais, pouco importa se a “reforma” trabalhista vai gerar insegurança jurídica, aumentar o sofrimento da classe trabalhadora, disseminar a precariedade no trabalho e o subemprego, piorar a economia, provocar maior violência social, pois sua exclusiva visualização é sair com a consideração de “dever cumprido”, o que, dentro da mesma lógica, não chega a constituir garantia de nada. Afinal, aprovadas as “reformas”, mesmo os governantes e os políticas que as conduziram passam a ser descartáveisvii.
Enquanto isso, o Brasil, ainda representado, segundo a vontade do poder econômico, por ex-Presidente em exercício, cuja legitimidade nitidamente não é reconhecida pela comunidade internacionalviii, e empesteado pela lógica da pequena política, vai se afundando cada vez mais.
Sem que as pessoas em geral – independente do estrato social – se vejam integradas a algum tipo de projeto, ao invés de se ter caminhado para aquilo que se dizia ser a “moralização” da política e da vida nacional, o que se tem visto concretamente é o aumento e a disseminação: do individualismo, que retroalimenta a sonegação e produz novas formas de corrupção; da violência urbana; do terrorismo de Estado; da intolerância; e de práticas autoritárias e antidemocráticas.
E tudo isso está sendo incentivado, ou pelo menos assumido como natural, por uma pequena parcela da sociedade cujo interesse, por preocupações ligadas à pequena política, é unicamente a conclusão das ditas “reformas”, qualquer que seja o seu conteúdo, sem se importar, inclusive, com as associações que precisa fazer para atingir o seu objetivo.
Aliás, um dos objetivos, expressamente assumidos, é o de acabar com a Justiça do Trabalho ou, ao menos, diminuir sensivelmente a sua atuação, o que, por si, demonstra a direção efetiva da escolha feita, contrária àquela que pouco tempo atrás se enunciava, de superar a corrupção e de inibir a força do grande capital para o implemento de políticas sociais públicas. Ao ser diretamente atacada pelos agentes das “reformas”, resta evidenciado que a Justiça do Trabalho se recusou a fazer parte do jogo e que quem comanda o jogo não está preocupado com a efetivação do projeto social fixado na Constituição Federal.
Em nome da satisfação de fazer passar COM URGÊNCIA – e consequentemente sem o devido e necessário debate democrático – as “reformas”, deu-se impulso à destituição de uma Presidenta democraticamente eleita em razão de “pedaladas fiscais”; e colocou-se no poder uma pessoa comprometida em realizar as “reformas” e que está conduzindo o país ao caos, tendo chegado, inclusive, a pôr o Exército nas ruas para combater uma manifestação política contra a “reforma” trabalhista.
Os diretamente interessados, que, com influência e poder econômico, tentam manter sob controle a dinâmica da pequena política, e que usam sua força para atender aos seus anseios imediatos e privados, já aceitam que outro Presidente assuma, mas desde que se comprometa com a conclusão das “reformas”.
Concretamente, para supostamente acabar com a CLT, estão, por via inversa, destruindo o projeto formalmente existente na Constituição Federal e, de forma direta e assumida, afrontando o pouco que resta da democracia e de coesão social.
Fato é que, até para desespero das análises mais intelectualizadas da conjuntura mundial, o que determina essa ânsia de uma “reforma” trabalhista no Brasil não é o capitalismo, ou mais propriamente, a reestrutuação produtiva do capital e a necessidade de aumentar as margens de lucro, até porque, embora possa servir para isso eventualmente, há séria dúvida de que esse efeito possa ser alcançado pela “reforma” trabalhista em votação no Senado Federal.
Lendo atentamente o que consta no PLC e conhecendo, como agora todos já sabem, os meandros de seu histórico, o mais razoável é concluir que essa “reforma” trabalhista situa-se no campo da pequena política e o grande capital ao se envolver com ela – e mesmo incentivá-la – perdeu toda noção em torno do que seria uma mais eficaz organização produtiva, que envolve, claramente, um projeto mínimo de sociedade.
Claro que ao capital internacional o aumento imediato da margem de lucro que a “reforma” trabalhista proporciona é interessante, mas bem se sabe que esse lucro inicial é efêmero, já que a redução da distribuição da renda e, por consequência, do dinheiro em circulação tende a afetar negativamente o consumo, gerando nova onda de desemprego e uma crise econômica e social ainda mais profunda. Aliás, com essa previsão, a tendência é a de que o lucro maior proporcionado pela “reforma” seja remetido aos países de origem dos reais detentores dos meios de produção, sem previsão de novos investimentos.
Portanto, pensando a questão com visão estritamente capitalista, o capital internacional, patrocinando as “reformas”, está efetivamente desistindo do Brasil, sem deixar, antes, de promover a derradeira superexploração.
E os brasileiros – políticos, empresários, trabalhadores, profissionais de diversas áreas e, sobretudo, juristas – tendo a consciência de tudo isso, que se encontra inclusive expresso em jornais e revistas de grande circulação, vão assentir ou simplesmente se silenciar diante da consagração da bancarrota nacional?
Esse jogo está em fase decisiva, mas o resultado final não está dado: o mercado já deu sua cartada; resta verificar quais são as cartas que ainda possuem o Senado Federal, as instituições e as ruas.
São Paulo, 09 de julho de 2017.
i. BIANCHI, Álvaro. A hegemonia da pequena política: uma fórmula errada que deu certo. Disponível em: http://blogjunho.com.br/hegemonia-da-pequena-politica-uma-formula-errada-que-deu-certo/. Acesso em 09/07/17.
ii. COUTINHO, Carlos Nelson. A hegemonia da pequena política. In: Francisco de Oliveira; Ruy Braga; Cibele Rizek. Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
iii. BIANCHI, Álvaro. A hegemonia da pequena política: uma fórmula errada que deu certo. Disponível em: http://blogjunho.com.br/hegemonia-da-pequena-politica-uma-formula-errada-que-deu-certo/. Acesso e, 09/07/17.
iv. Vide, a propósito, SOUTO MAIOR, Jorge Luiz e SEVERO, Valdete Souto. Os 201 ataques da “reforma” aos trabalhadores. Disponível em http://www.jorgesoutomaior.com/blog/os-201-ataques-da-reforma-aos-trabalhadores. Acesso em 09/07/17.
v. Disponível em: http://www.valor.com.br/politica/5030022/maia-amplia-contatos-com-agentes-economicos?origem=G1&utm_source=g1.globo.com&utm_medium=referral&utm_campaign=materia
vi. http://www.esquerdadiario.com.br/Temer-recompensa-traicao-da-Forca-Sindical-a-greve-garantindo-imposto-sindical. Acesso em 09/07/17.
vii. “Alckmin diz que não há ‘razão’ para PSDB ficar no governo Temer após aprovação de reformas.
Prefeito João Doria afirmou que não defende permanência do partido na base, mas compromisso com o Brasil. Os dois falaram em evento neste domingo em SP.” Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/alckmin-diz-que-psdb-deve-deixar-governo-temer-apos-aprovacao-de-reformas.ghtml. Acesso em 09/07/17.
viii. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/temer-chega-ao-brasil-apos-participar-do-g20-21569337. Acesso em 09/07/17.
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